terça-feira, julho 29, 2014

Perguntas. O negro ontem e hoje.

Hoje cedo, enquanto voltava do trabalho, li no metrô uma reportagem do blog Pragmatismo Político, que muito me deixou pensativo. A reportagem tem no título uma pergunta bastante perturbadora: "Onde estão os políticos negros do Brasil?". Trata-se de pergunta que deve ser ampliada, pois nos quadros que conduzem o Brasil, os negros representam uma minoria insignificante, mostrando claramente que o país ainda está dividido entre a senzala e a casa-grande. 

A colonização deixou marcas terríveis em nosso país. E no que tange à dança das classes, os negros foram aqueles que mais sofreram e continuam a experimentar os infortúnios da abolição, que se deu no nível dos documentos e da história. Todavia, no que  diz respeito à materialidade e a inclusão nos quadros mais importantes da sociedade, o negro ainda está em desmesurada desvantagem. Emília Viotti da Costa em seu excelente "A abolição", diz que "A abolição no Brasil não foi resultado de uma revolução como ocorrera no Haiti, nem de uma guerra civil como nos Estados Unidos. Os proprietários de escravos não tiveram de enfrentar um governo imperial metropolitano como as colônias do Caribe, Jamaica ou Cuba, por exemplo. No Brasil, os fazendeiros puderam controlar a transição, sobretudo depois que a Monarquia foi substituída pela República federativa em 1889 e os estados ganharam maior autonomia". 

Após a abolição, que ocorreu por certo desprestígio do trabalho escravo e uma mudança no modo de produção da Colônia, os escravos se viram em condições terríveis. Eles haviam conquistado a liberdade jurídica, mas não foram reconhecidos pelo estado nem se tornaram cidadãos. Com a proibição do voto dos analfabetos, levas e mais levas de escravos se viram impossibilitados de participar dos pleitos políticos. Muitos tentaram conseguir trabalho nas cidades, mas havia um "laivo" histórico e social que os tornavam seres subalternos. De modo que a maior parte dos escravos continuou a trabalhar nas fazendas nas quais já estavam instalados. A única distinção era que agora não havia mais um cadeado a prendê-los. A mudança jurídica não mudou a materialidade.

Viotti vai dizer ainda que a partir do momento da consecução da abolição, o Estado municiou-se com medidas mais repressivas. Ao invés de trabalhar para inserir o negro no novo contexto social e fazer a Reforma Agrária, como foi proposto por André Rebouças (advogado negro que fazia parte da campanha abolicionista), que com certeza teria mudado o destino do país, as autoridades aumentaram a força policial para exercer um maior controle sobre as camadas mais subalternas da população, entre as quais se inseria o negro. 

Emília diz: "Renovaram-se antigas restrições às festividades características da população negra, como batuques cateretês, congos e outras. Multiplicaram-se as instituições destinadas a confinar loucos, criminosos, menores abandonados e mendigos. Posturas municipais reiteraram medidas visando a cercear os vadios e desocupados, proibindo que vagassem pelas ruas da cidade sem que tivessem uma ocupação e impedindo-os de procurar guarida na casa de parentes e amigos. (...) Outras medidas procuraram cercear o comércio ambulante impondo severas penas a quem desrespeitasse as restrições". 

Segundo o The Guardian, na Copa do Mundo, o número de negros nos estádios não chegou a uma porção insignificante e ínfima, ou seja, um retrato do racismo e da divisão social que existe no Brasil. Analisando a situação do negro hoje no Brasil à luz da história, nota-se claramente que o processo de mudança ainda é bastante incipiente. Em um país que 50,7% da população (dado do IBGE) se classifica como negra, por que menos 10% de negros são parlamentares? Por que segundo o Censo do Poder Judiciário, apenas 1,4% dos magistrados brasileiros se declaram negros? Por que um negro no Brasil tem oito pontos percentuais mais chances de ser assassinado do que alguém auto-proclamado como branco?

