segunda-feira, dezembro 27, 2010

C.S. Lewis, a alegria e Nárnia

Escrito há 2 anos.

Descobri o mundo de C.S. Lewis em 2003. Estudava à essa época num seminário teológico. Foi um encontro formidável. Ouvia falar dele – de seus encantos literários, de seus textos simples e profundos. A curiosidade me levou a descobri-lo. O primeiro livro que li foi Surpreendido pela Alegria. No ano de 2003 li este livro três vezes. Li cada página com senso de devoção. Lewis conseguiu me fisgar com o seu estilo sóbrio, mas rico em fantasias. Inoculou em mim o desejo pelo saber. O livro conta as experiências pessoais de Lewis rumo à conversação à fé cristã. O que causou profunda alegria em mim foi justamente o amor de Clive Stamples, significado para as duas letras inicias, pelos livros.

Lewis perdeu a mãe aos 9 anos. Ficou somente com o pai e o irmão. Daí começam as suas investidas ao mundo silencioso e eloqüente da literatura. Leu os clássicos. Inteirou-se das mitologias grega, celta, nórdica. Descobriu o Anel do Nibelungo de Richard Wagner. Criou mundos imaginários. Leu os filósofos. Questionou os posicionamentos dos pensadores. Solidificou seu próprio pensamento.

A casa de Lewis era um recanto amplo, enorme, com muitos livros. Conta Lewis que haviam livros por todos os cantos naquele espaço. A casa era uma grande biblioteca. Isso me faz lembrar de um conto de Jorge Luis Borges – Biblioteca de Babel. Borges cria no texto a imagem do mundo como se esse fosse uma grande biblioteca. Há nesse mundo escadarias com livros por todos os lados. Uma arquitetura bibliográfica. Lewis nos dá a entender que a casa dele era um mundo de livros assim como no conto de Borges. Os livros estavam em toda parte – nos armários, embaixo das escadas, no sótão, nos quartos de hóspedes. Os livros possibilitaram a Lewis fugir da solidão. No filme de 1993, Mundo de Sombras[1], que conta a história do Lewis já como professor em Oxford e como um escritor bem sucedido, dizer: “Lemos para saber que não estamos sozinhos”. Essa afirmativa resume justamente a infância e grande parte da vida Lewis.

O livro me fascinou ainda por reproduzir os aspectos mais vivos do mundo inglês: O frio inglês, a disciplina, a formalidade. O zelo pelo saber. A descrição das escolas tradicionais da Inglaterra. Os conflitos nos colégios internos. Percebemos no livro o crescimento do intelectual, o surgimento da sede pelo saber. Lewis transformou-se num dos mais notáveis intelectuais no século XX na Inglaterra. A alegria surpreendeu Lewis. A alegria a que ele se refere é a fé cristã. Ou seja, a sua conversão à fé cristão mudou completamente o itinerário de sua existência. De agnóstico cínico e despreocupado, Lewis passa a ser uma das vozes mais importantes durante a Segunda Grande Guerra. Suas conferências públicas lotavam os auditórios. Seus programas de rádio eram ouvidos por milhares de pessoas na Inglaterra e nos Estados Unidos.

Lewis não se notabilizou apenas escrevendo livros e artigos cristãos. Ele era um extraordinário catedrático em literatura medieval. Conhecia profundamente o mundo dos saberes. Era ainda um profundo conhecedor da filosofia antiga e o mundo dos mitos. Ou seja, essa base forneceu a Lewis um importante ferramental para colocar em seus livros.

O escritor dedicou boa parte dos seus 38 livros, a falar do sofrimento. No filme Terra de Sombras, em meio a uma conferência, ouvida com atenção pelos presentes, Lewis diz: “A dor é o cinzel de Deus”. Esta frase resume muitas das preocupações do pensador. Percebemos aqui a figura do teólogo. Ao se converter ao cristianismo no início da década de 30, esta experiência rendeu a Lewis um tipo de influência que transformaria o seu pensamento. Tornou-se uma espécie de teólogo livre da Igreja Anglicana. Essa foi uma das alegrias de Lewis. A outra foi a poetisa Joy Gresham, mulher que conheceu e com quem viveu um terno romance, que lhe rendeu uma experiência de agrura. O romance de Lewis com Joy foi interrompido por um câncer. Joy morreu poucos anos após ter conhecido o inglês. Isso ampliou as experiências de Lewis com a dor.

