segunda-feira, junho 29, 2009

Difícil arte de ser mulher

Este artigo foi editado no Jornal Correio Braziliense da última sexta-feira, dia 26 de junho de 2009, no Caderno Opinião. No texto em questão, Frei Betto faz uma reflexão contudente sobre como a indústria do marketing, da banalidade e do fetiche, tem desfigurado a imagem, a pessoa e os atributos da mulher. Vale a leitura pela reflxão oportuna suscitada!

Hours concours em Cannes, um dos filmes de maior sucesso no badalado festival francês foi "Ágora", direção de Alejandro Amenabar. A estrela é a inglesa Rachel Weiz, premiada com o Oscar 2006 de melhor atriz coadjuvante em "O jardineiro fiel", dirigido por Fernando Meirelles.Em "Ágora" ela interpreta Hipácia, única mulher da Antiguidade a se destacar como cientista. Astrônoma, física, matemática e filósofa, Hipácia nasceu em 370, em Alexandria. Foi a última grande cientista de renome a trabalhar na lendária biblioteca daquela cidade egípcia. Na Academia de Atenas ocupou, aos 30 anos, a cadeira de Plotino. Escreveu tratados sobre Euclides e Ptolomeu, desenvolveu um mapa de corpos celestes e teria inventado novos modelos de astrolábio, planisfério e hidrômetro. Neoplatônica, Hipácia defendia a liberdade de religião e de pensamento. Acreditava que o Universo era regido por leis matemáticas. Tais ideias suscitaram a ira de fundamentalistas cristãos que, em plena decadência do Império Romano, lutavam por conquistar a hegemonia cultural. Em 415, instigados por Cirilo, bispo de Alexandria, fanáticos arrastaram Hipácia a uma igreja, esfolaram-na com cacos de cerâmica e conchas e, após assassiná-la, atiraram o corpo a uma fogueira. Sua morte selou, por mil anos, a estagnação da matemática ocidental. Cirilo foi canonizado por Roma. O filme de Amenabar é pertinente nesse momento em que o fanatismo religioso se revigora mundo afora. Contudo, toca também outro tema mais profundo: a opressão contra a mulher. Hoje, ela se manifesta por recursos tão sofisticados que chegam a convencer as próprias mulheres de que esse é o caminho certo da libertação feminina. Na sociedade capitalista, onde o lucro impera acima de todos os valores, o padrão machista de cultura associa erotismo e mercadoria. A isca é a imagem estereotipada da mulher. Sua autoestima é deslocada para o sentir-se desejada; seu corpo é violentamente modelado segundo padrões consumistas de beleza; seus atributos físicos se tornam onipresentes. Onde há oferta de produtos - TV, internet, outdoor, revista, jornal, folheto, cartaz afixado em veículos, e o merchandising embutido em telenovelas - o que se vê é uma profusão de seios, nádegas, lábios, coxas etc. É o açougue virtual. Hipácia é castrada em sua inteligência, em seus talentos e valores subjetivos, e agora dilacerada pelas conveniências do mercado. É sutilmente esfolada na ânsia de atingir a perfeição. Segundo a ironia da Ciranda da bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque, "Procurando bem / todo mundo tem pereba / marca de bexiga ou vacina / e tem piriri, tem lombriga, tem ameba / só a bailarina que não tem". Se tiver, será execrada pelos padrões machistas por ser gorda, velha, sem atributos físicos que a tornem desejável. Se abre a boca, deve falar de emoções, nunca de valores; de fantasias, e não de realidade; da vida privada e não da pública (política). E aceitar ser lisonjeiramente reduzida à irracionalidade analógica: "gata", "vaca", "avião", "melancia" etc. Para evitar ser execrada, agora Hipácia deve controlar o peso à custa de enormes sacrifícios (quem dera destinasse aos famintos o que deixa de ingerir...), mudar o vestuário o mais frequentemente possível, submeter-se à cirurgia plástica por mera questão de vaidade (e pensar que este ramo da medicina foi criado para corrigir anomalias físicas e não para dedicar-se a caprichos estéticos). Toda mulher sabe: melhor que ser atraente, é ser amada. Mas o amor é um valor anticapitalista. Supõe solidariedade e não competitividade; partilha e não acúmulo; doação e não possessão. E o machismo impregnado nessa cultura voltada ao consumismo teme a alteridade feminina. Melhor fomentar a mulher-objeto (de consumo). Na guerra dos sexos, historicamente é o homem quem dita o lugar da mulher. Ele tem a posse dos bens (patrimônio); a ela cabe o cuidado da casa (matrimônio). E, é claro, ela é incluída entre os bens... Vide o tradicional costume de, no casamento, incluir o sobrenome do marido ao nome da mulher. No Brasil colonial, dizia-se que à mulher do senhor de escravos era permitido sair de casa apenas três vezes: para ser batizada, casada e enterrada... Ainda hoje, a Hipácia interessada em matemática e filosofia é, no mínimo, uma ameaça aos homens que não querem compartir, e sim dominar. Eles são repletos de vontades e parcos de inteligência, ainda que cultos. Se o atrativo é o que se vê, por que o espanto ao saber que a média atual de durabilidade conjugal no Brasil é de sete anos? Como exigir que homens se interessem por mulheres que carecem de atributos físicos ou quando estes são vencidos pela idade? Pena que ainda não inventaram botox para a alma. E nem cirurgia plástica para a subjetividade.

