sexta-feira, janeiro 29, 2016

Surpresas...

Ao chegar do trabalho, hoje, no princípio da tarde, fui avisado pelo porteiro com sotaque potiguar do prédio onde moro, que havia chegado uma caixa para mim. Imediatamente, fiquei cioso para saber do que se tratava. Olhei para o interior  da saleta em que trabalha o sujeito de fala moderada e gestos parcos, esperando a encomenda. Dei o recebido. Aboletei-me no elevador, equilibrando o pacote em uma das mãos. 

Tratava-se de uma riqueza literária. O fato é que no início da semana, comprei Guerra e Paz (caixa), os contos completos (caixa) - ambos de Tolstói - e Hereges, de Leonardo Padura. O que me impressionou foi a celeridade na entrega. Nunca havia recebido uma encomenda tão rapidamente. Certa vez, comprei doze livros no site da Livraria Saraiva e esperei mais de vinte dias para que chegasse a encomenda. Outra vez, no site da Boitempo, foram mais de quarenta dias. Encomendas que chegam antes do prazo estipulado abalam a nossa compreensão. Metem uma incongruência em nosso senso moral. A Amazon se elevou em meus conceitos de criatura pequena. 

Os livros de Tolstói (em edição glamourosa) são de uma elegância indescritível: a capa dura, as folhas de uma branquidão sem máculas, o tamanho, a espessura, o cheiro inebriante; a expectativa lúbrica do enredo, a estesia da leitura. Dei uma folheada. Aproximei uma das brochuras com mais de mil páginas do nariz. Senti a fragrância. Um enlevo. Prazer capaz de nos fazer fechar os olhos. 

O ano passado havia encontrado essa mesma caixa de Guerra e Paz por cinquenta e três reais na mesma Amazon. Acabei não comprando. Desconfiei da oferta. Quando voltei para conferir, percebi que o preço havia subido em demasia. Passava dos cem reais. Todavia, esta semana, resolveram fazer uma oferta. E eu não pensei duas vezes. 

Tenho uma versão de Guerra e Paz aqui em casa. Adquiri-a em 2008. É aquela edição barata da LP&M. Não chega a ser grande, luxosa, imponente, repleta da magnificência da edição da Cosacnaify, mas serviria para leitores médios como eu. Comprar essa, que é uma das obras máximas da literatura universal, faz parte de um projeto ganancioso de leitura para 2016 - e pelos anos que se seguem. Aprendi que se não nos dispusermos a ler, não leremos de forma alguma. O fluxo da vida não diminui a velocidade para que venhamos a dar atenção a vaidadezinhas entorpecedoras, capazes de anestesiar interesses e acanalhar expectativas. 

Pensando em vaidades minúsculas, emulei um adágio que vivo a repetir em voz baixa: "passar por essa vida e não ler Guerra e Paz, Os irmãos Karamázov, Os miseráveis e Dom Quixote" é não ter conhecido o sentido do glorioso, do fenomenal, do espetaculoso, capazes de enobrecer a humanidade e lhe impor uma código decifrador, totalizador. 

Pois, pensando nisso comprei Os miseráveis (edição da mesma Cosac), Os irmãos Karamázov, Memórias do Subsolo (da Editora 34) e um livro de ensaios de Auerbach. Tenho esses livros (Victor Hugo e Dostoiésvki) em edições ordinárias. Nada melhor do que lê-los numa prosa arrumada e diligente. Amanhã, talvez, eu seja surpreendido mais uma vez pela Amazon. 

quarta-feira, janeiro 27, 2016

Sobre "O sal da terra" (2015)

"Somos um animal muito feroz... Somos uma violência extrema, de verdade. Nossa história é uma história de guerras"
Sebastião Salgado

O ano passado, fiquei desejoso de assistir ao documentário O Sal da Terra, que passou pelas salas do Espaço Itaú aqui em Brasília. A produção saiu de cartaz e eu fiquei a lamentar. A excessiva exigência das horas me impediu de de dar cabo às minhas intenções. Trata-se de documentário baseado na obra de Sebastião Salgado.