Todavia, o grande feito de Lewis como escritor, acredito, tenha sido o ato de criação do mundo de Nárnia. As Crônicas de Nárnia são uma sucessão de sete livros escritos de forma aleatória. Tais crônicas narram os acontecimentos que se dão em Nárnia, uma espécie de mundo paralelo onde as experiências constituem-se em grande metáforas de temas bíblicos. Lewis conseguiu desenvolver com habilidade imaginativa um dos mundos fictícios mais belos do século XX.

A primeira crônica foi escrita em 1950 (O leão, a feiticeira e o guarda-roupa). Esta com certeza, deve ser o livro mais conhecido da série. O último foi escrito em 1956 (A última batalha). As demais crônicas, são: Príncipe Caspian (1951); A viagem do peregrino da alvorada (1952); A Cadeira de Prata (1953); O cavalo e o seu menino (1954); e O sobrinho do mago (1955). A figura mais expressiva do mundo de Nárnia é Aslam, o grande leão. Fica explícito, que esse leão personifica a figura de Jesus Cristo. Ele aparece nas sete crônicas. Nunca li nada a respeito, mas acredito que o número de sete crônicas não seja fortuito. Na tradição cristã, o número sete representa a perfeição. O escritor deve ter partido desse pressuposto para escrever as sete crônicas.

O que mais impressiona na série de Nárnia é a capacidade que Lewis tem para criar e fantasiar. Os contos de fadas são contados com outros valores. Os livros foram escritos com uma linguagem simples – para criança. O caráter literário das crônicas não oferece grande complicação na interpretação. Mesmo que se conheça a Bíblia superficialmente, não é difícil identificar as metáforas escritas com tanta beleza. Todavia, a quantidade de adultos que têm lido a obra é bastante considerável. Muitas teses e livros têm sido escritos sobre as crônicas, o que apenas revela o caráter literário insuperável.

É impossível ler as crônicas e não se apaixonar pela beleza, pelo jogo narrativo, pelas lições, pela condução proverbial de cada fato. O público brasileiro ainda não conhece completamente os encantos do mundo de Nárnia, infelizmente. Conhece de forma razoável, talvez, os filmes da série que têm sido lançados pela Disney. Todavia, o filme não se compara com a beleza do texto da literatura lewisiana. Apesar dos efeitos computadorizados do cinema, o que serve par criar um aspecto mais fiel aos fatos descritos em Nárnia, a imaginação, o retrato imagético que se arma na mente não é comparável no processo de descoberta, de penetração no mundo de Aslam, do que quando se ler as crônicas.

Impressiono-me com as crônicas mais pelo aspecto literário do que pelas alegorias religiosas. O aspecto mais extraordinário e fabuloso é imaginar como alguém foi capaz de escrever algo tão belo, tão rico de significados. Assim como Tolkien, Lewis foi capaz de misturar elementos mitológicos com os aspectos mais encantáveis dos contos de fadas e transformou tudo isso numa literatura do mais alto e requintado valor para todas as eras da humanidade.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: Segunda-feira, 1 de dezembro de 2008, 10:00:40.

[1] O filme conta com Anthony Hopkins no papel principal, ou seja, como C.S. Lewis.

sábado, dezembro 18, 2010

Cobain, um romântico

O Nirvana, o grupo musical do lendário vocalista e guitarrista Kurt Cobain, foi uma das bandas que mais ouvi em minha adolescência. Constituía uma necessidade. Alimentava-me com o som sujo, distorcido e contagiante do grupo. Admirava a imagem rebelde do vocalista. Sua voz gritada era atraente, necessária. Formava uma unidade poderosa com o som ruidoso que a banda produzia. Embalei-me por muito tempo ao som do grupo de Seattle, a mítica cidade do movimento grunge, que viu surgir bandas como Pearl Jam, Alice in Chains, Mudhoney, Soundgarden e uma quantidade considerável de outros grupos menores. Recordo-me como se fosse hoje da fragrância da música de Seattle, principalmente do Nirvana, banda para a qual não havia competidores.