Outras perguntas devem ser feitas, além daquela estampada na manchete: se mais da metade da população é constituída por negros, onde estão os negros advogados? Os negros que são professores universitários? Os negros que são empresários? Os negros que são médicos? Os negros que viajam para o exterior?

Se, de fato, metade da população do Brasil é constituída de negros, onde é que está grande parte desse contingente expressivo? Uma resposta surge: nas periferias, nas cadeias, trabalhando na construção civil ou em funções de menor prestígio social; nas levas de desempregados.

Lendo a reportagem, percebi o quanto o Brasil precisa fazer um acerto de contas com a sua história. Os negros continuam até os dias de hoje sendo vítimas de toda sorte de preconceitos e preterições por parte do Estado. Como a frase que ouvi certa vez da boca de um jovem de periferia em uma reportagem na TV: "A única instituição do governo que vem aqui é a polícia". 

DA COSTA, Emília Viotti. A abolição - 8a edição. Editora Unesp. São Paulo. 2008. 

domingo, julho 27, 2014

"Esquerda e Direita" por Ariano Suassuna

O texto abaixo me deu uma grande alegria quando eu o li. Acredito que Ariano Suassuna, que era um grande socialista, tenha conseguido colocar de forma poética, filosófica e teológica o porquê da existência das concepções de "esquerda" e das concepções de "direita". Penso que as pessoas que alegam a não existência dessa dicotomia, queiram justamente camuflar essa distinção para que a miséria e a injustiça continuem a grassar na sociedade. A desigualdade ou a construção do campo esquerda-direita se deu no dia em que alguém disse "isso aqui é meu". A partir desse momento, o mundo passou a ser habitado por aqueles que detêm certa propriedade e aqueles que não possuem a propriedade. 

O mundo está crivado por essa diferença. E enquanto ela existir, faz-se necessário lutar pela justiça, pela equidade. É isso que justifica a defesa pelo social. As regras da sociedade de classe dizem: "Todos devem correr mil metros". E todos querem correr os mil metros para sobreviver. O problema é que algumas pessoas vão de cavalo e, outras, vão andando. Ou seja, não preciso dizer quem vai se dar melhor nessa competição. A própria bíblia está repleta de personagens que estiveram do "lado esquerdo do fronte", a defender a justiça e dignidade dos mais fracos. É só abrir em qualquer um dos livros proféticos. 

Abaixo, o texto. Excelente!

Esquerda e Direita

Não concordo com a afirmação, hoje muito comum, de que não mais existem esquerda e direita. Acho até que quem diz isso normalmente é de direita.

Talvez eu pense assim porque mantenho, ainda hoje, uma visão religiosa do mundo e do homem, visão que, muito moço, alguns mestres me ajudaram a encontrar. Entre eles, talvez os mais importantes tenham sido Dostoiévski e aquela grande mulher que foi santa Teresa de Ávila.

Como consequência, também minha visão política tem substrato religioso. Olhando para o futuro, acredito que enquanto houver um desvalido, enquanto perdurar a injustiça com os infortunados de qualquer natureza, teremos que pensar e repensar a história em termos de esquerda e direita.

Temos também que olhar para trás e constatar que Herodes e Pilatos eram de direita, enquanto o Cristo e são João Batista eram de esquerda. Judas inicialmente era da esquerda. Traiu e passou para o outro lado: o de Barrabás, aquele criminoso que, com apoio da direita e do povo por ela enganado, na primeira grande “assembléia geral” da história moderna, ganhou contra o Cristo uma eleição decisiva.

De esquerda eram também os apóstolos que estabeleceram a primeira comunidade cristã, em bases muito parecidas com as do pré-socialismo organizado em Canudos por Antônio Conselheiro. Para demonstrar isso, basta comparar o texto de são Lucas, nos “Atos dos Apóstolos”, com o de Euclydes da Cunha em “Os Sertões”. Escreve o primeiro: “Ninguém considerava exclusivamente seu o que possuía, mas tudo entre eles era comum. Não havia entre eles necessitado algum. Os que possuíam terras e casas, vendiam-nas, traziam os valores das vendas e os depunham aos pés dos apóstolos. Distribuía-se, então, a cada um, segundo a sua necessidade”. Afirma o segundo, sobre o pré-socialismo dos seguidores de Antônio Conselheiro: “A propriedade tornou-se-lhes uma forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos: apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota parte, revertendo o resto para a companhia” (isto é, para a comunidade).

