quinta-feira, janeiro 27, 2011

Como estrelas na terra e a poética do humano

Talvez a meia dúzia de leitores-visitantes mensais desse blog me julguem sisudo. Sério demais. Com trejeitos alambicados. Com estilo textual afetado. Os sérios não são levados em conta. Não se trata de uma reclamação, um lamento. Mas apenas uma observação gratuita, momentânea. Geralmente escrevo aquilo que me vem à ideia, como resultado de experiências e observações que faço. E hoje à tarde, tive a oportunidade de assistir ao filme Como estrelas na Terra pela segunda vez. Impossível não fazer constatações sérias sobre a película.

É um dos filmes mais belos que já vi. Desde que o filme Quem quer ser um milionário ganhou oito Oscars, que o mundo direcionou o olhar com mais atenção para a Índia. Como estrelas da terra é uma dessas películas que suscitam constatações graves, porém, alegres, poéticas, catárticas. Faz-me lembrar Sociedades dos Poetas Mortos ou Língua das Mariposas. A obra aponta para aquilo que Paulo Freire verbaliza em Pedagogia do Oprimido: "ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo".

O papel do educador é fazer com que aprendente tenha uma emersão. E dessa emersão, a sua consciência (daquele que aprende) estabeleça vínculo com o mundo e ele saiba quem é enquanto sujeito histórico. É a partir desse encontro que os dramas, deficiências e dores existenciais são superados. Como estrelas na terra revela, sugere-nos, com muita poesia e beleza, o quanto a compreensão, o olhar terno e o calor do encontro pode fazer dos homens, verdadeiros seres humanos.

Uma das falas mais belas do filme é quando o professor Ram Shankar Nikumbh (Aamir Khan, diretor, produtor, escritor do filme) afirma que a arte existe para que enuncie o sentir humano. Acredito que esta afirmação seja uma metáfora-metaliguistica da obra, falando dela mesma. Ou seja, o filme é um daqueles trabalhos que fazem desvelar o sentir de cada um de nós. Vi ao filme duas vezes e (afirmo sem receios ) chorei as duas vezes. Todos têm a sua importância na terra. Todos os homens são seres distintos e o universo foi feito com cores variadas. Todos existem como estrelas na terra.

Leia AQUI uma pequena sinopse do filme

sexta-feira, janeiro 21, 2011

Sobre deuses, pássaros e gaiolas, por Rubem Alves

Esta semana, em meu local de trabalho, achei um livro do escritor Rubem Alves. Alves, mineiro de Boa Esperança, é um poeta de todas as horas. Seus textos são leves, suaves, sempre enfocando aspectos humanizantes; sempre nos convidando a brincar; a olhar para o mundo com olhos de criança. O livro chama-se O Mundo num grão de areia, baseado num poema de William Blake. Li as duas crônicas iniciais do livro. A primeira falava do filme O Feitiço de Aqüila, produzido em meados dos anos oitenta. A segunda falava sobre deuses, rituais, igreja e religião. Achei o texto delicioso e muito bem urdido. Uma reflexão profunda e poética sobre o sentido da religião e o quanto esta enfraquece o potencial de beleza da divindade. As religiões engaiolam a Deus; enfeiam a sua sacralidade. Diminuem as suas qualidades. Afirmam que Deus têm certos atributos e, que os outros que não andam de acordo com aquelas qualidades, estão em erro mortal. Deus para ser Deus não pode estar preso a nenhum nicho, em nenhuma gaiola. São por causa do engaiolamento da compreensão de quem é Deus que se fecundam os conflitos, as guerras e toda sorte de injustiçamento. Ao ler o texto, senti que deveria compartilhá-lo. Por isso, segue o belo texto abaixo.