Estou escrevendo estas palavras, pois ontem assisti a um documentário sobre a vida de Kurt Cobain. E confesso que todas às vezes que penso no jovem Kurt, bate-me uma profunda consternação. Fico a inquirir: “Como pode? Um jovem talentoso como ele...”. Vem-me a ideia de que Cobain foi uma vítima da desagregação familiar. Sua vida, desde a separação dos pais, foi um contínuo gesto irregular. A criança doce e alegre da infância, transformou-se numa criatura de humor variável, instável. Quando o fausto e o dinheiro vieram, o moço taciturno não teve estruturas para suportar.

Pesa contra Kurt o uso exacerbado de drogas. Desde a adolescência, Kurt experimentara todo tipo de entorpecente. A heroína surgiu como uma rainha, uma musa poderosa. Supriu os delírios do vocalista. Sua sede pelo irracional era voraz. Muitas de suas apresentações foram realizadas sob o efeito da droga devastadora. Tornou-se um escravo da substância. Uma espécie de molambo humano sem vontade. Loucuras. Excessos. Depressão. Angústias. Solidão. Uma dor imaginária que lhe corroia as entranhas. Cobain foi devorado pela irracionalidade.

Vejo-o com uma sensação de melancolia. Comisero-me com a sua situação. O jovem talentoso, exímio desenhista, com uma extraordinária vocação para a arte, transformou-se num esquizóide. Absorveu o niilismo de uma geração. Transformou-se em arquétipo. Foi tudo aquilo que milhões de jovens desejam ser. O mal-do-século fez anoitecer a sua mocidade com possibilidades ensolaradas.

Dos álbuns gravados pelo Nirvana, consigo fazer algumas leituras:

(1) Bleach (1989), o famoso álbum cru e sujo, gravado pela Sub Pop, é um manifesto grunge. Cada faixa é gritada; a guitarra de Kurt; os solos são secos, quase inexistentes. Prevalece a distorção. Os momentos mais líricos e comportados ficam por conta da faixa About a Girl;

(2) Nevermind (1991), é a explosão, a consagração. O álbum que mostra o acerto, a guinada para o céu; o disco dos milhões, da projeção. Percebemos um Kurt acertado. A fama o atinge em cheio. De um mês para o outro, o garoto com pouco mais de vinte anos, torna-se um milionário. Antes, não possuía moradia certa e, de repente, dezenas de milhões de dólares jorram na conta da banda. As músicas são excelentes. A sonoridade é variada. Possui momentos ensolarados (On a Plain); de um pop sujo e cantante (Come as you are); refrãos melados e pegajosos que não se viam desde os Beatles (Lithium, In blom); nervosos e bons para sacudi a cabeça, agredir a garganta (Stay Away, Territorial Pissings);

(3) Incesticide (1992), é um álbum que segue uma temática semelhante ao Bleach. Possui músicas sujas e gritadas. É uma compilação de músicas da banda - b-sides. Os bons momentos ficam com as faixas Dive, Sliver, Been a Son, Downer, e Aneurysm;

(4) In Utero (1993), este é o disco do desespero, do pedido de socorro. In Utero é um disco de audição nervosa. O som é denso, sufocante. Uma força magnética provoca ruídos, leva-nos a uma atmosfera de letras que falam de “esperma”, “cogumelos”, “antiácidos”, “loucuras”, “tranqüilizantes”. Certamente Kobain estava no útero da dor, do descompasso, da desagregação. Algumas overdoses aconteceriam. Tentativas de suicídio. O comportamento bipolar. O corpo novo transformou-se num escravo do vício. A apresentação que o grupo fez no Brasil em 1993, expõe o estado de penúria do músico. Cena deprimente é aquela em que ele caminha de quatro no palco, porque não conseguia se manter de pé. O estado de abstinência degradava o corpo magro. O organismo exigia o passaporte para o nada.

