segunda-feira, dezembro 27, 2010

C.S. Lewis, a alegria e Nárnia

Escrito há 2 anos.

Descobri o mundo de C.S. Lewis em 2003. Estudava à essa época num seminário teológico. Foi um encontro formidável. Ouvia falar dele – de seus encantos literários, de seus textos simples e profundos. A curiosidade me levou a descobri-lo. O primeiro livro que li foi Surpreendido pela Alegria. No ano de 2003 li este livro três vezes. Li cada página com senso de devoção. Lewis conseguiu me fisgar com o seu estilo sóbrio, mas rico em fantasias. Inoculou em mim o desejo pelo saber. O livro conta as experiências pessoais de Lewis rumo à conversação à fé cristã. O que causou profunda alegria em mim foi justamente o amor de Clive Stamples, significado para as duas letras inicias, pelos livros.

Lewis perdeu a mãe aos 9 anos. Ficou somente com o pai e o irmão. Daí começam as suas investidas ao mundo silencioso e eloqüente da literatura. Leu os clássicos. Inteirou-se das mitologias grega, celta, nórdica. Descobriu o Anel do Nibelungo de Richard Wagner. Criou mundos imaginários. Leu os filósofos. Questionou os posicionamentos dos pensadores. Solidificou seu próprio pensamento.

A casa de Lewis era um recanto amplo, enorme, com muitos livros. Conta Lewis que haviam livros por todos os cantos naquele espaço. A casa era uma grande biblioteca. Isso me faz lembrar de um conto de Jorge Luis Borges – Biblioteca de Babel. Borges cria no texto a imagem do mundo como se esse fosse uma grande biblioteca. Há nesse mundo escadarias com livros por todos os lados. Uma arquitetura bibliográfica. Lewis nos dá a entender que a casa dele era um mundo de livros assim como no conto de Borges. Os livros estavam em toda parte – nos armários, embaixo das escadas, no sótão, nos quartos de hóspedes. Os livros possibilitaram a Lewis fugir da solidão. No filme de 1993, Mundo de Sombras[1], que conta a história do Lewis já como professor em Oxford e como um escritor bem sucedido, dizer: “Lemos para saber que não estamos sozinhos”. Essa afirmativa resume justamente a infância e grande parte da vida Lewis.

O livro me fascinou ainda por reproduzir os aspectos mais vivos do mundo inglês: O frio inglês, a disciplina, a formalidade. O zelo pelo saber. A descrição das escolas tradicionais da Inglaterra. Os conflitos nos colégios internos. Percebemos no livro o crescimento do intelectual, o surgimento da sede pelo saber. Lewis transformou-se num dos mais notáveis intelectuais no século XX na Inglaterra. A alegria surpreendeu Lewis. A alegria a que ele se refere é a fé cristã. Ou seja, a sua conversão à fé cristão mudou completamente o itinerário de sua existência. De agnóstico cínico e despreocupado, Lewis passa a ser uma das vozes mais importantes durante a Segunda Grande Guerra. Suas conferências públicas lotavam os auditórios. Seus programas de rádio eram ouvidos por milhares de pessoas na Inglaterra e nos Estados Unidos.

Lewis não se notabilizou apenas escrevendo livros e artigos cristãos. Ele era um extraordinário catedrático em literatura medieval. Conhecia profundamente o mundo dos saberes. Era ainda um profundo conhecedor da filosofia antiga e o mundo dos mitos. Ou seja, essa base forneceu a Lewis um importante ferramental para colocar em seus livros.

O escritor dedicou boa parte dos seus 38 livros, a falar do sofrimento. No filme Terra de Sombras, em meio a uma conferência, ouvida com atenção pelos presentes, Lewis diz: “A dor é o cinzel de Deus”. Esta frase resume muitas das preocupações do pensador. Percebemos aqui a figura do teólogo. Ao se converter ao cristianismo no início da década de 30, esta experiência rendeu a Lewis um tipo de influência que transformaria o seu pensamento. Tornou-se uma espécie de teólogo livre da Igreja Anglicana. Essa foi uma das alegrias de Lewis. A outra foi a poetisa Joy Gresham, mulher que conheceu e com quem viveu um terno romance, que lhe rendeu uma experiência de agrura. O romance de Lewis com Joy foi interrompido por um câncer. Joy morreu poucos anos após ter conhecido o inglês. Isso ampliou as experiências de Lewis com a dor.

Todavia, o grande feito de Lewis como escritor, acredito, tenha sido o ato de criação do mundo de Nárnia. As Crônicas de Nárnia são uma sucessão de sete livros escritos de forma aleatória. Tais crônicas narram os acontecimentos que se dão em Nárnia, uma espécie de mundo paralelo onde as experiências constituem-se em grande metáforas de temas bíblicos. Lewis conseguiu desenvolver com habilidade imaginativa um dos mundos fictícios mais belos do século XX.

A primeira crônica foi escrita em 1950 (O leão, a feiticeira e o guarda-roupa). Esta com certeza, deve ser o livro mais conhecido da série. O último foi escrito em 1956 (A última batalha). As demais crônicas, são: Príncipe Caspian (1951); A viagem do peregrino da alvorada (1952); A Cadeira de Prata (1953); O cavalo e o seu menino (1954); e O sobrinho do mago (1955). A figura mais expressiva do mundo de Nárnia é Aslam, o grande leão. Fica explícito, que esse leão personifica a figura de Jesus Cristo. Ele aparece nas sete crônicas. Nunca li nada a respeito, mas acredito que o número de sete crônicas não seja fortuito. Na tradição cristã, o número sete representa a perfeição. O escritor deve ter partido desse pressuposto para escrever as sete crônicas.

O que mais impressiona na série de Nárnia é a capacidade que Lewis tem para criar e fantasiar. Os contos de fadas são contados com outros valores. Os livros foram escritos com uma linguagem simples – para criança. O caráter literário das crônicas não oferece grande complicação na interpretação. Mesmo que se conheça a Bíblia superficialmente, não é difícil identificar as metáforas escritas com tanta beleza. Todavia, a quantidade de adultos que têm lido a obra é bastante considerável. Muitas teses e livros têm sido escritos sobre as crônicas, o que apenas revela o caráter literário insuperável.

É impossível ler as crônicas e não se apaixonar pela beleza, pelo jogo narrativo, pelas lições, pela condução proverbial de cada fato. O público brasileiro ainda não conhece completamente os encantos do mundo de Nárnia, infelizmente. Conhece de forma razoável, talvez, os filmes da série que têm sido lançados pela Disney. Todavia, o filme não se compara com a beleza do texto da literatura lewisiana. Apesar dos efeitos computadorizados do cinema, o que serve par criar um aspecto mais fiel aos fatos descritos em Nárnia, a imaginação, o retrato imagético que se arma na mente não é comparável no processo de descoberta, de penetração no mundo de Aslam, do que quando se ler as crônicas.

Impressiono-me com as crônicas mais pelo aspecto literário do que pelas alegorias religiosas. O aspecto mais extraordinário e fabuloso é imaginar como alguém foi capaz de escrever algo tão belo, tão rico de significados. Assim como Tolkien, Lewis foi capaz de misturar elementos mitológicos com os aspectos mais encantáveis dos contos de fadas e transformou tudo isso numa literatura do mais alto e requintado valor para todas as eras da humanidade.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: Segunda-feira, 1 de dezembro de 2008, 10:00:40.

