quinta-feira, março 29, 2018

"A Guerra do fim do mundo", de Mário Vargas Llosa

Ruína da antiga cidade de Canudos-BA
Uma das primeiras coisas que li em português foi Os Sertões, de Euclides da Cunha. Para mim, foi uma das grandes experiências da minha vida de leitor. Foi como ter lido, quando garoto, Os Três Mosqueteiros, ou, já adulto, Guerra e Paz, Madame Bovary ou Moby Dick. Foi realmente o encontro com um livro muito importante, uma experiência fundamental. Um deslumbramento, realmente, um dos grandes livros que já se escreveram na América Latina. Mario Vargas Llosa

Canudos é um dos pontos mais controvertidos da história do Brasil. Até hoje, o debate em torno da ação do Estado em relação ao genocídio promovido pelas forças armadas no nordeste da Bahia é um fato pouco explorado ou refletido, como tantos outros no Brasil. Acertar contas com a história é uma questão essencial para um país que deseja corrigir injustiças promovidas para que elas não se repitam. 

Muitos já escreveram sobre Canudos. O relato mais conhecido é o de Euclides da Cunha, o jornalista de formação militar e positivista que esteve na região cobrindo os combates sangrentos e que mais tarde levaria ao papel as suas afiadas memórias. O relato de Euclides é tão fascinante que, para além de história, ganhou conotações de grandiosidade literária. 

Já separei Os Sertões para realizar a leitura. Acredito que todo brasileiro possui, obrigatoriamente, o dever de ler a obra de Euclides da Cunha. Ela revela um pouco da violência com que as oligarquias do país tratam os pobres. Um pretenso orgulho republicano, de uma das sociedades mais atrasadas da América Latina à época, vitimou quase trinta mil vidas. Eram sertanejos que fugiam da miséria. Ancoravam-se na fé. Esperavam uma espécie de redenção histórica. Acreditavam que Antônio Conselheiro era um enviado de Deus; um profeta poderoso. Um mensageiro de Dom Sebastião. Canudos constituía-se em um grande oásis. Ela possuía suas próprias regras. Conselheiro um propalado republicano era um inimigo da República. Possuía posições obscurantistas.

Pois essa história extraordinária fascinou Mario Vargas Llosa. Após ter lido Os Sertões (imagino que não deve ter sido fácil para ele, já que o texto de Euclides oferece bastantes obstáculos. Seja por sua formação militar do escritor, seja pelas habilidades técnicas como engenheiro, o texto de Euclides é denso, repleto de uma linguagem provocadora), o escritor peruano ficou enfeitiçado pela narrativa euclideana. Aquilo enche-o de otimismo. Isso eram os idos dos anos 70. Resolveu, pois, visitar a região onde ficava situada a cidade. Sentiu as emanações quentes do clima agreste. Visualizou as elevações, o terreno, as pedras, aspectos estes pormenorizados na primeira parte do livro de Euclides da Cunha; esteve ainda nas cidades circunvizinhas a Canudos. Estas cidades são fartamente citadas no romance A guerra do fim do mundo.  

A tarefa de campo demandou alguns meses. Foi necessário colher as informações. Ouvir depoimentos. Deixar-se inundar pelos aspectos humanos da região. Ouvir a voz do povo. O fato é que Vargas Llosa, como ele mesmo disse, teve muito trabalho para escrever a obra. É a obra que demandou mais trabalho em sua longa jornada como escritor. O resultado é fascinante. Diferentemente de Euclides, Vargas Llosa insere elementos fictícios com caricaturas grotescas. Ao lado do combate que se desenrola em longas páginas, nota-se também a presença de personagens histriônicos e quase carnavalizados como é o caso do Leão de Natuba. 

Existem muitos elementos na obra que devem ser ressaltados. Um livro de quase oitocentas páginas não deve ser caricaturado em tão magras linhas como as minhas. Mas acredito que um dos principais aspectos que saltam do livro é o fanatismo. Há um fé inabalável; uma crença que fortalece os miseráveis sertanejos que moravam no arraial. Uma vez que passavam a morar no arraial, uma força irresistível brotava do espírito coletivo e da fé. Se não fosse isso, eles teriam sucumbido na primeira campanha armada que se levantou contra eles. Não teriam matado o arrogante oficial Moreira César, um dos algozes mais temidos no Exército durante a República Velha. César era um homem impiedoso. Ele lutara no Sul do país na Revolta Federalista. Fizera fama por lá. Chegou a Canudos com respeito e com a alcunha de grande matador. 