Concluo recordando que, no Brasil atual, outra maneira fácil de manter clara a distinção é a seguinte: quem é de esquerda, luta para manter a soberania nacional e é socialista; quem é de direita, é entreguista e capitalista. Quem, na sua visão do social, coloca a ênfase na justiça, é de esquerda. Quem a coloca na eficácia e no lucro, é de direita.

Daqui

sábado, julho 19, 2014

Rubem Alves e o meu aprendizado a respeito do tempo e da vida

  "Poesia é uma qualidade do olhar"/ "O mundo para mim é um instrumento cósmico onde dormem as mais belas melodias". - Rubem Alves

O tempo como agente

Diz Agostinho que "o tempo produz efeitos admiráveis dentro de nós". O tempo possui um cinzel invisível que vai nos esculpindo tanto física quanto espiritualmente. Recordo-me das frases iniciais de Erico Veríssimo em Solo de Clarineta, quando ele diz que "as marcas do tempo estavam impressas no pergaminho do seu rosto". Uma metáfora que define os enunciados do tempo escritos em nós. É trivial. É natural. Mas todos morrem. Já perdi tantas pessoas queridas - meu pai, meu avô materno, minha avó paterna, conhecidos, amigos. E cada novo dia, o movimento irrefreável do rio da vida dobra mais uma curva em sua viagem. O tempo é aliado da morte. É seu companheiro. Os dois caminham de mãos dadas como no filme de Ingmar Bergman. A morte aparece para jogar com a sua vítima. Ele tenta enganá-la. Tenta negociar, mas bastou o tempo para fulminá-lo. Quando ele menos esperava, ela apareceu com sua face fria e o tragou.

A morte nos machuca, pois aqueles a quem ela faz de vítima, sabemos, nunca mais se verá. É um "sequestro", uma violência abrupta, um laceração nas emoções. Uma cisão, um corte, um passar a esponja na existência de cada um de nós. Quem vai não volta. Quando se morre, tudo termina. A expectativa da morte é a realidade mais trágica para o ser humano. 

Hoje, o tempo trouxe consigo a sua companheira e ceifou a vida de uma das figuras responsáveis por um pouco de minha formação ontológica - Rubem Alves. Fiquei sabendo da morte de Rubem Alves no início da tarde de hoje. Há dias eu acompanhava o sofrimento pelo qual ele passava. Enquanto corria hoje no final da tarde, eu ouvia a End of the Road, de Eddie Vedder, que faz parte da trilha sonora do filme Dentro da Natureza  Selvagem, pensei sobre esse "fim da estrada" a qual todos nós chegaremos, enquanto olhava para as nuvens alaranjadas, com feições sanguinolentas. A aragem fria do início da noite produziu reverberações poderosas. Acabei ficando triste.

O tempo da descoberta

Descobri Rubem Alves nos idos de 2002. Estudava em um seminário. E ao conhecer as suas crônicas, impressionei-me com sua sensibilidade. De repente, passei a procurar para ler tudo que dizia respeito a ele. Contudo, percebia que quando falava de Rubem Alves, alguns dos meus colegas seminaristas me encaravam com certa desconfiança. Afinal, entendi o porquê de tanto medo dos meus colegas. Rubem havia sido um seminarista, assim como eu o era; chegou a ser pastor, mas sua liberdade de pensamento e sua forma de "caminhar" acabaram por criar problemas. Em plena Ditadura Militar, a Igreja Presbiteriana do Brasil o denunciou ao serviço de repressão do Regime. Se ele ficasse por aqui, certamente seria preso, torturado e teria um destino incerto. Enfim viajou para os Estados Unidos e lá fez mestrado e doutorado, contribuindo proficuamente para lançar as bases daquilo que se tornou conhecido como Teologia da Libertação. Sua Teologia da Esperança é o embrião que deu feições ao movimento que teria nomes como o peruano Gustavo Gutierrez e o brasileiro Leonardo Boff como ícones. 