[1] O filme conta com Anthony Hopkins no papel principal, ou seja, como C.S. Lewis.

sábado, dezembro 18, 2010

Cobain, um romântico

O Nirvana, o grupo musical do lendário vocalista e guitarrista Kurt Cobain, foi uma das bandas que mais ouvi em minha adolescência. Constituía uma necessidade. Alimentava-me com o som sujo, distorcido e contagiante do grupo. Admirava a imagem rebelde do vocalista. Sua voz gritada era atraente, necessária. Formava uma unidade poderosa com o som ruidoso que a banda produzia. Embalei-me por muito tempo ao som do grupo de Seattle, a mítica cidade do movimento grunge, que viu surgir bandas como Pearl Jam, Alice in Chains, Mudhoney, Soundgarden e uma quantidade considerável de outros grupos menores. Recordo-me como se fosse hoje da fragrância da música de Seattle, principalmente do Nirvana, banda para a qual não havia competidores.

Estou escrevendo estas palavras, pois ontem assisti a um documentário sobre a vida de Kurt Cobain. E confesso que todas às vezes que penso no jovem Kurt, bate-me uma profunda consternação. Fico a inquirir: “Como pode? Um jovem talentoso como ele...”. Vem-me a ideia de que Cobain foi uma vítima da desagregação familiar. Sua vida, desde a separação dos pais, foi um contínuo gesto irregular. A criança doce e alegre da infância, transformou-se numa criatura de humor variável, instável. Quando o fausto e o dinheiro vieram, o moço taciturno não teve estruturas para suportar.

Pesa contra Kurt o uso exacerbado de drogas. Desde a adolescência, Kurt experimentara todo tipo de entorpecente. A heroína surgiu como uma rainha, uma musa poderosa. Supriu os delírios do vocalista. Sua sede pelo irracional era voraz. Muitas de suas apresentações foram realizadas sob o efeito da droga devastadora. Tornou-se um escravo da substância. Uma espécie de molambo humano sem vontade. Loucuras. Excessos. Depressão. Angústias. Solidão. Uma dor imaginária que lhe corroia as entranhas. Cobain foi devorado pela irracionalidade.

Vejo-o com uma sensação de melancolia. Comisero-me com a sua situação. O jovem talentoso, exímio desenhista, com uma extraordinária vocação para a arte, transformou-se num esquizóide. Absorveu o niilismo de uma geração. Transformou-se em arquétipo. Foi tudo aquilo que milhões de jovens desejam ser. O mal-do-século fez anoitecer a sua mocidade com possibilidades ensolaradas.

Dos álbuns gravados pelo Nirvana, consigo fazer algumas leituras:

(1) Bleach (1989), o famoso álbum cru e sujo, gravado pela Sub Pop, é um manifesto grunge. Cada faixa é gritada; a guitarra de Kurt; os solos são secos, quase inexistentes. Prevalece a distorção. Os momentos mais líricos e comportados ficam por conta da faixa About a Girl;

(2) Nevermind (1991), é a explosão, a consagração. O álbum que mostra o acerto, a guinada para o céu; o disco dos milhões, da projeção. Percebemos um Kurt acertado. A fama o atinge em cheio. De um mês para o outro, o garoto com pouco mais de vinte anos, torna-se um milionário. Antes, não possuía moradia certa e, de repente, dezenas de milhões de dólares jorram na conta da banda. As músicas são excelentes. A sonoridade é variada. Possui momentos ensolarados (On a Plain); de um pop sujo e cantante (Come as you are); refrãos melados e pegajosos que não se viam desde os Beatles (Lithium, In blom); nervosos e bons para sacudi a cabeça, agredir a garganta (Stay Away, Territorial Pissings);

(3) Incesticide (1992), é um álbum que segue uma temática semelhante ao Bleach. Possui músicas sujas e gritadas. É uma compilação de músicas da banda - b-sides. Os bons momentos ficam com as faixas Dive, Sliver, Been a Son, Downer, e Aneurysm;

(4) In Utero (1993), este é o disco do desespero, do pedido de socorro. In Utero é um disco de audição nervosa. O som é denso, sufocante. Uma força magnética provoca ruídos, leva-nos a uma atmosfera de letras que falam de “esperma”, “cogumelos”, “antiácidos”, “loucuras”, “tranqüilizantes”. Certamente Kobain estava no útero da dor, do descompasso, da desagregação. Algumas overdoses aconteceriam. Tentativas de suicídio. O comportamento bipolar. O corpo novo transformou-se num escravo do vício. A apresentação que o grupo fez no Brasil em 1993, expõe o estado de penúria do músico. Cena deprimente é aquela em que ele caminha de quatro no palco, porque não conseguia se manter de pé. O estado de abstinência degradava o corpo magro. O organismo exigia o passaporte para o nada.

(5) Unpluggedd em New York (1994), é o álbum em que ele diz: “Adeus! Estou indo embora!”. Naquele ano o vocalista se suicidaria. Compraria um espingarda de caça e daria um tiro em si mesmo. Deixaria uma carta na qual explicava que estava cansado. Era um impostor. Enganara a todos. Penso que o maior de todos os enganos de Kurt foi aquele aplicado a si mesmo. O jovem músico cavou a sua própria ruína. A sua arte o matou. Os excessos. O flerte demorado com a irracionalidade. A heroína que anemizou a sua potência de vida, tudo isso se constituiu numa viagem fatal.

Ainda ontem escutei três ou quatro álbuns da banda – seguidamente. Ouvi Bleach e Incesticide, algumas faixas de Nevermind; não suportei o In Utero. Achei-o ácido em demasia, com muitas esporas e excrescências ruidosas. Ao final, fiquei com um banzo estranho. Um enorme vazio. Como se me tivessem tirado o direito de sorrir. A música de Kurt está cheia de Cobain. Talvez tenha sido isso que vitimou o compositor. Kurt passou muito tempo olhando para a sua arte e não suportou. Os aspectos noturnos de sua produção transformaram-se numa força labiríntica que o enfermou até a morte.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: sexta-feira, 17 de dezembro de 2010.

sexta-feira, dezembro 10, 2010

A teia frágil da vida

Fato curioso se deu, o que me permitiu uma reflexão afetada, excessivamente magra. Na verdade, um fato levou ao entendimento de outro fato. Foram quase complementares. Emendaram-se. O conúbio dos acontecimentos e as impressões suscitadas me deixaram satisfeito.

Estava numa fila de mercado. Os produtos da mercancia para o almoço estavam nas mãos. A enorme fila movia-se preguiçosamente como uma serpente cansada. Olhava as mercadorias. Os salgados, os doces, as revistas, as bugigangas miúdas a formarem paredes no corredor minúsculo. São colocados como que para despertar o desejo de crianças desatentas. São verdadeiras redes, arapucas. Ao longe eu avistei uma pequena planta, uma espécie de bonsai. Fiquei impressionado com a delicadeza do pequeno arbusto. As folhas pareciam de uma pitangueira. Ali, estática, a beleza miniaturizada, fez-me pensar na vida. Como poderia existir algo assim? Como a natureza é encantadora! O silêncio de eras a fecundar processos. A vida teimosa que brota e se estabelecesse em todos os locais. Ofereça as condições e ela instala-se. A fragilidade da planta me impressionou. Ela não era bela por ser grande e ter características extraordinárias. Simplesmente, ela era bela por ser pequena, cândida, delicada, cheia de silêncios poéticos.