Esta semana eu consegui efetivar esse desejo aquecido pelo tempo. E não me decepcionei. Gostei do que presenciei. É uma produção que delineia num fluxo cronológico a carreira do premiado e conhecido fotógrafo mineiro. Salgado é um nômade. Já viajou praticamente pelo mundo todo. Sua técnica (fotografias em preto e branco), aliada a uma sensibilidade poderosa, cria quadros de estetização intensa. Paisagens, secas, dramas humanos, costumes indígenas, animais, tudo é imortalizado em um clique, que acaba por se transformar em uma obra de arte. 

O documentário filmado por Juliano Salgado (filho do fotógrafo) e pelo premiado diretor alemão Wim Wenders, coloca Salgado diante de sua obra, comentando boa parte dela. Assim, o diretor comenta desde as fotos que fez na América Latina (Bolívia, Equador, México), em Serra Pelada, ainda na década de oitenta, ao extermínio étnico em Ruanda e na antiga Iugoslávia; ou ainda tece observações acuradas sobre o olhar de um gorila. 

O momento que gera emoção é quando Salgado comenta o que viu e sentiu no Sahel, antiga região da Somália, na década de oitenta. A fome como uma dizimadora; como uma agente cruel e violento, a diminuir seres humanos a carcaças imprestáveis e inanimadas. O testemunho do massacre em Ruanda, resultado do conflito entre tutsis e hutus (que pode ser visto no filme Hotel Ruanda), ocorrido em 1994, também marca o fotógrafo. Nesse conflito covarde, um dos maiores do século XX, quase 1 milhão de pessoas morreram à vista da comunidade internacional. Daí surge a tese, segundo o próprio Salgado, que o ser humano é um "animal muito feroz". A sua face cruel faz avançar a injustiça. 

Essa tese é contraditada pela recuperação das matas da fazenda da própria família. A região que parece ser uma espécie de metáfora para a crença de Salgado, teve sua densa mata Atlântica arruinada pela exploração irresponsável e despreocupada pela própria família do artista. Até mesmo os riachos que passavam pela propriedade desapareceram. Todavia, houve um movimento do próprio Sebastião para replantar dois milhões de árvores na propriedade para restabelecer as antigas características do lugar. E é justamente nessa crença, nessa possibilidade de reversão do caos; dessa capacidade de restabelecer à vida aquilo que fazia grassar apenas a esterilidade, que Salgado ver um afluxo redentivo para o ser humano. Hoje, a atinga fazenda foi transformado em um parque ecológico. 

Trata-se de um documentário muito bonito. As fotografias que aparecem no filme, criam paroxismos para o dilema humano. Quem somos nós? Por que somos tão cruéis, mas tão encantadores? Esse dualismo cria uma teologia do desconhecido e da incerteza. A técnica em preto e branco torna mais patente uma metafísica sombria. Impossível olhar as fotografias e não se abismar; impossível não descolorir nossas arrogâncias, nossa crença no progresso, nossa vaidade presumida de que somos a coroação da matéria criativa do universo. 

Assim, o documentário nos aponta "a violência extrema" das obras humanas e sua pátina caótica de injustiças, mas ao mesmo tempo nos apresenta o amparo poético de uma perspectiva fundada na metáfora do "replantio" de nossa história. 


segunda-feira, janeiro 25, 2016

Crônica de uma viagem - parte 1

Escreverei dois ou três textos sobre a minha viagem de férias, realizada entre os dias 26 de dezembro e 21 de janeiro por cinco estados nordestinos. A princípio a coisa se parece com aquelas tarefas escolares de início de ano: "Como foram as minhas férias!" Tentando fugir dessa característica, a minha intenção é manter vivo aquilo que experimentei. Ao escrever imortalizamos aquilo que é mortal; damos carne e substância ao tempo que já não existe e que mora dentro de nós como memória. Meu corpo é um museu habitado por muitas memórias. Há inúmeros quadros espalhados por galerias imensas no meu ser, povoadas por paisagens singulares. 