Por Frei Betto

quinta-feira, junho 18, 2009

Pavilhão de artificialidades

Estou num pavilhão de artificialidades.
A estética é artificial,
Os passos são artificiais,
Os seres são artificiais.
Será que todos eles têm
Consciência da existência?
Existir é mais do que viver.
À mesa, um volume sartreano,
“A Náusea”.
Estou enauseado nesta noite
De modorra irritadiça.
Um gosto amargo na boca.
Certeza da pequenez,
Da quase ausência de ser.
Quanto mais penso,
Mais chego a conclusões atordoadoras.
Roquetin caminhava pela fria
E desalmada Paris do início do século XX.
Hoje estou aqui, em pleno século XXI,
Sentindo a mesma náusea.
Deve ser por isso que me animo, às vezes.
Existe cumplicidade, senso de identidade
Entre os homens.
A verdade é que todos morremos.
A consciência da morte gera paz em mim.
Todos os medíocres,
revestidos de artificialidades, passarão.
Mas enquanto não passam,
Se vestem com roupas de grife,
Passam pó nas faces amarelecidas
Pela vaidade;
Sorriem como hienas despreocupadas,
Assistem aos melhores shows, viajam
E vêem aquilo que eu costumeiramente sentiria.
Estou farto de tudo.
Inclusive dessas páginas queixosas.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: 27/11/2006, segunda-feira.

quinta-feira, junho 04, 2009

A Sinfonia No. 1 de Mahler e eu

Ouvia há pouco a Sinfonia No.1, "Titã", de Gustav Mahler. O compositor austríaco inscreve-se como um dos meus favoritos. Suas peças musicais são monumentos erguidos a fim de engrandecer o homem e suscitar reflexões sobre o existir. Mahler em vida foi um indivíduo supersticioso. Sentia-se perseguido por uma compulsão: o medo da morte. A sua existência foi marcada por essa inquietação e, consequentemente, esses humores influenciaram em sua obra de forma profunda.
Suas sinfonias são catedrais grandiosas. Quando falo em grandiosidade, não quero me referir à duração cronológica das peças, mas à magnitude de reflexão e potencial exploratório de novas possibilidade sonoras. Compôs basicamente sinfonias. Embora figurem entre suas obras, lieders deliciosos e introspectos como "A Canção da Terra", um ciclo de canções feitos a partir de um poema chinês que desenvolve uma busca de compreensão filosófica para o existir humano. Aborda a efemeridade e a fuga transitória que é a vida do homem e todas as tragicidades inevitáveis que o acometem.
"Titã" é a primeira sinfonia de Mahler. É uma obra de juventude. Revela um Mahler otimista, grávido de expectativas triunfantes sobre o homem. Por isso, creio, que seja denominado de "Titã" (gigante). O compositor austríaco insere temas e nuances que sugerem a sua crença na vida.
Gustav foi tão grande como ser humano, quanto as suas peças. Sua música é a exata medida do homem. Exatificante, a música mahleriana alça voos metafísicos singrando por mares profundos da religião, da filosofia, do humanismo, do mistério e do triunfo.
Todas as vezes que escuto Gustav. morto em 1911, no auge da forma, como um grande compositor e regente, sinto-me mais homem, um homem melhor. É como dizia Nietzsche sobre Bizet: "A música desse compositor [Bizet] torna-me um melhor filósofo". Reflito como o pensador alemão. Ha realidades que devem nos modificar profundamente. Passarmos pela vida sem nos transformarmos em alguém positivo, a fim de causar um favor necessário ao próximo, é não viver. Quando escuto Mahler eu passo a acreditar na humanidade.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: 27 de janeiro de 2009, terça-feira.