A plantinha me fez pensar num episódio que se dera lá em casa. Uma borboleta entrou em nossa casa. As portas e janelas estavam abertas. A criatura voadora introduziu-se e por lá ficou. Minha mãe ficou feliz com a visita. Segundo ela, aquela novidade era mensageira de presságios positivos. Enxergou augúrios faustosos no simples vôo de uma borboleta. Crédula em demasia, minha mãe é uma criatura incrível. Aquiesci consternado, enxergando absurdos naquela situação.

A borboleta era enorme. As asas eram negras, com desenhos curiosos – pequenas curvas nas extremidades das asas; uma espécie de olho em cada uma das excrescências que lhe saíam do corpo exíguo. Voava por todos os lados. Pousava no teto. Embrenhava-se em ocos escuros. Outro sujeito a teria fulminado nos primeiros momentos da aparição inusitada.

Mas comecei a perceber após três ou quatro dias, que os seus saracoteios aéreos estavam cada vez mais cansados. Voava com dificuldades. Seus vôos passaram a ser rasteiros. Não pousava mais no teto. A mudança era clara. As acrobacias áreas dos primeiros dias transmudara-se em desconexas ações irregulares. Certamente a criatura alada estava envelhecendo, cumprindo o seu ciclo vital.

Num certo dia, percebi que ela não mais voava. Debatia-se em arremessos inúteis. Estrebuchava. Produzia apenas barulho. O corpo pequeno não conseguia articular as grandes asas. Parecia ter esquecido a capacidade que antes possuíra. Ficava observando aquele fato. Minha mãe, sentimental, dizia:

- Tadinha da bichinha!

Em dada ocasião resolvi minorar-lhe o sofrimento e aplicar a eutanásia. Não há uma ética para determinados bichos. Estava sentado e notei que, no descontrole da tentativa de voar, o bicho vinha para cima de mim. Todos dormiam em casa. Era quase meia-noite. Eu lia no sofá. Decidi borrifar uma pequena dose de veneno. O efeito foi imediato. O bate-bate de asas. O ruflar descompassado. A tentativa de desgrudar do solo para, talvez, um último vôo. Eu era um indivíduo cruel e frio. Suscetibilizei-me com aquele pensamento. Aos poucos as asas começaram a subir e a descer num gesto lento, brando. Coloquei-a do lado de fora de casa.

No outro dia, minha mãe ao acordar, viu a borboleta que ainda arfava no quintal.

- Quem quem... a bichinha morreu! – disse cheia de pesares. Contei o acontecido e como ministrara o remédio letal.

- Por que tu fez isso? – inquiriu.

- Ela tem um ciclo vital, mãe. Já estava chegando a hora dela morrer. – respondi discreteando. Certamente ela não entendia aquilo.

- Farei um enterro digno – disse eu. Era desarrazoado enterrar uma borboleta. Somente os homens enterram os seus mortos. Existem fortes elementos religiosos e culturais envolvidos nisso. Enterrar uma borboleta era, simplesmente, medonho. Percebi que a questão ganhara contornos filosóficos.

Há um relógio vital a regular os organismos. Os seres vivos ao ascenderem à vida, as areias do tempo iniciam um processo incontrastável de contagem. A borboleta voara. Cumprira o desígnio da natureza. A plantinha também estava com o seu tempo contado. A beleza, o viço; o silêncio da planta a vesti-la de encantos. Mas, no invisível, a ampulheta da existência a contar-lhe os minutos de forma irrecusável. Olhei os homens e mulheres que formavam a fila; outros que caminhavam apressados nas entranhas do centro cheio de víveres. Olhei mais detidamente e verifiquei que eles não possuíam mais cabeça. No lugar do crânio, ampulhetas. A entropia a roer-lhes a estrutura orgânica, a envelhecer tecidos, órgãos, sistemas. Minha visão era absurda. Puro devaneio.

A planta era uma metáfora. A borboleta era um símbolo. A beleza silenciosa e delicada das folhas verdes dava encantos singulares à planta. Entendi que a vida tem encantos. O vôo da borboleta afirmava que enquanto vivemos podemos voar. A natureza nos dá aptidões e depois nos toma. Terrível é receber essas aptidões e não usá-la. É passar pela vida e não viver. Certamente aquilo que me sensibilizou. Fui para casa pensando como poderia voar e como poderia me vestir com o silêncio delicado das plantas.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque Data:

09 de dezembro de 2010, quinta-feira.

sexta-feira, dezembro 03, 2010

Impressões pessoais sobre “A História da Civilização” de Durant[1]

Concluí há pouco a leitura de um dos tomos da obra do historiador inglês Will Durant. Já ouvi diversas críticas ao seu método historiográfico. Quando leio tais discussões, concluo num monólogo interior: “Historiadores!”. Uns gostam dos franceses; outros, detesta-os. Alguns outros execram a análise dialética daqueles que leem a História sob a perspectiva do materialismo de Marx. Falando como mero expectador, considero a tradição francesa e penso que o marxismo é a mais elevada das concepções filosóficas, conforme disse certa vez Vladimir Lênin num ensaio. Observem que rechaço qualquer sectarismo.

Do livro de Durant ficaram três percepções a serem destacadas, comentadas gratuitamente:

(1) A decadência do Estado Romano. A toda poderosa Roma veio abaixo. Ela foi sendo minada lentamente. Seu exército tornou-se lânguido e ineficaz. O enfraquecimento do exército, do poderio bélico, é sempre uma amostra de que um Estado Onipotente esteja a ruir. O fato é que o exército romano já não conseguia deter as forças bárbaras que marchavam em magotes expressivos. Vinham do norte, do sul, do leste, do oeste. Constituíam-se num flagelo aniquilador. Os últimos imperadores romanos foram meninos frágeis e aturdidos. O Estado estava com as estruturas apodrecidas. A alta burocracia vestia-se com uma pompa patética. Golpes. Assassinatos. Conspirações. Levantes. Loucuras. Medidas ineficazes. Outro elemento que deve ser considerado, além da corrupção e do enfraquecimento econômico e militar, é o advento do cristianismo como a religião do Império. De certa forma, acredito, as circunstâncias tenham forçado o Estado Romano a se tornar cristão. A fé dos escravos crescera demais. Não havia mais como controlar. Escravos, soldados, parte da elite política, alguns indivíduos ricos haviam se convertido à nova fé. Constantino alega conversão e edita a tolerância aos cultos cristãos. Imagine: um Estado que ameaça cair; fome, desagregação, a invasão dos implacáveis bárbaros, incertezas. De repente, surge uma fé que promete o Paraíso, estabilidade, a possibilidade de um “outro reino”. Penso que diante de conjuntura tão apocalíptica, a promessa cristã tenha se tornado alvissareira, oportuna. Trouxe a esperança de estabilidade que as camadas mais angustiadas da sociedade precisava. Na calamidade, então, torna-se comum a fuga metafísica. Quanto mais acossados pela conjuntura histórica, mais os homens precisam de religião. Surgia uma nova estrutura que prometia “agasalhar” todos os homens – a Igreja Católica e Apostólica Romana (a Igreja Universal). E no dizer de Durant: “... deve a Igreja Católica figurar entre as mais imponentes obras-primas da história” (p.63). Ou seja, durante mais de dezenove séculos, ela permanece amalgamada com os poderes o mundo. A História do Ocidente querendo ou não está grávida dos feitos da Igreja de Roma. Ela é a principal herdeira das estruturas do Império dos césares. Herdou inclusive a arrogância da elite imperial e a estrutura burocrática da hierarquia que fazia o Estado Romano. Substituiu o césar (divino, augusto, que tudo podia) pelo papa (grande pai, substituto de Pedro, representante de Deus entre os homens). Quando o Estado Romano não teve mais condições de conquistar militarmente, passou à Igreja a fome imperialista para que ela empunhasse a cruz. O símbolo cristão substituiu a espada e tornou-se num eficaz instrumento de poder.