(5) Unpluggedd em New York (1994), é o álbum em que ele diz: “Adeus! Estou indo embora!”. Naquele ano o vocalista se suicidaria. Compraria um espingarda de caça e daria um tiro em si mesmo. Deixaria uma carta na qual explicava que estava cansado. Era um impostor. Enganara a todos. Penso que o maior de todos os enganos de Kurt foi aquele aplicado a si mesmo. O jovem músico cavou a sua própria ruína. A sua arte o matou. Os excessos. O flerte demorado com a irracionalidade. A heroína que anemizou a sua potência de vida, tudo isso se constituiu numa viagem fatal.

Ainda ontem escutei três ou quatro álbuns da banda – seguidamente. Ouvi Bleach e Incesticide, algumas faixas de Nevermind; não suportei o In Utero. Achei-o ácido em demasia, com muitas esporas e excrescências ruidosas. Ao final, fiquei com um banzo estranho. Um enorme vazio. Como se me tivessem tirado o direito de sorrir. A música de Kurt está cheia de Cobain. Talvez tenha sido isso que vitimou o compositor. Kurt passou muito tempo olhando para a sua arte e não suportou. Os aspectos noturnos de sua produção transformaram-se numa força labiríntica que o enfermou até a morte.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: sexta-feira, 17 de dezembro de 2010.

sexta-feira, dezembro 10, 2010

A teia frágil da vida

Fato curioso se deu, o que me permitiu uma reflexão afetada, excessivamente magra. Na verdade, um fato levou ao entendimento de outro fato. Foram quase complementares. Emendaram-se. O conúbio dos acontecimentos e as impressões suscitadas me deixaram satisfeito.

Estava numa fila de mercado. Os produtos da mercancia para o almoço estavam nas mãos. A enorme fila movia-se preguiçosamente como uma serpente cansada. Olhava as mercadorias. Os salgados, os doces, as revistas, as bugigangas miúdas a formarem paredes no corredor minúsculo. São colocados como que para despertar o desejo de crianças desatentas. São verdadeiras redes, arapucas. Ao longe eu avistei uma pequena planta, uma espécie de bonsai. Fiquei impressionado com a delicadeza do pequeno arbusto. As folhas pareciam de uma pitangueira. Ali, estática, a beleza miniaturizada, fez-me pensar na vida. Como poderia existir algo assim? Como a natureza é encantadora! O silêncio de eras a fecundar processos. A vida teimosa que brota e se estabelecesse em todos os locais. Ofereça as condições e ela instala-se. A fragilidade da planta me impressionou. Ela não era bela por ser grande e ter características extraordinárias. Simplesmente, ela era bela por ser pequena, cândida, delicada, cheia de silêncios poéticos.

A plantinha me fez pensar num episódio que se dera lá em casa. Uma borboleta entrou em nossa casa. As portas e janelas estavam abertas. A criatura voadora introduziu-se e por lá ficou. Minha mãe ficou feliz com a visita. Segundo ela, aquela novidade era mensageira de presságios positivos. Enxergou augúrios faustosos no simples vôo de uma borboleta. Crédula em demasia, minha mãe é uma criatura incrível. Aquiesci consternado, enxergando absurdos naquela situação.

A borboleta era enorme. As asas eram negras, com desenhos curiosos – pequenas curvas nas extremidades das asas; uma espécie de olho em cada uma das excrescências que lhe saíam do corpo exíguo. Voava por todos os lados. Pousava no teto. Embrenhava-se em ocos escuros. Outro sujeito a teria fulminado nos primeiros momentos da aparição inusitada.

Mas comecei a perceber após três ou quatro dias, que os seus saracoteios aéreos estavam cada vez mais cansados. Voava com dificuldades. Seus vôos passaram a ser rasteiros. Não pousava mais no teto. A mudança era clara. As acrobacias áreas dos primeiros dias transmudara-se em desconexas ações irregulares. Certamente a criatura alada estava envelhecendo, cumprindo o seu ciclo vital.

