quarta-feira, junho 10, 2015

A obra de Lima Barreto ainda fala - Clara dos Anjos

Lima Barreto é um dos escritores brasileiros a quem tenho mais respeito. Essa visão especial sobre o escritor carioca nasce de sua biografia e de sua literatura, que foi uma expressão de sua vida conturbada  - e que dar uma história com feições bastante trágicas. Lima foi vítima do preconceito da aristocracia coberta de pó-de-arroz, vestida de fraque e com cartola à francesa num calor de quase quarenta graus do Rio de Janeiro, para demonstrar o quanto era diferente dos sujeitos humildes dos subúrbios da República Velha e se assemelhava "aos povos civilizados" - no caso, os europeus. 

O escritor nunca conseguiu o devido reconhecimento em vida. Buscou mais de uma vez ingressar na Academia Brasileira de Letras, tendo sempre o silêncio como resposta peremptória. Qual o seu pecado? Ser mulato, falar das cenas do cotidiano, ser morador de subúrbio, denunciar o parasitismo e o artificialismo de uma elite esdrúxula que militava contra o próprio país - como ainda continua a fazer nos dias de hoje. 

Lima escreveu poucos livros. Sua existência foi povoada por rupturas dolorosas; por intervalos entre a produtividade e o vício amalgamado com tendências à loucura, inclinação que vinha de família. Escreveu pelo menos três ou quatro livros que fazem parte do espectro da grande literatura que revela, que tornam os nossos dilemas mais claros, transparentes; livros que exatificam as nossas feiuras, nossos desvarios, nossos voos de mosquito. Podem ser citados O triste fim de Policarpo Quaresma (sua maior obra), Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Os Bruzundangas e Clara dos Anjos. Este último eu tive a oportunidade de ler semana passada. Além dos romances, vale mencionar os excelentes contos escritos pelo autor. 

Clara dos Anjos é uma obra póstuma. Foi lançado apenas em 1948, vinte e seis anos após a morte do autor. Segundo informações, Lima começou a escrevê-lo por volta de 1904 e após a sua morte, em 1922, ainda fica a impressão de que a obra possui traços de inacabamento. Clara dos Anjos, uma espécie de alter ego do autor, é uma metáfora da vida de Lima.  

A obra possui traços bem aproximados do naturalismo do século XIX. O que a torna diferente ao meu modo de ver é o despojamento da linguagem. Lima parece "brincar" com termos do falar popular, criando expressões, adaptando termos ou, simplesmente, manifestando por meio de frases sentenças do francês, do inglês ou do latim. Ele desenha com bastante vivacidade o modo de ser da periferia. As personagens vivem de forma humilde; já, outros, buscam a malandragem para locupletarem ganhos de forma fácil. É o caso de Cassi Jones, personagem finório, que trará enormes desventuras à personagem principal, deixando-a exposta aos preconceitos e deferências explícitas da sociedade.

Clara é uma mulata. Possui bons modos. É sonhadora como é pintado em traço comum pelos escritores do século XIX - a mulher sempre tida como ser frágil e alvo das intenções dos homens.  Mas Lima avança no que tange a essa visão. No seu tempo, havia um papel social definido para a mulher. Cabia a ela, quando moça, preparar-se para o casamento, alimentando essa perspectiva como criatura virtuosa que faria todos os caprichos do marido; que teria as melhores intenções, os pensamentos e as expressões mais puras. Era com esse ideal que a mulher vivia a sonhar. Se ela se inclinasse para algo que não dissesse respeito àquilo que se esperava dela, ela pagaria com a culpa, com o opróbrio e com a desaprovação da sociedade.  Em Lima a culpa deixa de ser da mulher e é transferida para a própria sociedade. Quando a sociedade atua de forma preconceituosa, ela simplesmente revela sua hipocrisia, seu racismo, seu moralismo de fachada. É nesse aspecto que a denúncia feita pelo escritor é tão mordente. Essa crítica ainda permanece viva. O mito do não preconceito, da aceitação incondicional do outro, do diferente, é outra mentira inventada para maquear o debate em torno do preconceito em nosso país. E nesse aspecto que a literatura de Lima Barreto permanece tão viva e falando tanto ainda de nossas doenças. 