(2) Outro fato que se destaca na obra de Durant é a descrição feita a respeito dos bárbaros. Indiretamente eu possuo sangue bárbaro. Pois, eles são os principais formadores das nações européias – França (francos), Inglaterra (anglo-saxões), Ibéria – Espanha-Portugal (visigodos), Itália (ostrogodos), Alemanha (alamanos) e etc. As tribos bárbaras sempre existiram nas cercanias de Roma. Os romanos chamavam de bárbaros àqueles que não faziam parte do Império ou que estavam para além dos limites geográficos da terra dos césares. Assim, as inúmeras tribos e povos que estavam fora das fronteiras romanas, constituíam-se bárbaros. O termo barbarer provavelmente tivesse uma relação com o sânscrito varvara, o qual significava um indivíduo grosseiro e ignorante. E, de fato, os bárbaros possuíam um estilo de vida bastante rústico. Não tinham o costume de tomar banho. Banho e limpeza são coisa de árabe e índio. Gilberto Freire enuncia essa tese em sua obra Casa Grande e Senzala. Os árabes estiveram na Ibéria e deixaram lá o gosto pelos aromas. Já o banho é resultante de nossa matriz indígena. Voltando aos bárbaros: dormiam em cima dos cavalos. Comiam carne semi-crua. Tinham o costume de colocar a carne entre as pernas e o corpo do cavalo. O calor provocado pela fricção entre homem e animal modificava o estado da carne. Eram criaturas implacáveis. Não concediam clemência a quem quer que fosse. Matavam homens, mulheres, crianças, animais; ateavam fogo nas aldeias por que passavam. Átila, o huno, era chamado de “o flagelo de Deus”. Fato que deve ser considerado com relação aos bárbaros era a habilidade diplomática. Além de mordazes guerreiros, eram extraordinários negociadores. À medida que foram se estabelecendo nos domínios combalidos do Império Romano, foram ampliando geograficamente as terras ocupadas por intermédio da diplomacia. Grandes líderes bárbaros como, por exemplo, Alarico, Teodorico, Átila, Meroveu, foram responsáveis pela consolidação dessas tribos. A presença bárbara ruralizou a Europa. O cristianismo com o seu ideal de ruptura com o mundo fez com que surgissem os monastérios. Viver no claustro. Tornar-se um anacoreta. Exorcizar as paixões corruptas da civilização. Ou numa tese agostiniana de filosofia da História: deixar a “cidade dos homens” e ingressar na civitate dei (“cidade de Deus”). A vida citadina dos romanos tornou-se em algo deletério. De modo que é a partir desse movimento que pode se falar em feudalismo. Os indivíduos saíam das cidades e, geralmente, procuram a proteção de um senhor que lhe concedia terras para trabalhar. Isso fez com que surgisse um novo modo de produção, uma nova relação material para com a História – o Feudalismo.

(3) E outro aspecto bastante considerável da obra de Durant foi a “revelação” do povo árabe. O Ocidente não conhece a riqueza que se esconde por trás das areias quentes do Oriente. Imaginar um árabe é visualizar um indivíduo que se rende a Deus (Alá) de forma incondicional. É dessa submissão (inclusive o termo islão, significa submissão), que derivam todas as relações que o sujeito histórico estabelece com o próximo e com o mundo. Viver para um mulçumano é render-se a Deus e prestar crédito ao que disse o Seu profeta, Maomé. Das principais religiões do mundo, o Islamismo foi uma das últimas a surgirem. Como tudo isso veio a existir? A fé aglutinou as diversas tribos semitas que viviam no deserto antes do século VII. A maioria possuía as suas crenças particulares – muitos cristãos e judeus. Maomé conseguiu iniciar um movimento que consolidou a nova fé e fez com que surgisse dadivosamente uma bela flor no deserto. Quando assistimos àquelas reportagens descaracterizantes montadas pela grande mídia que atende a interesses econômicos, afugentamos a possibilidade de conhecer um dos povos mais belos do mundo. Os árabes possuem pensadores sofisticados, poetas absurdamente sensíveis, matemáticos fantásticos, músicos complexos, cientistas com um alto grau de especulação, estadistas valorosos. Nomes como Avicena, Averróis, Tabari, Muhammad ibn Musa, grande matemático, Abu AL-Rayhan Muhamadd ibn Ahmad AL-Biruni, entre tantos outros devem ser respeitados. Os árabes anteciparam em muito aquilo que viria a ser pensado séculos mais tarde na Europa. Para que tenhamos um exemplo é só mencionar o filósofo Avicena, uma das mentes mais belas e privilegiadas da História. Há inúmeros outros pensadores árabes como mencionei, mas Avicena sobrepujou-os pelo estilo, pela beleza das figuras metafóricas, criadas para elucidar fatos, aclarar exposições. Avicena antecipou o pensamento de Aquino em muitos aspectos. Era um verdadeiro “discípulo” de Aristóteles. Em muitos sentidos, é por causa do entusiasmo dos árabes para com o pensamento que temos a possibilidade de conhecer os grandes pensadores helênicos. Eles fizeram um belo trabalho de resgate da filosofia grega, principalmente de Aristóteles. Em suma: os árabes são uma jóia rara a ser contemplada mais atentamente. A arquitetura de suas mesquitas, os aromas afrodisíacos, a paixão pelas mulheres, a música evocadora de mistérios represados, o pensamento, a poesia com gosto e cheiro de jasmim e mirra. Tudo isso aguça os sentidos e confirma o poder de seu povo.


Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: 01 de dezembro de 2010, quarta-feira.

[1] História da Civilização (4a. parte) – Idade da Fé – Tomo 1º., Will Durant, Companhia Editora Nacional, 1957, 411p.

segunda-feira, novembro 29, 2010

O mundo de Sofia, o filme

A película O Mundo de Sofia foi filmado no ano de 1998. É uma obra origem norueguesa elaborada pelo diretor Erik Gustavson. Está baseado na obra homônima do escritor, também norueguês, Jostein Gaarder. O livro de Gaarder foi publicado em 1991 e vendeu milhões de cópias em todo o mundo. Estima-se que somente no Brasil já esteja na setuagésima reimpressão. O filme baseado no livro chegou ao mercado brasileiro no ano de 2008.