Num certo dia, percebi que ela não mais voava. Debatia-se em arremessos inúteis. Estrebuchava. Produzia apenas barulho. O corpo pequeno não conseguia articular as grandes asas. Parecia ter esquecido a capacidade que antes possuíra. Ficava observando aquele fato. Minha mãe, sentimental, dizia:

- Tadinha da bichinha!

Em dada ocasião resolvi minorar-lhe o sofrimento e aplicar a eutanásia. Não há uma ética para determinados bichos. Estava sentado e notei que, no descontrole da tentativa de voar, o bicho vinha para cima de mim. Todos dormiam em casa. Era quase meia-noite. Eu lia no sofá. Decidi borrifar uma pequena dose de veneno. O efeito foi imediato. O bate-bate de asas. O ruflar descompassado. A tentativa de desgrudar do solo para, talvez, um último vôo. Eu era um indivíduo cruel e frio. Suscetibilizei-me com aquele pensamento. Aos poucos as asas começaram a subir e a descer num gesto lento, brando. Coloquei-a do lado de fora de casa.

No outro dia, minha mãe ao acordar, viu a borboleta que ainda arfava no quintal.

- Quem quem... a bichinha morreu! – disse cheia de pesares. Contei o acontecido e como ministrara o remédio letal.

- Por que tu fez isso? – inquiriu.

- Ela tem um ciclo vital, mãe. Já estava chegando a hora dela morrer. – respondi discreteando. Certamente ela não entendia aquilo.

- Farei um enterro digno – disse eu. Era desarrazoado enterrar uma borboleta. Somente os homens enterram os seus mortos. Existem fortes elementos religiosos e culturais envolvidos nisso. Enterrar uma borboleta era, simplesmente, medonho. Percebi que a questão ganhara contornos filosóficos.

Há um relógio vital a regular os organismos. Os seres vivos ao ascenderem à vida, as areias do tempo iniciam um processo incontrastável de contagem. A borboleta voara. Cumprira o desígnio da natureza. A plantinha também estava com o seu tempo contado. A beleza, o viço; o silêncio da planta a vesti-la de encantos. Mas, no invisível, a ampulheta da existência a contar-lhe os minutos de forma irrecusável. Olhei os homens e mulheres que formavam a fila; outros que caminhavam apressados nas entranhas do centro cheio de víveres. Olhei mais detidamente e verifiquei que eles não possuíam mais cabeça. No lugar do crânio, ampulhetas. A entropia a roer-lhes a estrutura orgânica, a envelhecer tecidos, órgãos, sistemas. Minha visão era absurda. Puro devaneio.

A planta era uma metáfora. A borboleta era um símbolo. A beleza silenciosa e delicada das folhas verdes dava encantos singulares à planta. Entendi que a vida tem encantos. O vôo da borboleta afirmava que enquanto vivemos podemos voar. A natureza nos dá aptidões e depois nos toma. Terrível é receber essas aptidões e não usá-la. É passar pela vida e não viver. Certamente aquilo que me sensibilizou. Fui para casa pensando como poderia voar e como poderia me vestir com o silêncio delicado das plantas.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque Data:

09 de dezembro de 2010, quinta-feira.

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Impressões pessoais sobre “A História da Civilização” de Durant[1]

Concluí há pouco a leitura de um dos tomos da obra do historiador inglês Will Durant. Já ouvi diversas críticas ao seu método historiográfico. Quando leio tais discussões, concluo num monólogo interior: “Historiadores!”. Uns gostam dos franceses; outros, detesta-os. Alguns outros execram a análise dialética daqueles que leem a História sob a perspectiva do materialismo de Marx. Falando como mero expectador, considero a tradição francesa e penso que o marxismo é a mais elevada das concepções filosóficas, conforme disse certa vez Vladimir Lênin num ensaio. Observem que rechaço qualquer sectarismo.