Por esses dias começarei a leitura de Recordações do Escrivão Isaías Caminha

sexta-feira, junho 05, 2015

Silas Malafaia e as certezas de uma cor só

"Todo homem irrefletido acha que somente a vontade é atuante; que querer é algo simples, puramente dado, não deduzível, em si mesmo inteligível. Está convencido de que quando faz algo, quando desfecha um golpe, por exemplo, é ele que golpeia, e que golpeou porque quis fazê-lo". 

Nietzsche, in A Gaia Ciência, Aforismo 127

Como deixei transparecer em outras postagens incipientes, já engrossei os filões do evangelicalismo. Já fui ao púlpito, lugar da prédica, e enchi os pulmões de ar a fim de publicizar as minhas certezas, tidas como honestas e inolvidáveis por todos os crentes. Dei aula na escola dominical, lugar de formação, de consolidação das premissas absolutas, que não podem ser contraditadas, posto que a verdade não é uma categoria relativa, capaz de ser posta à prova no mundo da religião.

E acabei aprendendo uma coisa: por mais que se tenha uma visão flexível em torno de determinados temas; por mais que se busque uma relação "frouxa" e de desobrigação com os pressupostos do absoluto, uma vez que você o abrace, essas convicções estreitarão a capacidade de entender a complexidade da totalidade que move o universo. O crente não sofre crises filosóficas, pois a verdade não é um problema para ele. Em seu interior mora a certeza, a fé, que é a capacidade de se acreditar em algo que não se ver, mesmo que não se tenha provas acerca disso. Assentado nessa convicção que é confirmada apenas pela sua experiência; pelos fiapos frágeis da experimentação que emanam dos sentidos, o crente contradiz tudo aquilo que não caiba ou que não possua as tonalidades pictóricas de sua linguagem. Para tornar o imaterial, o intangível em algo claro ou que se estribe na sedimentação de algo possível ou visualizável, cria-se o dogma. O dogma é a tentativa de tornar o imaterial, a ausência, em algo factível, que estrutura o absurdo. 

Pensemos a seguinte situação hipotética, para entendermos como o mundo do religioso é sedimentado. Imaginemos que em um determinado dia, uma força impensável, contrariando as leis naturais surja para algumas pessoas e segrede: "Essa é a minha luz, a minha glória azulácea. De hoje em diante, vestirás o azul. E todo aquele que não vestir azul me negará. E todo aquele me negar estará do lado do mal e não terás relação com ele". Ao que os seres privilegiados e estupefatos pela visão, poderiam indagar: "E o que faremos a partir de agora?" A criatura sobrenatural diria em voz cavernosa do meio da fumaça: "Vai e prega que pelo azul se viverá e qualquer outra cor não será tolerada". 

Claro, criei uma ficção absurda para ilustrar o quanto as religiões são estreitas em suas certezas dicotômicas. Para o religioso, o mundo está dividido entre o mundo dele ( o caminho certo, da vida, reto) e o caminho dos outros (o caminho da perdição, do pecado). Assim como na historieta que criei o  azul seria o absoluto e tudo aquilo que não tivesse essa cor (o vermelho, o amarelo, o branco, o roxo, o marrom, o preto) seria visto como a anti-cor, da mesma forma acontece com o mundo encerrado nos preconceitos da religião. 

O direito a ter uma religião é sustentado pela Constituição. Isso é inegável. Todos os sujeitos têm o direito a professar uma fé, desde que esta não ultrapasse os limites do bom senso e seja posta como aquela está acima de todas as demais - o que quase sempre acontece em nosso país. Outra coisa é a sensibilidade oriunda de uma espiritualidade salutar. Isso independe da religião. Para ser espiritual, uma prática saudável que pode ser cultivada por todo ser humano, não é necessário ser religioso. Ser espiritual é ser capaz de notar a beleza posta nas pequenas coisas. Ser espiritual é enxergar no ser humano um outro como a si mesmo. Acredito que verdadeiramente esteja aí o sentido do religare (religião), ideia que nos "conecta" ao numinoso,  ao halo misterioso que envolve todas as coisas. 