O filme, assim como o livro, conta a história da adolescente Sofia Amudsen. Sofia mora com sua mãe, seu gato, seu peixe dourado e sua tartaruga. Seu pai trabalha num navio petroleiro e fica fora de casa a maior parte do ano. Ela leva uma vida de normalidade como uma mera colegial. Até que recebe dois misteriosos bilhetes, ambos com duas fulgurantes perguntas: “Quem é você?” e “De onde vem o mundo?” A partir daí, Sofia passa a receber paulatinamente um curso de filosofia pelo correio.

Por intermédio dessas correspondências, a garota se torna discípula de um filósofo denominado Alberto Knox. A princípio, Alberto é uma figura anônima, incógnita, mas, aos poucos revela um pouco mais de si. O cinqüentenário Alberto ensina história da filosofia de uma maneira extremamente simples e versátil. Inicia pelos Pré-Socráticos até os filósofos modernos. Por exemplo, para ensinar sobre os filósofos medievais, o professor leva a menina Sofia a um mosteiro. No intuito de ensinar sobre o existencialismo de Sartre e Simone de Beauvoir, Sofia é levada a um café francês, palco histórico onde se desfechavam muitas das disputas filosóficas na França da segunda metade do século passado. Ou seja, é o pensamento complexo sendo amoldado pela inserção do aprendente no contexto daquilo em que é ensinado. O saber não se torna em algo distante, ausente. Num curso de filosofia, a maior tendência seria tornar o aprendizado árido. Todavia, a pedagogia do professor Alberto está repleta de praticidade e magia, o que torna o ato de aprender em algo prazeroso.

Ao final, percebemos que Sofia e Alberto são personagens de uma metaficção. Certo Alberto Knag é o criador dos dois personagens. Knag permite que as duas personagens se descubram enquanto figuras fictícias. A filosofia tornou possível que os dois – Sofia e Alberto Knox – transcendessem a própria realidade do ir-real em que se encontravam.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

terça-feira, novembro 23, 2010

Rachel de Queiroz, cem anos de literatura

No último dia 17 de novembro, completaram-se 100 anos do nascimento da escritora cearense Rachel de Queiroz. Não vi homenagens sendo feitas à escritora. Mais uma evidência de que vivemos, ainda, num país de memória frágil e safada. Os grandes homens e mulheres que se notabilizaram, que trabalharam arduamente para construir um país mais belo, culto e justo são esquecidos como quinquilharias ordinárias no porão da História.

Descobri a notícia por acaso. Li no jornal Correio Braziliense – uma página apenas! Até onde tenha notado, não vi a televisão fazer qualquer menção ao fato. Terrível. Atordoante. Certamente, isso é sintoma de anomalia e descaso.

Rachel de Queiroz escreveu uma obra de significativa importância. Começou a vida literária ainda muito jovem. Aos 20 anos já havia escrito O Quinze, livro que a tornou nacionalmente conhecida. Era uma época rica, aquela década de 30. Inúmeros escritores produziam literatura regionalista, de forte denúncia social – Graciliano Ramos, José Lins do Rêgo, Jorge Amado entre outros. O momento histórico permitia esse surto realista, revelando um dos momentos mais ricos de nossa prosa literária.

Leitora voraz, Rachel sentiu-se estimulada a escrever O Quinze. O livro é resultado das competências adquiridas com a leitura, principalmente dos escritores ingleses e franceses. O livro é bom. Possui maturidade. Mordacidade. Um texto enxuto. A linguagem é limpa e implacável. Realismo cru e um dos melhores momentos do Modernismo. A obra está assentada em experiências pessoais. Narra fatos atinentes à seca de 1915 no Ceará. Recordo-me que li a obra numa única tarde. Preciso revisitar a obra mais uma vez. Lerei Três Marias, O Quinze e Memorial de Maria Moura, livros que possuo em minha biblioteca.

Rachel escreveu outras obras importantes como, por exemplo, João Miguel, as já mencionadas Três Marias, traduzida para diversas línguas; e Memorial de Maria Moura, transformada em série televisiva. Destacam-se ainda os romances Caminho de Pedras e Dôra, Doralina. A escritora também se enveredou pelo teatro e pela literatura infantil. Escreveu incontáveis crônicas para os principais jornais do país até os últimos dias de vida.

A escritora chegou a fazer parte da Academia Brasileira de Letras. Talvez os fatos mais dúbios e geradores de controvérsia na vida da escritora se estabeleceram nas escolhas políticas que fez. Quando muito nova, ingressou no Partido Comunista, tornando-se uma das fundadoras do Partido em seu estado, o Ceará. Mas por causa das observações que começou a fazer e do controle que o Partido estava fazendo sobre a sua obra, deixou o as fileiras do PC. Tornou-se trotkista, mas desligou-se também. Na década de 60, desafeta de Jango, Rachel apoiou a Ditadura Militar, uma das páginas mais tenebrosas da História de nosso país. Esse fato quiçá tenha manchado a figura pública da escritora. Obscurecido a sua imagem perante a crítica e os intelectuais. Apesar desse direcionamento contrastante, gosto de Rachel. Acredito que ela precisa ser mais conhecida com profundidade. O apoio que deu à Ditadura foi infeliz e crasso. Heidegger apoiou o nazismo e nem por isso deixamos de lê-lo. A obra de Rachel e grande e capaz de redimi-la desse infortúnio histórico.

A escritora morreu em 2003, às vésperas de completar 93 anos de idade.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: terça-feira, 23 de novembro de 2010, 20:34:08.

segunda-feira, novembro 22, 2010

Como nasceu e como morreu o «Marxismo Ocidental»

Porque é que, depois de ter gozado de uma extraordinária fortuna nos anos sessenta e setenta, o marxismo caiu no Ocidente numa crise tão profunda? Vale a pena tomar como ponto de partida um debate de 1954 provocado por Norberto Bobbio. Este, embora justamente insistindo no carácter irrenunciável da liberdade «formal», conta a favor dos Estados socialistas o terem «iniciado uma nova fase de progresso civilizacional em países politicamente atrasados, introduzindo instituições tradicionalmente democráticas, de democracia formal como o sufrágio universal e a electividade dos cargos, e de democracia substancial como a colectivização dos instrumentos de produção». E, no entanto – é a conclusão crítica ¬– o novo «Estado socialista» ainda não foi capaz de transplantar para o seu seio o governo da lei e os mecanismos garantistas liberais, ainda não foi capaz de proceder à «limitação do poder» e deitar «uma gota de óleo [liberal] nas máquinas da revolução já realizada». Como se vê, estamos longe das posições assumidas pelo filósofo turinês na última fase da sua evolução, quando se torna em última análise um ideólogo da guerra do Ocidente: em 1954 são grandes a influência do marxismo e o prestígio dos países que dele se reclamam; neste momento, juntamente com a «democracia formal» Bobbio teoriza também uma «democracia substancial»; aliás, sobre os países socialistas exprime um juízo que não é univocamente negativo nem sequer no que respeita à «democracia formal».