Pois, no dia 26 de dezembro, eu e minha esposa partimos para Lençóis, na Bahia. Saímos às cinco horas da madrugada. Viajamos mil e cem quilômetros. Chegamos à cidade que preserva as marcas do garimpo de pedras preciosas por volta da sete da noite. Tudo já estava escuro. Foi uma viagem tranquila. Saímos do DF, entramos no Goiás; saímos do Goiás e  "rumamos" pela imensa Bahia. 

Estabelecemo-nos na cidade de Lençóis durante três dias. Visitamos alguns pontos importantes do lugar. Um dos referenciais da cidade é o turismo natural. O Parque Nacional da Chapada da Diamantina, criado em 1985, possui uma área de quase 153 mil hectares, situado nos municípios de Lençóis, Mucugê, Palmeiras, Iramaia, Itaetê, Andaraí, Ibicoara, entre outros. A região vive basicamente do turismo. Enquanto estava por lá, notei a quantidade de estrangeiros - canadenses, alemães, franceses, ingleses, estadunidenses e gente de muitas regiões do Brasil. 

Visitamos a Gruta da Pratinha, situada em uma fazenda particular. É preciso pagar R$ 10,00 para entrar. O lugar dispõe de banheiros. A comida vendida no quilo é gostosa. Possui um sabor bem caseiro e, levemente, conserva as nuances do tempero nordestino. 

Visitei ainda o Morro do Pai Inácio, um dos poucos morros da Chapada no qual se pode subir. A escalada é tranquila. É preciso ter força física, destreza e fôlego. Todavia, com tranquilidade e perseverança se consegue chegar ao alto. O prêmio é uma visão privilegiada. Avistam-se os morros da região; os vales próximos; e é possível tirar fotos que são verdadeiros cartões postais. 

Dois outros locais interessantes que visitei foram o Ribeirão do Meio e a Cachoeira do Mosquito. Aquele pode ser visitado a pé, já que se encontra próximo à cidade. Esta fica distante. É preciso ir de carro. Segue-se pela BR 242. Em seguida, percorre-se um trecho de vinte quilômetros numa estrada de terra. Fato inusitado se deu quando eu, minha esposa, meu irmão, sua esposa e algumas amizades que fizemos na cidade, debatíamos sobre como chegaríamos ao Ribeirão. Um senhor da cidade ficou observando. Era negro. Simpático. Circunspecto. De meia idade. E depois pude observar que apresentava apenas dois dentes em seu sorriso. Aproximou-se e proferiu com singeleza:

 - Com licença... Eu estava ouvindo vocês falando sobre o caminho para o Ribeirão... - e, e logo em seguida, debulhou o itinerário do Ribeirão numa fala grávida pelo sotaque mavioso da Bahia.

Perguntei para alongar a conversa e me deliciar com seu dialeto:

- Lá é legal? 

E aí escutei a exclamativa e musical afirmação:

- Olhe! Lá é massa!!! - e logo em seguida saiu pedindo desculpas pela intromissão com seu passo pachorrento, com as mãos para trás. 

Aquela expressão "Lá é massa!" abriu um imenso clarão de alegria dentro de mim, que nessas linhas chochas e inexpressivas não consigo recriar a cadência de sua voz; a expansão ou o intervalo de sua entonação. Todos do grupo ficamos rindo. 

Outra experiência gratificante na cidade foi ter comido no único restaurante mexicano da cidade - o Burritos y Taquitos. O dono do restaurante morou por algum tempo no México e trouxe de lá a cabala dos temperos da terra dos maias. Para comer lá é necessário agendar com alguma antecedência, porquanto é bastante visitado. O espaço possui fragrâncias exóticas, resultado do incenso que busca recriar os feitiços da rica e complexa cultura mexicana. Gostei tanto da experiência, que eu e minha esposa nos vimos obrigados a comer mais uma vez naquele lugar ao voltarmos para casa. 