Ora, escrevo essas palavras por causa da propaganda de O Boticário que suscitou tanto ódio esta semana nos religiosos empedernidos de plantão, defensores de que "o azul" é a única cor que existe no mundo. E que qualquer outra tentativa de colorir a realidade com outra cor seja nocivo e pecaminoso. Para Silas Malafaia, um bravateiro de plantão, sujeito que "arrota" as suas convicções dubitáveis e cegas, obrigando-nos a sentir o mal-cheiro do jorro de suas ideias conservadoras, só existe uma forma de se relacionar no mundo. Segundo ele, a família é milenar. Talvez ele precisasse ler uma pouco de sociologia ou antropologia para perceber que a ideia de família é construída socialmente. Que há tribos na África, na Oceania ou mesmo em meio aos índios brasileiros, que a ideia de "papai" e "mamãe" (uma concepção burguesa) é subvertida. Mas, quando ele diz que "a família é milenar", sei, está apontando para a bíblia, pois lá, segundo ele, estão os verdadeiros modelos a serem seguidos. Ou seja, esquece ele que a bíblia foi escrita em um contexto social e histórico em que determinada cultura, a dos judeus, possuía as suas especificidades. Com isso, o caricato polemista (não somente ele) quando leva em conta o modelo preconizado pelos judeus, acaba por absolutizar o modus operandis de uma cultura em detrimento de outras. E, assim, confirma-se a nossa tese. 

A fossilização da história é o grande problema do religioso. Ele olha para determinados aspectos. Perscruta, avalia, tira conclusões e afirma, relegando a multiplicidade de forma do mundo: "Tudo agora será roxo, cinza ou azul", como quer nos fazer crer o senhor Silas Mala-faia e sua trupe acostumada a enxergar o mundo de forma monocromática. Triste! 

Um comentário inacabado ao livro "Bandidos", de Eric Hobsbawn

O Nordeste do Brasil, por exemplo, impressiona à primeira vista como uma bastião do fatalismo, cujos habitantes aceitam morrer de fome passivamente como aceitam a chegada da noite ao fim de cada dia. Mas não está tão longe no tempo a explosão mística dos nordestino que lutaram junto com seus messias, extravagantes apóstolos, erguendo a cruz e os fuzis contras os exércitos, para trazer a esta terra o reino dos céus, nem as furiosas ondas de violência dos cangaceiros: os fanáticos e os bandoleiros, utopia e vingança, deram curso ao protesto social, cego ainda, dos camponeses desesperados.
Eduardo Galeano

O delicioso livro Bandidos, de Eric Hobsbawm, expõe no capítulo "O que é banditismo social?", que o fenômeno do banditismo social faz parte de sociedades agrárias e pastoris. Existem determinados elementos que dão vazão para que este tipo de movimento - marginal - se forme. Por exemplo, Hobsbawm diz que em épocas de muita fome, de repressão política, de descalabros variados, existe uma tendência que dá surgimento a esse fenômeno.

O banditismo "floresce em áreas remotas e inacessíveis, tais como montanhas, planícies não cortadas por estradas, áreas pantanosas, florestas ou estuários, com seu labirinto de canais e cursos d'água, e é atraído por rotas comerciais ou estradas importantes, nas quais a locomoção dos viajantes, nesses países pré-industriais, é lenta e difícil". O historiador inglês vai dizer que baste a construção de estradas ou a conexão com as regiões desoladas, onde originou o banditismo, para que este arrefeça, perca a força. Ou seja, a rapidez na comunicação permite ao Estado ações contundentes a fim de exorcizar o fenômeno do banditismo social.

O Brasil conheceu, no século XX, o fenômeno do banditismo social. O cangaço, classicamente, originado no Nordeste, possui características que levam Hobsbawm a dizer que os cangaceiros não podem ser vistos como "agentes da justiça", "e sim como homens que provam que até mesmo os fracos e pobres podem ser terríveis". Ou seja, os cangaceiros eram figuras ambíguas. Faziam parte de um mundo repleto de superstições, de autoritarismos, de ignorância, de mandos de determinados figurões. Ambientes com essas características, inevitavelmente, fazem surgir grupos justiceiros, como se deu com o fenômeno do cangaço no Nordeste. Figuras como Antonio Silvino ou Virgulino Ferreira da Silva, o "Capitão" ou "Lampião", estão dentro dos limites dessa lógica...

P.S. Escrito em janeiro de 2014.