Quais são as reacções dos intelectuais comunistas italianos? Para rejeitar ou atenuar as críticas dirigidas em primeiro lugar à União Soviética, como justificação parcial do atraso, eles poderiam ter aduzido o estado de excepção permanente imposto ao país nascido da revolução de Outubro e a ameaça de aniquilação nuclear que continuava a pairar sobre ele. Galvano della Volpe segue contudo uma estratégia absolutamente diferente, concentrando-se na celebração da libertas maior (o desenvolvimento concreto da individualidade garantido pelas condições materiais de vida). Assim, por um lado desvalorizam-se as garantias jurídicas do Estado de direito, implicitamente degradadas a libertas minor; e por outro, acaba-se por valorizar a transfiguração a que procede Bobbio da tradição liberal como campeã da causa do gozo universal pelo menos dos direitos civis, da liberdade formal. E contudo em 1954 ainda está de pé o sistema colonial e dentro do seu âmbito é claro que não se respeita nenhuma liberdade; nos próprios Estados Unidos os negros continuavam a ser largamente excluídos dos direitos políticos e, muitas vezes, até dos direitos civis (no Sul ainda não desaparecera o regime de segregação racial e de white supremacy). Todo empenhado na celebração da libertas maior, Della Volpe não se preocupa ou não é capaz de chamar a atenção para o clamoroso infortúnio de Bobbio.

O facto é que o marxismo ocidental daqueles anos se caracteriza largamente pelo menosprezo da questão colonial. Em 1961 Ernst Bloch publica Direito natural e dignidade humana. Como já emerge do título, estamos bem longe da desvalorização cara a Della Volpe da libertas minor; pelo contrário é explícita a reivindicação da herança da tradição liberal, submetida contudo a uma crítica que infelizmente mais parece uma transfiguração. Bloch censura ao liberalismo o propugnar uma «igualdade formal e apenas formal». E acrescenta: «Para se impor, o capitalismo só está interessado na realização de uma universalidade da regulamentação jurídica, que tudo abrange de modo igual».

Esta afirmação pode-se ler num livro cuja publicação é do mesmo ano em que em Paris a polícia desencadeia uma impiedosa caça aos argelinos, afogados no Sena ou mortos à bastonada; e tudo à luz do sol, aliás perante a presença de cidadãos franceses que, sob a protecção do governo da lei, assistem divertidos ao espectáculo: qual «igualdade formal»! Na própria capital de um país capitalista e liberal vemos em acção uma dupla legislação, que entrega ao arbítrio e ao terror policial um grupo étnico bem determinado. Se depois tomarmos em consideração as colónias e as semi-colónias e virarmos os olhos por exemplo para a Argélia ou para o Quénia ou para a Guatemala (um país formalmente livre mas de facto sob o protectorado estado-unidense), vemos o Estado dominante, capitalista e liberal, recorrer em grande escala e de modo sistemático às torturas, aos campos de concentração e às práticas genocidas contra os indígenas. De nada disto há sinais, nem em Bobbio, nem em Della Volpe nem em Bloch.

Contudo, é precisamente nestes anos que começa a desenvolver-se nos EUA a luta dos afro-americanos. É um assunto que atrai as atenções da China de Mao Zedong, e pode ser interessante comparar as tomadas de posição de duas personalidades tão diferentes entre si. Se Bloch denuncia o carácter meramente «formal» da igualdade liberal e capitalista, o dirigente comunista chinês procede de modo bem diferente. Certamente, sublinha que os negros sofrem uma taxa nitidamente mais alta de desemprego em relação aos brancos, são relegados para os segmentos inferiores do mercado do trabalho e obrigados a contentar-se com salários reduzidos. Mas não é tudo: Mao chama a atenção para a violência racista desencadeada pelas autoridades do Sul e pelos bandos por elas tolerados ou encorajados e celebra «a luta do povo negro americano contra a discriminação racial e pela liberdade e igualdade de direitos». Bloch critica a revolução burguesa pelo facto de ela «ter limitado a igualdade à política»; em referência aos afro-americanos, Mao recorda que «a maior parte deles está privada do direito de voto».

Ressoam tons análogos no Vietname, onde está em curso uma grande luta de libertação nacional dirigida por Ho Chi Minh, que já em 1920 tinha acusado a Terceira República francesa nestes termos: «A chamada justiça indochinesa tem lá dois pesos e duas medidas. Os anamitas não têm as mesmas garantias dos europeus e dos europeizados». Não só são «vergonhosamente oprimidos e explorados», como são também «horrivelmente martirizados» e sofrem «todas as atrocidades cometidas pelos bandidos do capital». Como se vê, nos textos aqui citados de Mao e Ho Chi Minh não existe nem a desvalorização cara a Della Volpe da libertas minor nem a ilusão (comum, com modalidades diferentes, a Bobbio, Della Volpe e Bloch), de que o capitalismo e o liberalismo apesar de tudo garantiriam a «igualdade formal» ou a própria «igualdade política». Como vemos, na denúncia das macroscópicas cláusulas de exclusão da liberdade liberal, o marxismo «oriental» empenha-se, compreensivelmente, bem mais do que o «ocidental».

Tornemos ao debate provocado por Bobbio em 1954. Há uma intervenção sensivelmente diferente da de Della Volpe. A polémica com o filósofo turinês agora desenvolveu-se assim: «Quando e em que medida foram aplicados aos povos coloniais os princípios liberais sobre os quais se disse estar assente o Estado inglês oitocentista, modelo, creio, do regime liberal perfeito para quem raciocina como Bobbio?». A verdade é que a «doutrina liberal […] assenta numa bárbara discriminação entre as criaturas humanas», que alastra não só nas colónias mas também na própria metrópole, como demonstra o caso dos negros estado-unidenses, «em tão grande parte privados de direitos elementares, discriminados e perseguidos». Nesta tomada de posição não há nenhuma degradação a libertas minor da «liberdade formal» mas, ao mesmo tempo, não se perde de vista o facto de que a negar o seu gozo a ilimitadas massas de homens tem sido historicamente o próprio Ocidente liberal. A intervenção que acabamos de ver deve-se a um autor hoje quase totalmente esquecido, mas que responde pelo nome de Palmiro Togliatti, à época secretário-geral do PCI.

2.
Nos anos sessenta e setenta do século XX um equívoco de massa caracteriza na Europa e nos Estados Unidos a esquerda de orientação marxista: as grandes manifestações a favor do Vietname entrelaçam-se tranquilamente com a homenagem tributada a autores inclinados a considerar definitivamente superados os movimentos de libertação nacional. Em 1966, na Dialéctica negativa, Adorno liquida a tese hegeliana do «espírito do povo», ou seja, do carácter essencial da dimensão e da questão nacional, como «reaccionária» e regressiva, por estar afectada de «nacionalismo» e ser «provinciana na época de conflitos mundiais e do potencial de uma organização mundial do mundo». É’ uma tomada de posição que a posteriori tirava legitimidade à guerra conduzida pela Frente de Libertação Nacional da Argélia, um povo e um país indubiamente mais provincianos, mais atrasados e menos cosmopolitas que a França contra quem se tinham insurgido. Seja como for, Adorno colocava-se na impossibilidade de compreender as grandes lutas que mo entanto se iam desenrolando diante dos seus olhos, a começar pela guiada pela Frente de Libertação Nacional do Vietname.