Você pode ler o texto de Rubem Alves AQUI

domingo, janeiro 16, 2011

O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman

Terminei de assisti, hoje pela manhã, ao filme O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman. E que filme! Deter-me-ei em uma outra ocasião numa reflexão mais consistente. Talvez nesse momento, minhas palavras soem hiperbólico-poéticas em demasia para fazer jus à película. Terei que sair daqui a pouco. Bergman narra a saga de Antonius Block, em meados do século XIV, numa Europa devastada pela peste negra. A morte espreita Block. As cenas foram filmadas em preto e branco, evidenciando a aridez do ambiente condenado pela ignorância, pela fome, doença, supertições, ceticismo, loucura generalizada. Talvez seja esse o aspecto que impele mais beleza à obra. Nem por isso, o filme deixa de ser absurdamente poético. As paisagens nos impulsionam à imaginação. Campos enormes. Pedaços de planícies vazias. Praias imensas.

A discussão em torno da morte, dão à temática da obra um profundo debate sobre a existência, o silêncio de Deus, a morte e o sentido da vida. Antonius Block ao jogar com morte, deixa a mensagem de que a vida é um grande duelo. A nossa existência é feita de jogadas e num dado momento nós vamos perder. Não há como ganhar da morte. Ludibriar os seus intentos é vão. No filme não ouvimos a voz divina. As preces são direcionadas a ouvidos ocultos. Como numa das reflexões de Block. Diz ele que Deus é como uma criatura que se esconde no escuro e nunca responde. Ou: é difícil conceber a Deus, pois ele se esconde por trás de uma neblina de vagas promessas.

Abaixo, um pequeno trecho, um dos diálogos mais belos e atordoadores do filme. Antonius Block dialoga com a morte sobre o sentido da vida, Deus e a própria morte:

quarta-feira, janeiro 12, 2011

Caso Cesare Battisti (III)

No site Cesare Livre! é possível assinar uma petição eletrônica a fim de que Cesare Battisti, acusado de assassinatos e indigestos atos políticos pelo Estado Italiano, possa alcançar as benesses necessárias da parte do Supremo Tribunal Federal brasileiro. O destino de Battisti está nas mãos de Gilmar Mendes e Cezar Peluso, eminentes e doutos senhores do direito, ministros da "egrégia" Suprema Corte brasileira.

Não bastou que Lula resolvesse não extraditar o italiano. Foi necessário da parte da direita fascista brasileira, desenterrar o caso, fazer emendas políticas e duvidosas manobras jurídicas a fim de que o Cesare seja entregue ao aprendiz de Mussolini, Silvio Berlusconi. Como, por exemplo, a notícia veiculada pelo Sul 21 de que o Democratas (DEM, leia-se "demo"), recorrerá ao STF contra a decisão do ex-presidente Lula, que no último dia 31 de dezembro resolveu não extraditar Battisti, acatando o parecer da Advocacia Geral da União (AGU).

Visite o site Cesare Livre! e deixe a sua assinatura. Todo movimento será importante para livrar Cesare da boca dos leões de Roma e dos capachos neofascistas do STF brasileiro (leia-se Gilmar Mendes e Cezar Peluso).

Cesare Livre! AQUI

terça-feira, janeiro 11, 2011

Sobre reality shows

Escrito há quase três anos, numa ocasião como esta.

No dia 10 de janeiro de 2008, eu cheguei cansado em casa à noite. Deitei no sofá. O desejo veemente de descansar após um dia estafante de aborrecimentos, de profunda insalubridade. Acordara cedo aquele dia como de praxe. Não sou muito dado a assistir programas de televisão. Mas naquele dia estava sozinho em casa. Peguei o controle e pensei comigo. “Vamos ver o que está passando nessa caixa maluca”. Busquei ser razoável, consciencioso. Tenho pensamentos negativos sobre a televisão. Imagino aquelas pessoas que ficam expostas de 20 a 30 horas da semana diante das imagens. Julgo que isso é um exercício absurdo. Afirmo num acesso de deslocamento que a televisão brasileira precisa passar por um processo de reforma moral e educativa. Os programas em sua maioria são de péssima qualidade e de uma pobreza intelectual bastante indesejável.