De Lençóis, no dia 29 de dezembro, rumamos para Aracaju, que fica a 650 quilômetros da cidade baiana. Dirigi de Lençóis a Feira de Santana; e a minha encantável esposa conduziu-nos até Aracaju, a capital sergipana. 

Outro dia, continuarei a contar os fatos ocorridos em Sergipe e na Paraíba.  

Abaixo, algumas fotos tiradas em meu celular. 

Gruta da Pratinha

Vista privilegiada do Vale. De cima do Morro do Pai Inácio

Minha linda senhora!

A fera!

Entrada da Cachoeira do Mosquito

Cachoeira do Mosquito


Uma das ruas de Lençóis



sexta-feira, janeiro 01, 2016

Últimos filmes vistos em 2016



Esta é uma lista que busco sempre atualizar. Sempre que vejo um filme ou documentário, venho aqui e atualizo.

(...)

60. O leitor (2008) - Stephen Daldry - Nota 9,0;

61. Sinédoque, Nova York (2008) - Charlie Kaufman - Nota 8,0;

62. O desprezo (1963) - Jean-Luc Godard - Nota - 9,0;
63. Fargo - uma comédia de erros (1996) - Joel Cohen, Ethan Cohen - Nota - 9,3;
64. A marca da maldade (1956) - Orson Welles - Nota - 9,0;
65. Kill Bill - Vol. 1 (2003) - Quentin Tarantino - Nota - 7,7;
66. O criado (1963) - Joseph Losey - Nota - 9,5;
67. Lúcia e o Sexo (2001) - Julio Medem - Nota - 8,0;
68. O cortiço (1978) - Francisco Ramalho Jr. - Nota - 8,2;
69. Como água para chocolate (1993) - Alfonso Arau - Nota - 9,2;
70. A vida dos outros (2006) - Florian Henckel von Donnersmarck - Nota - 9,5;
71. 8 e Meio (1963) - Federico Fellini - Nota - 9,7;
72. O último tango em Paris (1972) - Bernardo Bertolucci - Nota: 8,7
73. A bela da tarde (1967) - Luis Buñuel - Nota: 9,3;
74. Repulsa ao Sexo (1965) - Roman Polanski - Nota: 9,0;
75. Elle (2016) - Paul Verhoeven - Nota: 9,2;
76. Andrei Rublev (1966) - Andrei Tarkovsky - Nota: 9,5;
77. Imagining Argentina (2003) - Christopher Hampton - Nota: 8,2;
78. Alice não mora mais aqui (1974) - Martin Scorsese - Nota: 8,3;
79. Stalker (1979) - Andrei Tarkovsky - Nota: 9,7;

"Lições de Tolstói" e outras coisas

Nada melhor do que começar o ano fazendo um post cujo principal assunto é Guerra e Paz, de Tolstói. O texto foi escrito no mês de agosto do ano passado, mas, como em literatura quase tudo é atemporal, fica a certeza de que ele permanece atual. Nunca li a obra famosa do escritor russo. É um projeto para os próximos anos. Olhando a agenda 2016 que comprei há alguns dias, vejo a lista com 57 livros com as leituras emergenciais que farei. Guerra e Paz está em quadragésimo sétimo lugar. Vejo-o distante. Suas mais de duas mil páginas inibem um sujeito de inteligência média como eu. 

Outro aspecto importante com relação a essa postagem é o contínuo que ela dá ao blog - morto nestes últimos meses. Como sempre acontece, o início de cada ano é eivado por promessas. Algumas listas são construídas; projetos variados são estabelecidos. E à medida que o ano avança, vemos-nos inoperantes com a maior parte dos intentos. Vem o desalento. O ano termina e recomeçamos novamente - com novas promessas. E como não poderia deixar de ser, tenho as minhas também. Por isso, quero ler mais literatura este ano de 2016; quero escrever mais neste espaço. Talvez, o tempo passe e eu seja engolido pelas ondas nervosas do cotidiano. Mas, lembrando o chavão do navegador, "o pior naufrágio é não partir". Um feliz 2016 aos incidentais visitantes deste espaço!