De resto, vejamos como sobre este ponto argumenta o «marxismo oriental». Três anos após a publicação da Dialéctica negativa morre Ho Chi Minh. No seu Testamento, depois de ter chamado os seus concidadãos à «luta patriótica» e ao empenho «pela salvação da pátria», no plano pessoal traça este balanço: «Por toda a vida, de corpo e alma servi a pátria, servi a revolução, servi o povo». Por outro lado, já em 1960, por ocasião do seu septuagésimo aniversário, assim evocou o dirigente vietnamita o seu percurso intelectual e político: «Ao princípio o que me impeliu a crer em Lénine e na Terceira Internacional foi o patriotismo, e não o comunismo». O que provocou grande emoção foram em primeiro lugar os apelos e os documentos que apoiavam e promoviam a luta de libertação dos povos coloniais, sublinhando o seu direito de se constituírem como Estados nacionais independentes: «As teses de Lénine [sobre a questão nacional e colonial] despertaram em mim uma grande comoção, um grande entusiasmo, uma grande fé, e ajudaram-me a ver claramente os problemas. Foi tão grande a minha alegria que até chorei». No que diz respeito a Mao, basta pensar na declaração que fez em 1949, nas vésperas da fundação da República Popular Chinesa: «A nossa nunca mais será uma nação sujeita ao insulto e à humilhação. Pusemo-nos de pé […] A era em que o povo chinês era considerado incivilizado terminou agora».

Bem se compreende o comportamento dos dois grandes revolucionários. Por detrás deles actua a lição de Lénine, que assim caracterizara o imperialismo: trata-se de um sistema em cujo âmbito algumas ditas «nações modelo» atribuem a si mesmas «o privilégio exclusivo da formação do Estado», negando-o aos povos das colónias; sim, «poucas nações eleitas» pretendem edificar o seu «bem-estar» e estabelecer o seu próprio primado na base do saque e da dominação do resto da humanidade. Mas nesses anos a homenagem a Ho Chi Minh ou a Mao ou a Fidel não estimulava de modo nenhum uma distanciação do niilismo nacional absorvido na escola do marxismo ocidental.

A razão profunda desta atitude contraditória será esclarecida de modo exemplar, uns decénios depois, por Hardt e Negri: «Da Índia à Argélia, de Cuba ao Vietname, o Estado é o presente envenenado da libertação nacional». Sim, os palestinos podem contar com a nossa simpatia; mas a partir do momento em que «se institucionalizarem», já não se pode estar do «lado deles». O facto é que «no momento em que a nação começa a formar-se e se torna um Estado soberano perdem-se as suas funções progressistas». Ou seja, só se pode simpatizar com os vietnamitas, com os palestinos ou com outros povos enquanto eles forem oprimidos e humilhados; só se pode apoiar uma luta de libertação nacional na medida em que ela não deixar de ser derrotada!

3.
Neste clima espiritual e político, a cultura de orientação marxista começa a ser atraída e revirada do avesso por autores e correntes de pensamento que contudo deveriam ser vistos com uma certa distância critica. Irrompe em força Foucault com a sua análise da penetração ou da omnipresença do poder não só nas instituições e nas relações sociais mas já no dispositivo conceptual. É um discurso que fascina pelo seu radicalismo e que ainda por cima permite ajustar contas com o poder e a ideocracia como fundamento do «socialismo real», cuja crise se manifesta cada vez com maior nitidez. Na realidade, o radicalismo não só é aparente, como se vira no seu contrário. O gesto de condenação de todas as relações de poder, aliás, de todas as formas de poder quer no âmbito da sociedade que no discurso sobre a sociedade torna bastante problemática ou impossível a «negação determinada», a negação de um «conteúdo determinado» que, hegelianamente, é o pressuposto de uma real transformação da sociedade, o pressuposto da revolução. Para mais, este esforço de identificação e desmistificação do domínio em todas as suas formas revela lacunas surpreendentes justamente onde o domínio se manifesta em toda a sua brutalidade: sìm, bastante escassa ou inexistente é a atenção reservada à dominação colonial.

Pode-se ir mais longe: o colonialismo e a ideologia colonial estão largamente ausentes na história que Foucault reconstrói do mondo moderno e contemporâneo. A julgar por esta, a «aparição do racismo de Estado [deve-se situar] nos inícios do século XX». Quem tratou de pôr em causa esta cronologia foram com larguíssima antecipação os abolicionistas que já no século XIX queimavam na praça pública a Constituição americana, rotulada como um pacto com o diabo pelo facto de consagrar a escravatura racial. Se não na história dos Estados Unidos, Foucault poderia ter-se concentrado na história da Confederação secessionista ou da África do Sul, ou então poderia ter feito uma consideração de carácter geral: se analisarmos os países capitalistas juntamente com as colónias por eles possuídas, podemos facilmente dar-nos conta de que o fenómeno denunciado por Ho Chi Minh em relação à Indochina tem um carácter geral: estamos na presença de uma dupla legislação, uma para a raça dos conquistadores, e a outra para a raça dos conquistados. Neste sentido o Estado racial acompanha como uma sombra a história do colonialismo no seu conjunto; só que este fenómeno se apresenta com maior evidência nos Estados Unidos devido à contiguidade espacial em que vivem as diferentes raças. Aliás, quando em 1976 o autor francês se põe em busca de outra realidade para juntar ao Terceiro Reich sob a bandeira do «racismo de Estado», ele só consegue identificá-la na União Soviética, o país que desde a sua fundação desempenhava um papel decisivo em promover a emancipação dos povos coloniais e que em 1976 ainda estava em primeiro plano na denúncia da politica anti-negra conduzida pela África do Sul!

Tem-se observado que Foucault exerce uma considerável influência sobre Antonio Negri. Com efeito… Nos nossos dias, autorizados especialistas estado-unidenses de orientação liberal descrevem a história do seu país como a história de uma Herrenvolk democracy, isto é, de uma democracia válida só para o Herrenvolk (é significativo o recurso à linguagem cara a Hitler), para o «povo dos senhores» e que, por outro lado, não hesita em escravizar os negros e em eliminar os peles-vermelhas da face da terra. A Empire, em contrapartida, fala em tom compungido de uma «democracia americana» que rompe com a visão «transcendente» do poder, própria da tradição europeia.

Chegados a este ponto, proponho uma espécie de experiência intelectual ou, se quiserem, de jogo. Comparemos dois trechos de dois autores entre si sensivelmente diferentes, mas ambos empenhados em contrapor positivamente os Estados Unidos à Europa. O primeiro celebra «a experiência americana», sublinhando «a diferença entre uma nação concebida na liberdade e devota ao princípio de que todos os homens foram criados iguais e as nações do velho continente, que decerto não foram concebidas na liberdade».