Naquela noite eu busquei ser solidário, mas a minha aquiescência não sobreviveu às investidas dos fatos. Deti-me no Big Brother Brasil. Simulei uma experiência. Limitei-me. Arquitetei mentalmente que ficaria exposto àquelas imagens por uns 20 minutos. Todavia não suportei mais que dez. Vi um Pedro Bial tentando ser simpático. Esforçando-se para ser agradável. Expunha sua indigência intelectual. Justificava-se. No dia anterior insistira numa opinião equivocada. Errara sobre o similar de Dionísio na mitologia romana – Baco. Aproveitava o momento para fazer conexões despropositadas e vexatórias com os participantes do programa. A uma chamava de musa a outro de um dos personagens da mitologia greco-romana. Estava nítido que o sujeito desgraçadamente não levava jeito para ser animador de circo. Moços de corpanzil atlético; de jeito e maneiras saudáveis; com aparente autonomia intelectual. Por sua vez, moças de corpos sensuais, de seios fartos. Ou seja, em minha análise vejo que o que está em jogo é a corporeidade atlética dos participantes, a saúde física, pois o que se busca é o caos, o nascimento da mediocridade que se insinua por meio das imagens recepcionadas pelos telespectadores.

Vi às imagens de uma festa que acontecera um dia antes. Uma espécie de evento “com objetivo para potencial de orgia”. As investidas dos moços que, seminus, insinuavam os corpos na tentativa de requestar as moças participantes para um “programa” dês-compromissado. O álcool destrancava os sentimentos mais escondidos. Lançava fora os pudores. No fundo o que se buscava era justamente que essas tentativas se tornassem substanciais, pois há milhões de brasileiros assistindo àquelas imagens. O público está sedento por luxúria, leviandades e voyeurismo. O desejo dos telespectadores é que “aquele mundo” – o da dita casa – se torne no pior dos mundos. Isso alimentará com lixo as suas almas. A falência da moral é desejada; a penúria espiritual é o que o público deseja em sua veleidade atomizada.

George Orwell escreveu o livro 1984. Neste livro, o escritor insinua um controle do Estado através da televisão, instalada em cada residência, ligada a um maquinismo central controlador. Dessa base coordenadora seria possível controlar a vida dos cidadãos. O Estado “assistiria às ações dos seus súditos”. Esse ente controlador é chamado de “Grande Irmão” (Big Brother) por Orwell. Já no programa da Rede Globo há uma inversão. O "estado" é representado pelos telespectadores que espionam as ações dos participantes confinados naquela jaula cercada de câmeras. Todavia, no dizer de Muniz Sodré em seu excelente ensaio O Monopólio da Fala – Função e Linguagem da Televisão no Brasil, “a eficiência da dominação, portanto, consiste em ocultar, do melhor modo possível, o controle totalitário dos pensamentos, dos gestos, da palavra, enfim do desejo”[1]. Assim, com relação ao livro 1984 há paradoxalmente uma inversão, pois enquanto este mostra um estado de controle, no programa em questão as pessoas pensam que assistem, mas na verdade estão presas pelo feitiço do controle. Por intermédio do poder com potencial lúbrico e de simulacro da realidade que a imagem possui. De alguma forma o sistema controla os desejos individuais do consumidor final, aquele que ab-sorve as imagens. O telespectador representa um mundo de desejos e aspirações que precisa ser preenchido pelo poder controlador de um centro que estabelece o que é e não é em termos de riqueza cultural e estética. Ou seja, o telespectador é um viajante passivo, pois apenas recepciona sem interagir com as imagens. Trata-se de um pacote pronto que é lançado a ele. Cabe aceitar ou reprovar.

O poder encatátório das imagens penetra no mais íntimo da privacidade do indivíduo. Aonde ninguém chega a imagem chega, pois a individualidade supõe “separação”, “ruptura” com o outro. A imagem pré-estabelecida por uma equipe técnica com as ânsias do mercado, promove um desfecho para a trama, que necessita ser a pior possível, pois os consumidores do produto precisam de intrigas triviais e relações banalizadas. Desse desenlace brota o lucro e o controle. O controle ideológico não é estereotipado. Não aparece aprioristicamente. Os verdadeiros ladrões não roubam fazendo escarcéu. Eles buscam o silêncio discreto – o mais que possam. Da mesma forma, o controle ideológico da mass-media busca eliminar com ‘uma aparência’(e aí está o nó-górdio da pós-modernidade) a questão de sua verdadeira finalidade, insinuando como ‘natural’ a necessidade geral de uma informação centralizada e abstrata[2].