O pensamento teológico de Rubem Alves, de certa forma, acabou por me influenciar. Desvinculei-me do dogmatismo da fé quando li Protestantimo e Repressão e Dogmatismo e Tolerância. Estes, acredito, são livros que me marcaram e que inscreveram em mim o discernimento filosófico e estético que tenho sobre a espiritualidade; me tiraram o"cabresto religioso" que estava em meu pescoço e me fazia olhar somente para o chão. Quando li Rubem Alves, pude olhar para o céu e me maravilhar com as cintilações de um azul que nunca enxergara. Os dois livros estão guardados carinhosamente em minha biblioteca e, de vez em quando, pego-os, admiro-os, folhe-os e termino tudo com um grande sorriso.

Passei a perceber que em Rubem Alves se torna fato aquela frase dele: "As palavras têm o poder de fazer acordar os desejos adormecidos dentro do corpo". É como se o corpo fosse uma lápide, um jazigo, onde estão congelados os rios simbólicos. As palavras são sóis capazes para dar vida a esse mundo inóspito. São elas, tão próprias do mundo humano, elementos capazes de fazer morar em nós a faculdade da alegria. A palavra é capaz de fazer ressuscitar o corpo. Ela é a eucaristia vivificadora. O corpo é uma realidade biológica, orgânica, mas o que nos torna humanos é a capacidade de criação dos símbolos. Criamos, pois isso é inerente aos seres humanos. Portanto, esse corpo é o espaço gerador de novas ideias, da capacidade de apreensão do mundo. Ou seja, tudo mora no corpo. A vida e a morte. Os abismos e as montanhas. Os jardins e os pântanos. O céu e o inferno. Os dias e as noites. E para subverter a logicidade da matéria, é necessário treinar o olhar. Rubem costumava repetir uma frase do poeta inglês William Blake: "O tolo ao ver uma árvore, enxerga somente uma árvore; o sábio, por sua vez, ao ver uma árvore, enxerga uma poesia". 

Após entender que existe um jogo simbólico por traz das coisas, transformei isso em uma realidade para os meus devaneios teológicos e espirituais. Rubem costumava apontar para o ritual cristão da santa ceia, dizendo que ali estava "o símbolo de uma ausência" - o pão e o vinho. Observem como ele conseguia fazer poesia com as mínimas coisas. E que o mundo estava repleto de metáforas. "E toda metáfora é um salto sobre o abismo". É esse jogo com a palavra que torna o universo de Rubem Alves tão encantador. Flertar com o seu pensamento é passar a viver com os arco-íris, com os arrebóis mais encarnados, com os jardins mais coloridos, com a sensação de que estamos saboreando as carnes delicadas de um caqui.

O pensamento de Rubem Alves se funde com um dos seus mestres - Nietzsche. Diz o alemão: "Estou convencido de que a arte representa a tarefa realmente metafísica do homem... A existência do muno só se justifica como um fenômeno estético". Acredito que estas palavras definam o que foi e como deve ser compreendido Rubem Alves.

O tempo do real (tempus fugit)

Ao saber da notícia nefanda, fez-se uma noite escura dentro de mim. Fiquei com um mal-estar horrível. É como se eu tivesse perdido alguém muito querido e que vivia comigo todos os dias. Fiquei triste por saber que não teremos textos inéditos; as palestras sempre encantadoras; as palavras embriagadas pelo cheiro de capim gordura, pelos ipês floridos, pelo barulho dos carros de boi, dos mistérios da terra de Riobaldo - Minas Gerais. Rubem nunca se afastou completamente de suas origens. Apesar de viver boa parte de sua vida em Campinas, interior de São Paulo, trazia em sua alma as aprendizagens iniciadas em Boa Esperança-MG - sua cidade natal. É como aquele poema ontológico de Carlos Drummond de Andrade, Confidência do itabirano.