Do livro de Durant ficaram três percepções a serem destacadas, comentadas gratuitamente:

(1) A decadência do Estado Romano. A toda poderosa Roma veio abaixo. Ela foi sendo minada lentamente. Seu exército tornou-se lânguido e ineficaz. O enfraquecimento do exército, do poderio bélico, é sempre uma amostra de que um Estado Onipotente esteja a ruir. O fato é que o exército romano já não conseguia deter as forças bárbaras que marchavam em magotes expressivos. Vinham do norte, do sul, do leste, do oeste. Constituíam-se num flagelo aniquilador. Os últimos imperadores romanos foram meninos frágeis e aturdidos. O Estado estava com as estruturas apodrecidas. A alta burocracia vestia-se com uma pompa patética. Golpes. Assassinatos. Conspirações. Levantes. Loucuras. Medidas ineficazes. Outro elemento que deve ser considerado, além da corrupção e do enfraquecimento econômico e militar, é o advento do cristianismo como a religião do Império. De certa forma, acredito, as circunstâncias tenham forçado o Estado Romano a se tornar cristão. A fé dos escravos crescera demais. Não havia mais como controlar. Escravos, soldados, parte da elite política, alguns indivíduos ricos haviam se convertido à nova fé. Constantino alega conversão e edita a tolerância aos cultos cristãos. Imagine: um Estado que ameaça cair; fome, desagregação, a invasão dos implacáveis bárbaros, incertezas. De repente, surge uma fé que promete o Paraíso, estabilidade, a possibilidade de um “outro reino”. Penso que diante de conjuntura tão apocalíptica, a promessa cristã tenha se tornado alvissareira, oportuna. Trouxe a esperança de estabilidade que as camadas mais angustiadas da sociedade precisava. Na calamidade, então, torna-se comum a fuga metafísica. Quanto mais acossados pela conjuntura histórica, mais os homens precisam de religião. Surgia uma nova estrutura que prometia “agasalhar” todos os homens – a Igreja Católica e Apostólica Romana (a Igreja Universal). E no dizer de Durant: “... deve a Igreja Católica figurar entre as mais imponentes obras-primas da história” (p.63). Ou seja, durante mais de dezenove séculos, ela permanece amalgamada com os poderes o mundo. A História do Ocidente querendo ou não está grávida dos feitos da Igreja de Roma. Ela é a principal herdeira das estruturas do Império dos césares. Herdou inclusive a arrogância da elite imperial e a estrutura burocrática da hierarquia que fazia o Estado Romano. Substituiu o césar (divino, augusto, que tudo podia) pelo papa (grande pai, substituto de Pedro, representante de Deus entre os homens). Quando o Estado Romano não teve mais condições de conquistar militarmente, passou à Igreja a fome imperialista para que ela empunhasse a cruz. O símbolo cristão substituiu a espada e tornou-se num eficaz instrumento de poder.

(2) Outro fato que se destaca na obra de Durant é a descrição feita a respeito dos bárbaros. Indiretamente eu possuo sangue bárbaro. Pois, eles são os principais formadores das nações européias – França (francos), Inglaterra (anglo-saxões), Ibéria – Espanha-Portugal (visigodos), Itália (ostrogodos), Alemanha (alamanos) e etc. As tribos bárbaras sempre existiram nas cercanias de Roma. Os romanos chamavam de bárbaros àqueles que não faziam parte do Império ou que estavam para além dos limites geográficos da terra dos césares. Assim, as inúmeras tribos e povos que estavam fora das fronteiras romanas, constituíam-se bárbaros. O termo barbarer provavelmente tivesse uma relação com o sânscrito varvara, o qual significava um indivíduo grosseiro e ignorante. E, de fato, os bárbaros possuíam um estilo de vida bastante rústico. Não tinham o costume de tomar banho. Banho e limpeza são coisa de árabe e índio. Gilberto Freire enuncia essa tese em sua obra Casa Grande e Senzala. Os árabes estiveram na Ibéria e deixaram lá o gosto pelos aromas. Já o banho é resultante de nossa matriz indígena. Voltando aos bárbaros: dormiam em cima dos cavalos. Comiam carne semi-crua. Tinham o costume de colocar a carne entre as pernas e o corpo do cavalo. O calor provocado pela fricção entre homem e animal modificava o estado da carne. Eram criaturas implacáveis. Não concediam clemência a quem quer que fosse. Matavam homens, mulheres, crianças, animais; ateavam fogo nas aldeias por que passavam. Átila, o huno, era chamado de “o flagelo de Deus”. Fato que deve ser considerado com relação aos bárbaros era a habilidade diplomática. Além de mordazes guerreiros, eram extraordinários negociadores. À medida que foram se estabelecendo nos domínios combalidos do Império Romano, foram ampliando geograficamente as terras ocupadas por intermédio da diplomacia. Grandes líderes bárbaros como, por exemplo, Alarico, Teodorico, Átila, Meroveu, foram responsáveis pela consolidação dessas tribos. A presença bárbara ruralizou a Europa. O cristianismo com o seu ideal de ruptura com o mundo fez com que surgissem os monastérios. Viver no claustro. Tornar-se um anacoreta. Exorcizar as paixões corruptas da civilização. Ou numa tese agostiniana de filosofia da História: deixar a “cidade dos homens” e ingressar na civitate dei (“cidade de Deus”). A vida citadina dos romanos tornou-se em algo deletério. De modo que é a partir desse movimento que pode se falar em feudalismo. Os indivíduos saíam das cidades e, geralmente, procuram a proteção de um senhor que lhe concedia terras para trabalhar. Isso fez com que surgisse um novo modo de produção, uma nova relação material para com a História – o Feudalismo.