Abaixo segue um texto escrito por Frei Betto. Em 2002 ele escreveu estas palavras publicada no sítio ADITAL. O texto é poético em sua essência e denuncia o abandono daquele que se devota diante do programa.

Reality Show
Frei Betto

Sim, quero ver a tua vida em detalhes, minuto a minuto, e ouvir as palavras que jorram de tua boca, rir o teu riso e enraivecer-me com o teu rancor, assistir à tua paquera, ao teu namoro, ao teu gesto de carinho, à tua transa, espelhando tua beleza em minha indigência.
Quero deixar de lado amizades, trabalhos, livros e lazer e, de olhos pregados em tua magia, absorver a tua arte de movimentar-se no labirinto da quimera, livre de dores e afazeres, mergulhado na fama e na fortuna.
Venerarei o teu ócio na vitrine, exibindo-te sem pudor a milhões de olhos, despido por infinitas imaginações, liberto das grades odiosas dessa existência de penúria anônima, escrava da rotina atroz de quem jamais aprendeu a voar, nem foi aquinhoado pela sorte. Abrirei em meu monitor a porta da tua casa mágica e, sob o peso de minhas carências, ingressarei virtualmente em tua liberdade, no teu gozo, no teu charme, no teu riso, na tua sensualidade, como quem toca com os olhos os veneráveis ícones que nos fazem transcender da mediocridade cotidiana.
Minha fidelidade ao teu exibicionismo será a chancela que sacramentará a tua vida como real e, do lado de cá, buscarei a alforria de minha indigência em tuas loucuras, em teus jogos e em tuas danças. Quero decifrar em ti a minha própria intimidade, rasgar a minha alma em tuas mãos e deixar a minha mente impregnar-se dessa ilusão que faz de mim teu pequeno irmão.
Recobrirei a minha realidade com a tua fantasia e farei de teu espetáculo o brilho de meus olhos vazados, nessa permuta hipnótica de quem busca a complacência com seus próprios limites para tentar encobrir a mesquinhez que me corrói. Ficarei atento ao teu banho, ao teu sexo, à tua ira e às tuas refeições, fiel à exposição perene deste teu ser desprovido de preocupações e conteúdos, entregue a esta liberdade que faz de ti o que não sou, e me permite projetar em teu vigor as minhas fraquezas e em teu esplendor o sabor amargo de meu anonimato.
Verei em tua janela, que se abre para a minha casa, a subversão de todos os valores, como se nos cômodos que te abrigam findassem todos os princípios, escorrendo pelo ralo tudo aquilo que num lar soava como sinônimo de família. Ampliados pela eletrônica, meus olhos contemplarão as tuas intimidades mais ousadas. Sentirei os teus odores e beberei o teu suor.
Esticarei o meu olhar até os limites proibitivos do escárnio e, quem sabe, verei o teu rancor extirpar toda a inveja que jaz em meu peito e a tua voracidade explodir em taras que haverão de suprir os meus desejos mais ignóbeis e saciar as minhas pulsões mais abjetas. Deste lado da tela, sentirei os teus sentimentos e comungarei as tuas emoções, vendo-te virar pelo avesso nesse zoológico de luxo, exposto à multidão como carne no açougue, a engordar no balcão do voyeurismo a gorda soma dos teus patrocinadores.
Em ti livrar-me-ei de todo ideal que não seja fazer da vida um jogo de entretenimentos, a sedução epidérmica como sucedâneo de quem não atinge as profundezas do amor, vendo-te representar a ti mesmo sob os aplausos invejosos de meu olhar sequioso, preso ao teu desempenho huit-clos.
Aprisionarei a tua vida em meu olhar, tornar-me-ei teu carcereiro eletrônico, decidindo o teu presente e o teu futuro, absolvendo-te ou condenando-te, juiz supremo que se ignora refém do próprio equívoco.
Inebriado com as tuas loucuras, te elegerei objeto supremo de minha admiração, deixando-me devorar pelo teu sucesso, do qual farei tema de todas as minhas conversas.
À espera de que os corvos venham devorar o meu coração, e agora que a nossa história foi para os quintos dos infernos, quero ser consumido e consumado por ti, arrancando de meus olhos todas as escamas, até que eu possa ver também ao vivo, na busca desenfreada de audiência, o marido espancar a mulher; o filho estuprar a mãe; o pai assassinar a filha; enfim, o horror, pois sei que o show não pode parar e que o seu limite é não ter limites.