Abaixo a reflexão do escritor peruano Mario Vargas-Llosa. 

(Aracaju-SE)

Lições de Tolstói, por Mario Vargas-Llosa

Li Guerra e Paz pela primeira vez há meio século, em um volume único da Pléiade, durante as minhas primeiras férias remuneradas pela Agência France Presse, em Perros-Guirec. Estava escrevendo naquele período o meu primeiro romance, e vivia obcecado com a ideia de que, diferentemente do que ocorre com outros gêneros literários, a quantidade, no romance, era um ingrediente essencial da qualidade; de que os grandes romances costumavam ser também romances grandes –longos— porque abrangiam tantos aspectos da realidade que davam a sensação de expressar a totalidade da experiência humana.

O romance de Tolstói parecia confirmar milimetricamente essa teoria. A partir de um começo frívolo e mundano naqueles salões elegantes de São Petersburgo e de Moscou, com aqueles nobres que falavam mais em francês do que em russo, a história ia descendo e se espraiando por toda a complexa sociedade russa, expondo-a com toda a sua ilimitada gama de classes e tipos sociais, dos príncipes e generais aos servos e camponeses, passando pelos comerciantes e as senhoritas em idade de casar, os libertinos e os maçons, os religiosos e os aproveitadores, os soldados, os artistas, os arrivistas, os místicos, até envolver o leitor na vertigem de ter sob os seus olhos uma história na qual atuavam todas as variações possíveis daquilo que é humano.

Em minha lembrança, o que mais se destacava nesse romance eram as batalhas, a odisseia extraordinária do velho general Kutúzov, que, de derrota em derrota, vai aos poucos desgastando as tropas napoleônicas invasoras até que, com a ajuda do inverno brutal, da neve e da fome, consegue acabar com elas. Na minha cabeça, firmava-se a falsa ideia de que, se fosse preciso resumir Guerra e Paz em uma só frase, daria para dizer que se tratava de um grande mural épico sobre como o povo russo rechaçou as empreitadas imperialistas de Napoleão Bonaparte, “o inimigo da humanidade”, e defendeu a sua soberania; ou seja: um grande romance nacionalista e militar, de exaltação à guerra, à tradição e às supostas virtudes castrenses do povo russo.

Constato agora, nesta segunda leitura, que eu estava enganado. Longe de apresentar a guerra como uma experiência virtuosa na qual se forjam o moral, a personalidade e a grandeza de um país, o romance a expõe com todo o seu horror, mostrando em cada batalha –especialmente na alucinante descrição da vitória de Napoleão em Austerlitz— a monstruosa carnificina que ela provoca, a penúria e as injustiças que atingem os homens comuns, que constituem a maioria de suas vítimas; assim como a estupidez macabra e criminosa daqueles que detonam essas tragédias falando em honra, em patriotismo, em valores cívicos e militares, palavras cujo vazio e cuja pequenez se mostram evidentes aos primeiros disparos dos canhões. O romance de Tolstói tem muito mais a ver com a paz do que com a guerra. O amor à história e à cultura russa que indiscutivelmente o impregna não exalta em nada o som e a fúria das matanças, mas sim aquela vida interior intensa, cheia de reflexão, de dúvidas, a busca da verdade e o esforço em fazer o bem aos outros, tudo isso encarnado no bondoso e pacífico Pierre Bezúkhov, o herói do romance.