Seu corpo, onde morou tantas poesias, será cremado e possivelmente as cinzas serão atirados ao vento, para que possam polinizar as flores a fim de que elas se tornem mais belas; para que as pintagueiras surjam mais vermelhas e atraentes; para que os flamboyants e ipês surjam como cabeleiras inflamadas a produzir beleza; para que os jardins sejam fecundados e possam se fortalecer. 

Em um país e em um tempo como o nosso, perder Rubem Alves é algo de muita seriedade. Mas ficarão as suas palavras, que virão como revoadas de pássaros e farão morada em mim, em nós... Marcharão numa procissão em direção ao interior de catedrais secretas. Proferirão discursos, declamarão poesias e atestarão com um verso de Manuel de Barros - repetido tantas vezes por ele: "É mais presença em mim aquilo que me falta". 

Obrigado, Rubem! Se eu não tivesse encontrado os seus textos, talvez eu não fosse aquilo que sou. O rio continua a correr e suas águas são sempre novas. Olhemos para as árvores e encontremos poemas.

quinta-feira, julho 10, 2014

Um país de nomes e fatos contraditórios

"O povo-massa, sofrido e perplexo, vê a ordem social como um sistema sagrado que privilegia uma minoria contemplada por Deus, à qual tudo é consentido e concedido"
Darcy Ribeiro, in O povo brasileiro.

No início do ano, quando fui ao Nordeste, tive a oportunidade de atravessar o estado do Piauí. Foi algo premeditado e prazeroso. Queria ver o Brasil por dentro; enxergar as vísceras de um país esquecido e que está separado do outro do litoral por séculos - evocando Euclides da Cunha. O que me chamou a atenção foi como muitas cidades e monumentos públicos foram "batizados" com nomes de políticos ou antigos oligarcas que dominaram o estado e que passaram o cetro para familiares conservadores, que se beneficiam do amasiamento com a coisa pública, um caso de "fornicação" descarada.

Mas esse não é um problema unicamente do Piauí. Há no Brasil inteiro casos de como os figurões da política deixaram os seus nomes estampados em ruas, construções, cidades, escolas, etc. Em São Paulo, por exemplo, existe a Rua Dr. Sérgio Fleury, um dos delegados mais emperdenidos dos tempos da Ditadura e chefe do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), responsável por torturar e matar uma quantidade enorme de pessoas. Há ainda a Avenida Castelo Branco, um dos generais-presidentes da Ditadura e responsável por um dos momentos de maior repressão do governo militar. Ou ainda, a Escola Dr. Garrastazu Médici, no Rio de Janeiro. Em Brasília, existe a Ponte Costa e Silva. Fico a me perguntar como é admissível tais casos. Em meu simplismo, pergunto: "Por que não se faz uma lei a fim de modificar tais nomes ou então se proibir de colocar nomes de políticos em algo público?" Ainda mais quando tais pessoas estão ligadas ao crime, à tortura e ao genocídio.

Esses casos ilustram um dos grandes e gritantes problemas do Brasil, que é falta de conhecimento da sua própria história. Ontem, por exemplo, foi feriado em São Paulo, que comemorou a chamada Revolução Paulista ou Revolução Constitucionalista, de 1932. O que não se conta é que a data de 9 julho marca a tentativa das oligarquias paulistas da República Velha voltar ao poder, após a sua derrocada em 1930. O início da Era Vargas pôs fim a certo tipo de liberalismo conveniente, que dava a São Paulo e Minas Gerais o comando do país. Para isso, as elites mobilizaram a população, que iniciou um movimento contra o restante do país. Havia uma imagem criada e repetida, que dizia que São Paulo era uma locomotiva que puxava vinte trens vazios. Ou seja, os demais estados do país e muitos intelectuais conservadores como Monteiro Lobato também encabeçaram o movimento. Segundo Boris Fausto: "Muitas pessoas doaram joias e outros bens de família, atendendo ao apelo da campanha "Ouro para o bem de São Paulo"".