31 de janeiro de 2002
Fonte: ADITAL

[1] SODRÉ, Muniz, O monopólio da Fala – função e linguagem da televisão no Brasil, Editora Vozes, Petrópolis – RJ, 1978, p. 45.
[2] Idem, p. 49


Por Carlos Antônio M. Albuquerque

quinta-feira, janeiro 06, 2011

Mais que sentidos

Escrito há mais de 2 anos.

Os sentidos nos permitem apreender o mundo. Com o paladar podemos experimentar sabores vários – o prato suculento, o beijo. O tato nos revela a superfície, a temperatura das coisas. A visão nos permite ver, contemplar o mundo com suas cores variadas. O olfato nos faz sentir as fragrâncias e odores mais variados e complexos. A audição é uma porta por onde permitimos que os sons entrem em nossa dimensão interior. À medida que os ciclos evolutivos foram se dando, essas habilidades foram sendo desenvolvidas.

Esse fato é tão marcante que, na natureza, há animais que possuem um sentido mais aguçado que o outro. Um exemplo claro são os cães. Esses animais possuem uma audição e um olfato densamente desenvolvidos. As águias enxergam uma presa a quilômetros de altura. Isso permite a elas, mesmo estando voando muito alto, capturarem os animais que lhes servirão de refeição. Os tubarões percebem a presença de sangue a muitos metros de distância. As serpentes percebem a presença de outros seres pela língua bifurcada. As baratas, pelas antenas. Isso me faz lembrar um conto extraordinário de Guy de Maupassant. O escritor cria a figura de um personagem que escreve para o seu médico contado como os sentidos são a única ponte que liga o homem ao mundo. “Nossos órgãos seriam os únicos intermediários entre o mundo exterior e nós”. Esse exterior nos escaparia por suas proporções, suas propriedades infinitas e impenetráveis, suas origens, seu porvir ou seus fins, suas formas longínquas e suas manifestações infinitas. Nossos sentidos e órgãos determinam e limitam as propriedades aparentes da matéria. Por possuirmos apenas cinco sentidos, a nossa capacidade de apreensão do mundo é profundamente restrita.

O personagem do conto de Maupassant diz ainda que o que o fez acordar foram as palavras de Montesquieu: “Uma órgão a mais ou a menos em nossa máquina teria feito de nós uma outra inteligência”. E em outra parte é dito assim: “Se tivéssemos, portanto, alguns órgãos a menos ignoraríamos coisas admiráveis e singulares, mas, se tivéssemos alguns órgãos a mais, descobriríamos em torno de nos uma infinidade de outras coisas de que suspeitaremos por falta de meios de constatá-las”. O que gosto nesse conto de Maupassant é justamente a exatificação científica com uma carga fictícia da importância dos sentidos para a apropriação do mundo.

Percebe-se com muita clareza que os sentidos humanos são a porta que estabelece relação entre o homem e o mundo exterior. Se enxergássemos mais do que enxergamos possivelmente nossa relação com a matéria seria diferente. Se ouvíssemos mais do que ouvimos atualmente possivelmente arrumaríamos mais encrencas. Ouviríamos aquilo que não podemos ouvir e isso aumentaria o nível de desarranjos nos relacionamentos. Em compensação também desenvolveríamos a prudência e aprenderíamos a falar de forma mais sábia.