Longe de apresentar a guerra como uma virtuosa experiência, a novela a expõe em todo seu horror. Embora a tradução de Guerra e Paz para o espanhol que estou lendo não seja excelente, a genialidade de Tolstói se faz presente a cada passagem, em tudo o que ele relata, e mais no que oculta do que no que explicita. Seus silêncios são sempre eloquentes, comunicam algo, estimulam a curiosidade do leitor, que fica preso ao texto, ansioso para saber se o príncipe Andrei finalmente declarará o seu amor a Natasha, se o casamento combinado realmente acontecerá, ou se o excêntrico príncipe Nikolai Andreiévitch conseguirá impedi-lo. Não há quase nenhum episódio no romance que não deixe algo no ar, que não se interrompa deixando de revelar ao leitor algum elemento ou informação decisivos, de modo a fazer com que sua atenção não diminua, se mantenha sempre ávida e alerta. É realmente extraordinário como em um romance tão amplo, tão diversificado, com tantos personagens, a trama é sempre conduzida com tanta perfeição por um narrador onisciente que nunca perde o controle, que delimita com absoluta maestria o tempo dedicado a cada um, que vai avançando sem descuidar nem preterir de nenhum deles, dando a todos o tempo e o espaço apropriados para fazer com que tudo avance conforme avança a própria vida, por vezes muito vagarosamente, por vezes em saltos frenéticos, com suas doses diárias de alegrias, tragédias, sonhos, amores e fantasias.

Nesta releitura de Guerra e Paz, percebo algo que não tinha entendido na primeira vez: a dimensão espiritual da história é muito mais relevante do que aquilo que se passa nos salões ou no campo de batalha. A filosofia, a religião, a procura de uma verdade que torne possível distinguir claramente o bem e o mal e agir a partir disso são preocupações centrais dos principais personagens, inclusive dos chefes militares, como o general Kutúzov, personagem deslumbrante, que, apesar de ter passado a vida inteira em combate –ainda se nota a cicatriz deixada por uma bala atirada pelos turcos e que lhe atravessou o rosto–, é um homem eminentemente ético, desprovido de ódio, de quem se poderia dizer que faz a guerra porque não há alternativa e alguém tem de fazê-la, mas que preferiria dedicar seu tempo a tarefas mais intelectuais e espirituais.

A dimensão espiritual da história é bem mais importante que a que ocorre nos salões. Embora, “falando friamente”, as coisas que acontecem em Guerra e Paz sejam terríveis, duvido que alguém saia de sua leitura entristecido ou pessimista. Ao contrário, o romance nos transmite a sensação de que, apesar de todo o mal que há na vida, da fartura existente em matéria de canalhices e pessoas vis que querem sempre levar a melhor, no fim das contas os bons são em número maior do que os maus, os momentos de prazer e de tranquilidade são maiores do que os de amargura e ódio, e que, mesmo que isso nem sempre seja evidente, a humanidade vai aos poucos deixando para trás aquilo que ela ainda carrega consigo de pior, ou seja, de uma forma frequentemente invisível, vai melhorando e se redimindo.

O maior feito de Tolstói, como o de Cervantes ao escrever Dom Quixote, o de Balzac com a sua Comédia Humana, o de Dickens com Oliver Twist, o de Victor Hugo com Os Miseráveis, ou ainda o de Faulkner com sua saga sulina, foi, provavelmente, este: mesmo nos fazendo mergulhar nos esgotos da vida humana, seus romances injetam dentro de nós a convicção de que, apesar de tudo, a aventura humana é infinitamente mais rica e apaixonante do que as misérias e as baixezas que também existem nela; que, vista em seu conjunto, de uma perspectiva mais serena, ela merece ser vivida, nem que seja apenas porque, neste mundo, podemos viver não apenas das verdades, mas também, graças aos grandes romances, das mentiras.

Não poderia encerrar esta coluna sem fazer em público uma pergunta que está martelando dentro de minha cabeça desde que eu soube do fato: como foi possível que o primeiro prêmio Nobel de Literatura tenha sido dado a Sully Prudhomme e não a Tolstói, que também concorria a ele? Será que não estava tão claro na época, como está agora, que Guerra e Paz é um desses raros milagres que só acontecem no universo da literatura a cada cem anos?