A finalidade do movimento orquestrado pelo grupo conservador paulista era retomar o poder e lançar, refundar, a hegemonia que tivera. Hoje, os nomes utilizados representam uma contradição de termos. E isso explica, talvez, o conservadorismo tão visível no estado mais rico do Brasil e como certos grupos políticos (vide o PSDB, o sucessor direto dessa burguesia ressentida) permanecem vivos e encabeçam um movimento pelo atraso. 


quarta-feira, julho 09, 2014

Futebol e rasteira - de ontem, hoje e sempre

"A rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência!"
 Graciliano Ramos

Não sou um especialista em futebol. Acompanho alguns jogos. Dou os meus pitacos. E costumo me entusiasmar quando o São Paulo ganha. Claro, nos últimos anos o time tem amargado uma série de insucessos desastrosos. Sou da opinião de que isto é resultado da má gestão que vem lá da presidência do clube. Um time bem acertado em campo é sinal de que possui uma boa administração interna; que há planejamento; a parte financeira traduz transparência, lisura e o resultado pode ser visto em campo. Resgato aquela máxima vulgar de Aristóteles: "O homem é um animal político". E como não poderia deixar de ter uma certa resplandecência nessa frase, o futebol por ser uma produção do engenho humano, também, passa pela política. 

Não entendo nada de esquema tático. Sou um crítico acintoso. Às vezes, dou minhas cabeçadas em opiniões desajustados. Todavia, vez ou outra, me pego vendo uma daquelas partidas de meio ou de final de semana. É assim. Mas, curiosamente, desde que havia começado a Copa, eu me vi metido em um ceticismo colossal. Não senti entusiasmo algum por tudo aquilo que foi desenhado com garranchos à guisa de se transformar em algo grandioso, valoroso, pelos homens sabidos de nossa terra.

O futebol é um esporte que contagia pela sua própria natureza. Ele contraria a lógica do corpo e da razão humana. É praticado com os pés. Sendo que os pés são utilizados para manter o equilíbrio corporal e, com o auxílio das pernas, nos levar aos mais variados lugares. Por que não o praticamos com as mãos? Elas são mais nobres. Sem elas, não teríamos chegado ao nível de civilização a que desfrutamos. Contudo, talvez, se o fizéssemos não teria a mesma graça. As mesmas pernas que somente "servem" para conduzir, para levar, são capazes de promover danças mágicas, bailes desnorteadores no adversário como fazia um Garrincha, por exemplo.

O futebol chegou por aqui no final do século XIX, trazido pelos engenheiros ingleses e durante as primeiras décadas do século XX foi esporte das elites. Dizia Graciliano Ramos em uma crônica de época, vociferando com sua pena irônica contra o esporte: "Não seria, porventura, melhor exercitar-se a mocidade em jogos nacionais, sem mescla de estrangeirismo, o murro, o cacete, a faca de ponta, por exemplo?" Lima Barreto por não ser branco foi um dos mais destacados detratores do novo esporte.

Com o passar do tempo, o futebol se tornou uma unanimidade nacional. Existe até uma sociologia do povo brasileiro a partir do futebol, como o fez Roberto da Matta. Há no brasileiro uma capacidade para o improviso, para a dança, para o gingado, herança vinda da África. Tais prerrogativas foram úteis ao novo esporte que por aqui chegou. É um esporte que se adaptou bem ao jeitinho do brasileiro. Acostumamo-nos a isso. Nosso sucesso reside nesta plasticidade do brasileiro e que também é parte inviolável do esporte.

O Brasil é uma das pátrias mais apaixonadas por este esporte. Todavia, uma fragilidade estrutural, que se relaciona com a política, colocou os apaixonados pelo esporte de sobreaviso. Ou seja, o futebol brasileiro enfrenta uma crise séria - da seleção, passando pelos clubes da série A, à última série. Ontem, foi um dos dias mais amargos para a história do futebol brasileiro. Não existe registro histórico de tão grande derrota. O Brasil havia perdido por 6X0 para o Uruguai, mas isso havia se dado ainda no início do século XX. Existem alguns fatores a serem colocados:

(1) aquele que diz respeito a um contexto mais imediato, ou seja, o do próprio jogo. A mídia, talvez, seja a responsável por um trabalho psicológico negativo, já que ela vende produtos e com isso se conecta ao interesse das grandes empresas. Vendeu-se desde o início da Copa a mensagem de que esta seria a competição do Neymar. Ela, nesse sentido, trabalhou contra o time criando especulações; fazendo um movimento negativo; gerando um entusiasmo que não deveria existir, pois o time era ruim. Os jogadores cantaram o hino nacional segurando a camisa de Neymar, como se ele estivesse morto ou fosse a taça da competição. Jogo é estratégia e concentração. E nesse sentido, o time brasileiro estava com os pensamentos em outro espaço. Ao tomar os gols, como se pôde ver, houve uma desestabilização, uma desarticulação psicológica. Questões psicológicas foram determinantes para a derrota brasileira e para a vitória alemã.

(2) apesar de o Brasil ser uma país onde se joga o futebol mais bonito do mundo, a administração do esporte por aqui precisa passar por uma mudança. Ainda existe o mito de que se tem o herói, o messias redentor, capaz de decidir a partida a qualquer momento, como se trabalhou o tempo todo em torno de Neymar. A Alemanha provou que essa tese é ultrapassada. Já caducou. Hoje, quem manda no futebol joga coletivamente. É o espírito de equipe. A mídia precisa de heróis para criar marketing. O futebol brasileiro deve refletir a sua condição. Olhar para o desenvolvimento que as outras equipes conquistaram. Afinal, foi uma Copa em que o equilíbrio foi reinante em boa parte das partidas. Simplesmente, porque houve o entendimento de que "esquema tático também ganha jogo". 

(3)  em texto amplamente divulgado pela mídia pela internet, o ex-jogador Romário fez críticas contundentes ao modo como o futebol tem sido conduzido no Brasil nas últimas décadas. Ao ler o texto, fiquei com a impressão de que os gestores do futebol brasileiros são mafiosos, que vivem dos saldos gordos que o nome Seleção Brasileira gera. Imagino as centenas de milhões que são rolados com patrocínios e direitos. Trata-se, com certeza, de uma agremiação que precisa de toda a atenção por parte dos torcedores. Boa gestão repercute no campo; e má gestão, idem. 

Os brasileiros sentiram uma melancolia nunca antes imaginada. Amargaram no dia seguinte ao jogo uma verdadeira ressaca moral. A Copa pode ensinar uma lição: teremos um segundo semestre árduo. As eleições começam a avultar no horizonte. Em poucas semanas será o assunto do momento. Esqueceremos o fiasco futebolístico. Outras torcidas vão se armar. Alguém terá que pagar o resultado dos gastos. Vislumbro um resto de ano bastante enigmático. E daqui a dois anos as Olimpíadas serão por aqui. Ou seja, mais gastos e novas euforias. Somos um país estranho. Termino esse texto bambo com uma citação completa da epígrafe, que serve de metáfora para o momento atual: 

A rasteira! Este, sim, é o esporte nacional por excelência!"
Todos nós vivemos mais ou menos a atirar rasteira uns nos outros. Logo na aula primária habituamo-nos a apelar para as pernas quando nos falta a confiança no cérebro - e a rasteira nos salva. Na vida prática, é claro que aumenta a natural tendência que possuímos para utilizarmos eficientemente a canela. No comércio, na indústria, nas letras e nas artes, no jornalismo, no teatro, nas cavações, a rasteira triunfa.
Cultivem a rasteira, amigos!
E se algum de vocês tiver vocação para a política, então, sim, é a certeza plena de vencer com auxílio dela. É aí que ela culmina. Não há político que a não pratique. Desde S. Exa. o Senhor Presidente da República até o mais pançudo e béocio coronel da roça, desses que usam sapatos de trança, bochechas moles e espadagão da Guarda Ncional, todos os salvadores da pátria têm a habilidade de arrastar o pé no momento oportuno.
Muito útil, sim senhor.
Dediquem-se á rasteira, rapazes.