A Guerra do fim do mundo é um livro épico. É fascinante. Não deve ser comparado ao livro de Euclides da Cunha por possuírem abordagens completamente diferentes para um mesmo evento. Vargas Llosa sabia isso. Ele tinha consciência de que seria um tarefa perigosa escrever sobre Canudos. Como estrangeiro, falante de uma outra língua, seria complicado fazer algo que se equiparasse ao livro Os Sertões. Mas o fato é que estamos nos referindo a um dos maiores escritores americanos de todos os tempos; estamos nos referindo a um ganhador de Prêmio Nobel. Vargas Llosa é um conservador esclarecido. Desses com os quais discordamos, mas damos a ele o direito de resposta por sabermos que há um sólido embasamento naquilo que está dizendo. 

Como um homem da literatura, Mario Vargas Llosa é imbatível. Certamente, para mim, foi uma das mais ricas e agraciadoras experiências  da minha vida ler A Guerra do fim do mundo.

sábado, março 10, 2018

Ainda José Lins do Rego - "Banguê"

Apesar de ter terminado a leitura de Banguê há bastante tempo, o terceiro romance de José Lins do Rêgo, somente agora me decidi por realizar alguns comentários. Do ponto de vista da escrita, Banguê é o que possui a melhor redação dos três primeiros romances. Como foi comentado anteriormente, Menino de Engenho, o primeiro, é uma narrativa centrada na nostalgia. Não há dramas psicológicos. É a infância verbalizando suas impressões. Carlos de Melo é uma criança órfã que decide contar alguns fatos sob uma perspectiva altamente saudosista. 

Apesar da ficção, ouvimos a partir dele, quiçá, a própria voz do romancista José Lins do Rego, que experimentou a sua infância também em um engenho. Ele empresta a sua história a Carlos de Melo. No segundo livro, Doidinho, percebe-se que "o ciclo" começa a ganhar contornos sólidos. A narrativa se avoluma. José Lins continua a sua incansável saga memorialística. Carlos de Melo ainda está no centro. Enquanto em Menino de Engenho, temos-lo criança, em Doidinho ele é o adolescente que vai para escola e experimenta os rigores da disciplina. 

Carlos tem o futuro à frente, mas insiste em olhar para o Santa Rosa. Os acontecimentos são quase inexistentes no engenho Santa Rosa na narrativa. O engenho é visto como o Éden; como o espaço privilegiado da pureza inconteste; da felicidade inquebrantável; dos acontecimentos grávidos de liberdade. Há uma polarização entre o Liceu em Itabaiana e o Engenho Santa Rosa - aquele, o espaço claustrofóbico, do confinamento, do medo, do susto, da violência repressora; já este é o jardim das delícias; da fauna e da flora privilegiadas; em suma, de um mundo sem porteiras nem muros.

Banguê, por sua vez, escrito em 1934, é o mais denso livro da trilogia de Carlos de Melo. Fica-nos a impressão de que José Lins tenha desenvolvido a técnica que o conduziria a Fogo Morto, sua obra máxima. O livro foca a atenção em um Carlos de Melo já adulto, formado e herdeiro do espólio do Santa Rosa. O avô José Paulino, figura emblemática do patriarca, aquele que ergueu o grande feudo, morrera. Ela era o inexpugnável dono de terras, animais e "gentes". Carlos de Melo, bacharel em Direito, formado no Recife - assim como José Lins, um herdeiro das famílias tradicionais do Nordeste - após a formatura, volta para o Engenho. Sua indolência para com as coisas do Santa Rosa colocam-no em crise. Percebe-se claramente a sua falta de habilidade para gerir, para tocar as terras antigas do avô. 

As safras não são as mesmas. Um medo profundo de ser morto o abate. Desconfia dos parentes. Nota que há moradores mais habilidosos do que ele na condução das lavouras. Por fim, percebe que está na iminência de perder o Engenho para uma usina. Não consegue pagar uma carta de crédito. Se isso acontecer, ele liquidará a história do imortal Engenho Santa Rosa, que é uma extensão da memória do avô José Paulino.

Minhas palavras soam meio inexpressivas na tentativa de fermentar o interesse pela história, mas o fato é que o ritmo da prosa de José Lins deixa a impressão de um escritor que ia escrevendo à medida que memória fazia o seu trabalho. A narrativa pode ser comparada a uma mina que brota incessante. É delicioso ler José Lins do Rego! Percebe-se que ele não se preocupa com as grandes construções gramaticais. O fluxo de sua narrativa parece ser resultado de uma conversa, uma confissão privilegiada à imaginação dos leitores. 

Estou terminando dois livros atualmente - A guerra do fim do mundo (Mario Vargas-Llosa) e A invenção do Nordeste e outras artes (Durval Muniz de Albuquerque Junior). Assim que concluí-los, emplacarei a leitura de O moleque Ricardo. Quero perfazer toda a obra do escritor paraibano este ano. Sigamos.