Todavia, no que diz respeito aos sentidos humanos, fiquei pensando naquelas pessoas que perderam a funcionalidade de um ou alguns deles. Essa reflexão me veio na noite de ontem quando fui à aula de libras – minha primeira aula. Meu professor é surdo e mudo. Contando por meio de sinais que perdera a audição e a capacidade de falar, disse em certa momento que agradecia a Deus por ter perdido a audição. Aquela afirmação me aturdiu. Fiquei pensando nessa afirmação paradoxal. Numa época como a nossa em que se preza pela perfeição, pelas formas, o não ouvir não é desejado por ninguém. Em outras sociedades, ele simplesmente teria sido morto. Os gregos espartanos o teriam lançado de um precipício. Para eles não eram toleradas deficiências congênitas. Havia uma valorização exacerbada da perfeição aparente.

Fiquei pensando como deve ser viver sem ouvir. Conta-nos a história que as melhores composições de Beethoven surgiram quando da perda da audição. A Nona Sinfonia, estrondosa, estrepitosa, um hino composto à alegria foi um projeto realizado na surdez do maestro. Parece uma contradição que alguém tenha composta uma peça da magnitude da Nona Sinfonia com um poema intitulado Ode a alegria; e o coral no quarto movimento da obra retumbe poderosamente elevando a voz a um quase inalcançável esforço. No dia em que a peça foi apresentada pela primeira vez, Beethoven por está de costas, nem ouviu os aplausos do público entusiasmado. Beethoven ouvia a sinfonia interiormente. As peças mais complexas do compositor alemão – os quartetos de cordas – também foram compostos nesse período. A capacidade perdida fez desenvolver outras percepções e habilidades.

No filme Ray Charles de 2004, do diretor Taylor Hackford, há um cena fantástica em que Ray conversava num restaurante com uma moça - aquela que viria a ser sua esposa. De repente, ele, que era completamente cego, pergunta a ela mais ou menos assim: “Você está ouvindo o som do beija-flor lá fora batendo as asas?”. Ouvir o som de um beija flor batendo as asas parece ser uma atividade extraordinária para pessoas comuns, acostumados a ignorar as percepções sensíveis. Não para alguém como Ray Charles. O fato é que uma capacidade perdida nos possibilita o desenvolvimento de outras habilidades incomuns. É mais ou menos aquilo que conta Herman Hesse no livro Sidarta. É dito que Sidarta tendo a capacidade de ouvir, havia começado a ouvir diferentemente dos outros homens. Ele podia ouvir o som rumoroso do rio, das garças que voavam alto, dos bambus que brotavam nos campos. Uma espécie de sensibilidade que somente é apreendida quando somos capazes de valorizar aquilo que sabemos perder. É como conta ainda o escritor cristão Philip Yancey que uma certa amiga estava perdendo a visão e em pouco tempo não enxergaria mais nada. Ela resolveu, antes que as trevas completas chegassem, visitar os vales e bosques do Colorado nos Estados Unidos, a fim de que aquelas paisagens se apaziguassem, fossem encaixadas e vivessem em sua memória.

Fico pensando como seria viver sem poder ouvir uma sonata de Brahms, uma sinfonia de Mahler ou um concerto de Mozart – da música que segundo Maupassant é “vaga como um sonho e exata como a álgebra”; o rumorejar das águas de um ribeiro; o som dos pássaros cantarolando; o som do vento envergando um canavial ou um bambuzal; o som afastado de um final de tarde; a voz daqueles ou daquela (e) a quem amamos. Assenta em mim a impressão que devo valorizar mais os meus sentidos, valorizar as potencialidades comunicativas e relacionais que eles me conferem. Saber sentir além dos sentidos é uma habilidade a ser desenvolvida. Ouvir com a quietude de monge é algo a ser buscado.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: Quinta-feira, 7 de agosto de 2008, 10:49:12.

quarta-feira, janeiro 05, 2011

Capitalismo: o que é isso?

Texto extremamente elucidativo extraído do blog do Emir Sader.

As duas referências mais importantes para a compreensão do mundo contemporâneo são o capitalismo e o imperialismo.

A natureza das sociedades contemporâneas é capitalista. Estão assentadas na separação entre o capital e a força de trabalho, com aquela explorando a esta, para a acumulação de capital. Isto é, os trabalhadores dispõem apenas de sua capacidade de trabalho, produzir riqueza, sem os meios para poder materializa-la. Tem assim que se submeter a vender sua força de trabalho aos que possuem esses meios – os capitalistas -, que podem viver explorando o trabalho alheio e enriquecendo-se com essa exploração.