(3) E outro aspecto bastante considerável da obra de Durant foi a “revelação” do povo árabe. O Ocidente não conhece a riqueza que se esconde por trás das areias quentes do Oriente. Imaginar um árabe é visualizar um indivíduo que se rende a Deus (Alá) de forma incondicional. É dessa submissão (inclusive o termo islão, significa submissão), que derivam todas as relações que o sujeito histórico estabelece com o próximo e com o mundo. Viver para um mulçumano é render-se a Deus e prestar crédito ao que disse o Seu profeta, Maomé. Das principais religiões do mundo, o Islamismo foi uma das últimas a surgirem. Como tudo isso veio a existir? A fé aglutinou as diversas tribos semitas que viviam no deserto antes do século VII. A maioria possuía as suas crenças particulares – muitos cristãos e judeus. Maomé conseguiu iniciar um movimento que consolidou a nova fé e fez com que surgisse dadivosamente uma bela flor no deserto. Quando assistimos àquelas reportagens descaracterizantes montadas pela grande mídia que atende a interesses econômicos, afugentamos a possibilidade de conhecer um dos povos mais belos do mundo. Os árabes possuem pensadores sofisticados, poetas absurdamente sensíveis, matemáticos fantásticos, músicos complexos, cientistas com um alto grau de especulação, estadistas valorosos. Nomes como Avicena, Averróis, Tabari, Muhammad ibn Musa, grande matemático, Abu AL-Rayhan Muhamadd ibn Ahmad AL-Biruni, entre tantos outros devem ser respeitados. Os árabes anteciparam em muito aquilo que viria a ser pensado séculos mais tarde na Europa. Para que tenhamos um exemplo é só mencionar o filósofo Avicena, uma das mentes mais belas e privilegiadas da História. Há inúmeros outros pensadores árabes como mencionei, mas Avicena sobrepujou-os pelo estilo, pela beleza das figuras metafóricas, criadas para elucidar fatos, aclarar exposições. Avicena antecipou o pensamento de Aquino em muitos aspectos. Era um verdadeiro “discípulo” de Aristóteles. Em muitos sentidos, é por causa do entusiasmo dos árabes para com o pensamento que temos a possibilidade de conhecer os grandes pensadores helênicos. Eles fizeram um belo trabalho de resgate da filosofia grega, principalmente de Aristóteles. Em suma: os árabes são uma jóia rara a ser contemplada mais atentamente. A arquitetura de suas mesquitas, os aromas afrodisíacos, a paixão pelas mulheres, a música evocadora de mistérios represados, o pensamento, a poesia com gosto e cheiro de jasmim e mirra. Tudo isso aguça os sentidos e confirma o poder de seu povo.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: 01 de dezembro de 2010, quarta-feira.

[1] História da Civilização (4a. parte) – Idade da Fé – Tomo 1º., Will Durant, Companhia Editora Nacional, 1957, 411p.