Para que fosse possível, o capitalismo precisou que os meios de produção –na sua origem, basicamente a terra – e a força de trabalho, pudessem sem compradas e vendidas. Daí a luta inicial pela transformação da terra em mercadoria, livrando-a do tipo de propriedade feudal. E o fim da escravidão, para que a força de trabalho pudesse ser comprada. Foram essas condições iniciais – junto com a exploração das colônias – que constituíram o chamado processo de acumulação originaria do capitalismo, que gerou as condições que tornaram possível sua existência e sua multiplicação a partir do processo de acumulação de capital.

O capitalismo busca a produção e a comercialização de riquezas orientada pelo lucro e não pela necessidade das pessoas. Isto é, o capitalista dirige seus investimentos não conforme o que as pessoas precisam, o que falta na sociedade, mas pela busca do que dá mais lucro.

O capitalista remunera o trabalhador pelo que ele precisa para sobreviver – o mínimo indispensável à sobrevivência -, mas retira da sua força de trabalho o que ele consegue, isto é, conforme sua produtividade, que não está relacionada com o salário pago, que atende àquele critério da reprodução simples da força de trabalho, para que o trabalhador continue em condições de produzir riqueza para o capitalista. Vai se acumulando assim um montante de riquezas não remuneradas pelo capitalista ao trabalhador – que Marx chama de mais valia ou mais valor – e que vai permitindo ao capitalista acumular riquezas – sob a forma de dinheiro ou de terras ou de fábricas ou sob outra forma que lhe permite acumular cada vez mais capital -, enquanto o trabalhador – que produz todas as riquezas que existem – apenas sobrevive.

O capitalista acumula riqueza pelo que o trabalhador produz e não é remunerado. Ela vem por tanto do gasto no pagamento de salários, que traz embutida a mais valia. Mas o capitalista, para produzir riquezas, tem que investir também em outros itens, como fábricas, máquinas, tecnologia entre outros. Este gasto tende a aumentar cada vez mais proporcionalmente ao que ele gasta em salários, pelo peso que as máquinas e tecnologias vão adquirindo cada vez mais, até para poder produzir em escala cada vez mais ampla e diminuir relativamente o custo de cada produto. Assim, o capitalista ganha na massa de produtos, porque em cada mercadoria produzida há sempre proporcionalmente menos peso da força de trabalho e, por tanto, da mais valia - que é o que lhe permite acumular capital.

Por isso o capitalista está sempre buscando ampliar sua produção, para ganhar na competição, pela escala de produção e porque ganha na massa de mercadorias produzidas. Dai vem o caráter sempre expansivo do capitalismo, seu dinamismo, mobilizado pela busca incessante de lucros.

Mas essa tendência expansiva do capitalismo não é linear, porque o que é produzido precisa ser consumido para que o capitalista receba mais dinheiro e possa reinvestir uma parte, consumir outra, e dar sequencia ao processo de acumulação de capital. Porém, como remunera os trabalhadores pelo mínimo indispensável à sobrevivência, a produção tende a expandir-se mais do que a capacidade de consumo da sociedade – concentrada nas camadas mais ricas, insuficiente para dar conta do ritmo de expansão da produção.

Por isso o capitalismo tem nas crises – de superprodução ou de subconsumo, como se queira chamá-las – um mecanismo essencial. O desequilíbrio entre a oferta e a procura é a expressão, na superfície, das contradições profundas do capitalismo, da sua incapacidade de gerar demanda correspondente à expansão da oferta.

As crises revelam a essência da irracionalidade do capitalismo: porque há excesso de produção ou falta de consumo, se destroem mercadorias e empregos, se fecham empresas, agudizando os problemas. Até que o mercado “se depura”, derrotando os que competiam em piores condições – tanto empresas, como trabalhadores – e se retoma o ciclo expansivo, mesmo se de um patamar mais baixo, até que se reproduzam as contradições e se chegue a uma nova crise.

Esses mecanismos ajudam a entender o outro fenômeno central de referência no mundo contemporâneo – o imperialismo – que abordaremos em um próximo texto.

Por Emir Sader

terça-feira, janeiro 04, 2011

Caso Cesare Battisti (II)

Achei o texto abaixo graças a um colega que postou o link no Facebook. Ao ler o texto, percebi que ali estava escrito tudo o que eu intuía sobre o caso Cesare Battisti. O revanchismo da direita neofascista representado, por uma pequena parcela dos ministros STF, certamente está a jogar maquiavelicamente contra a decisão dos ex-presidente Lula. A decisão empreendida com bastante habilidade por Lula foi a correta, a acertada, a humana. Tirou Battisti da boca dos leões italianos. A mídia esconde verdadeiramente os fatos, pulverizando meias verdades. A opinião pública fica confusa e desconhece o que está por trás, verdadeiramente, dos eventos que envolvem a extradição do italiano Battisti. Chamar Cesare Battisti de terrorista, criminoso, assassino de pai de família, psicopata, é incorrer num argumento falacioso, baseado na ausência de provas concretas.














Segue o texto. Acesse AQUI

sábado, janeiro 01, 2011

Caso Cesare Battisti (I) - ao fechar a porta, Lula...

A História é curiosa. Parece ser até irônico. Mas, isso é substantivo. Ontem, no último dia de 2010, ouvi pelo rádio que Lula havia acatado o parecer da Advocacia Geral da União (AGU), resolvendo não extraditar o italiano Cesare Battisti. Battisti foi alvo de querelas durante muito tempo em nosso país. Os jornalões fizeram uma campanha sórdida contra a presença do italiano aqui no Brasil. Chamaram-no de criminoso, assassino, psicopata e outros vocábulos incriminadores. Ou seja, Battisti foi julgado previamente sem direito a qualquer defesa. Curiosamente, se perguntarmos o que acham sobre o caso Vargas x Olga Benário, reprovarão Getúlio. Acusarão Vargas de criminoso por ter entregado Olga Benários Prestes a Hitler, mas não veem problemas em fomentar teses contra o italiano Cesare Battisti, antes mesmo que os italianos o fizessem. O STF resolveu enviá-lo, sendo Gilmar Mendes o principal condutor da tese. Vasculharam porões. Resgataram acordos internacionais. Fizeram exegeses. Utilizaram as mais controversas hermêuticas jurídicas. Ao final, afimaram que a posição do STF era pela extradição, mas cabia a Lula a última palavra.

Lula soube como ninguém conduzir o problema. Esperou que a poeira dos fatos e o clamor da mídia fascista fossem arrefecidos. No último dia no cargo, Lula, presidente que ao final do mandato gozou de 80% de aprovação, deu a canetada que permitiu a Battisti continuar no Brasil. Foi o último ato oficial de Lula. O documento último de quem se portou da mesma forma desde o princípio do governo. Do metalúrgico que não se dobrou à força da mídia e à sede voraz do Estado italiano. Lá fora eles continuarão a salivar. Berlusconi deve está verbalizando os piores palavrões contra o metalúrgico ousado, infamando um "paisinho" chamado Brasil - os macacos dos trópicos, que só têm futebol, carnaval e mulatas no cio.

Bem vindo ao nosso meio, Cesare Battisti. Somos país um contradizente. Apregoamos os direitos humanos acima de qualquer coisa em nossa Constituição. Mas quando o que está em jogo é a submissão aos figurões do grande capital, grandes chusmas fascistas, indivíduos que no dizer de Mário de Andrade são

"O homem-curva!/ O homem-nádegas!/O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,/é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!/

(...) Os barões lampiões! Os condes Joões! Os duques zurros!/ Que vivem dentro de muros sem pulos, / e gemem sangue de alguns mil-réis fracos /

para dizerem que as filhas da senhora falam o francês /e tocam os "Printemps" com as unhas!"

Não hesitamos em desdizer o que escrevemos em nossa carta máxima.

Bem-vindo, Cesare.

Goiânia, 01 de janeiro de 2011.