E agora vejamos o segundo:
«O que era a democracia americana senão uma democracia assente no
êxodo, em valores afirmativos e não dialécticos, no pluralismo e na liberdade? Estes mesmos valores – juntamente com a ideia da nuova fronteira – não viriam alimentar constantemente o movimento expansivo do seu fundamento democrático, para além das abstracções da nação, da etnia e da religião? […] Quando Hannah Arendt escrevia que a Revolução americana era superior à francesa dado que a Revolução americana se devia entender como uma busca sem fim da liberdade política, enquanto a Revolução francesa tinha sido uma luta limitada em torno da escassez e da desigualdade, exaltava um ideal de liberdade que os europeus haviam perdido mas que fariam ganhar terreno nos Estados Unidos».

Qual dos dois trechos aqui citados é mais apologético? É difícil dizê-lo, embora o segundo pareça mais inspirado e mais lírico: deve-se à pluma de Negri (e de Hardt), enquanto o primeiro é de Leo Strauss, o autor de referência dos neoconservadores americanos!

Fonte: AQUI

sexta-feira, novembro 19, 2010

Estrevista com o uruguaio Eduardo Galeano

O escritor uruguaio se submeteu a perguntas enviadas pelos leitores da BBC:

- Quais são os ingredientes que usa na sua vida para manter o entusiasmo e a felicidade? Deveríamos engarrafá-los e distribuí-los, mas com patente.

EG - Engarrafá-los, eu não posso, porque se evaporam facilmente. O que têm de bom é que retornam sempre, mesmo se às vezes parece que foram embora para sempre. Suponho que por gentileza de Deus ou do Diabo.

- Para quem você escreve? É possível pensar – nas palavras de Umberto
Eco – em um leitor modelo?

EG – Eu escrevo para os amigos que ainda não conheço. Os que eu conheço já estão fartos de me escutar.

- Eu lhe digo que não tenho dinheiro para comprar livros e tampouco onde eu vivo tem livrarias que os vendam. Por isso não sei o que lhe perguntar. Só me ocorre o seguinte: o que você sente de tanto escrever e escrever, quando finalmente o mundo continua mais ou menos igual ou pior?

EG – A verdade é que nem eu mesmo me entendo. Eu escrevo para os que não podem me ler, porque os livros estão tão caros que daqui a pouco serão vendidos em joalherias. Mas isso sim, acredite, as palavras viajam caminhos misteriosos e andam por onde elas querem, sem pedir autorização.

- De que equipe de futebol você é torcedor (No Uruguai e no mundo)?

EG – Eu ainda sou torcedor do Nacional, aqui no Uruguai, o clube dos meus amores desde minha mais tenra infância, mas sobretudo sou torcedor do bom futebol e quando esse milagre acontece, eu o agradeço sem olhar a cor da camiseta. E se o bom futebol provem de um clube pequeno, quase desconhecido, então melhor ainda.

- Alguma vez você disse que cai e levanta várias vezes ao dia. Eu não se como me levantar. Como você faz?

EG - Pode te parecer uma besteira, mas eu te juro o que eu penso: se eu caio, é porque eu estava caminhando. E andar vale a pena, mesmo se a gente cai. Eu sou caminhante, na beira do rio a que chamamos mar, aqui em Montevideu, caminho horas e horas, e as palavras caminham dentro de mim e comigo. Às vezes elas se vão e me custa muito seguir sozinho, sem elas.

- O que é a vida para você, em uma única palavra?

EG – Em quatro palavras, não em uma: uma caixa de surpresas.

- Com o que você sonha? Você tem um sonho reiterado?

EG – Meus sonhos são de uma mediocridade inconfessável. Os que mais se repetem são os mais estúpido, eu perco um avião, discuto com um burocrata, coisas assim. Que feio, não? Eu me consolo recordando aqueles versos de Pedro Salinas que dizem que: “os sonhos são verdadeiros sonhos quando se desensonham e em matéria moral encarnam”.

- Você escreve tomando mate?

EG – Não, eu já não tomo mate. Tive que parar, há anos, como deixei também o cigarro, que tanto me acompanhou durante tanto tempo. Agora eu escrevo com cerveja ou algum outro trago. E enquanto eu escrevo, falo sozinho, em voz alta. Quem me vê de longe pensa que eu sou um bêbado perdido. Perdido eu sou, talvez, não sei; mas bêbado, não. Eu gosto de beber e por isso não me embebedo: o trago exige que não lhe faltem ao respeito.

- Por que as pessoas continuam acreditando em Deus? Você considera que essa crença atrasa o ser humano?

EG – Deus é o nome que nós damos à fé e por isso é múltipla, mesmo se muitos acreditem que a diversidade da fé é uma heresia digna de castigo.

- O que você opina do Prêmio Nobel recebido por Barack Obama? Como se justifica receber esse prêmio?

EG – Me pareceu uma piada de mau gosto. Mas não é nada raro, levando em conta que há um século o Prêmio Nobel da Paz foi concedido a Teddy Roosevelt, um apaixonado da guerra, que até escreveu um livro propondo a guerra como remédio para a covardia e a fraqueza dos machos no mundo.

- O que você acha do nacionalismo e do patriotismo? São bons ou criam mais problemas? São partes inseparáveis da identidade?

EG – Antes de que se inventasse essa palavra horrível, globalização, que designa a ditadura universal do dinheiro, existia outra, linda, generosa, a palavra internacionalismo. Eu continuo preferindo-a. Para mim, continua significando algo assim como que podemos ser compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de justiça e vontade de beleza, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido onde tenham vivido, sem que importem nem um pouquinho as fronteiras do mapa, nem do tempo.

- Nossa América toda, tem possibilidades de se curar?

EG – Claro que sim. Não está tão doente, se a comparamos. Ainda temos, por exemplo, capacidade de loucura, que é o sintoma infalível da boa saúde.

- Eu gostaria de saber como você vê o século XXI. Com pessimismo? Com otimismo?

EG – Eu não acredito nos otimistas full-time. Esses são farsantes ou cegos. Eu sou otimista e também pessimista, conforme a hora e o dia, creio e descreio, celebro e lamento este tempo nosso e este mundo que nos toca viver. Cada tempo tem seu contratempo, é verdade, mas também é verdade que cada cara contem sua contracara. A contradição é o motor da vida: da vida humana e de todas as outras vidas.
Assumir isso me ajuda a não me arrepender das minhas tristezas, das minhas depressões, das minhas músicas ruins: elas são pares inseparáveis de mim. Não tenho mais talento do que aquele que provém da experiência; todo o trabalho que eu tenho todo dia perseguindo as palavras que fogem.

- Como você vê o mundo e o estado da sociedade atual? Você acredita que pode ficar de pé o mundo de cabeça pra baixo? O que você acha que faz falta para que se produza uma mudança transcendental em cada um dos habitantes deste planeta?

EG - Não sei, não creio nas fórmulas mágicas. Eu sei, simplesmente, por experiência, que vale a pena que a gente se una para lutar juntos pelas coisas em que vale a pena acreditar. Sós, sozinhos, pouco ou nada podemos fazer. Mais do que isso, eu te digo: não devemos desalentar-nos tão facilmente. Se as coisas não saem como a gente gostaria, bom, é preciso aprender a arte da paciência, é preciso aceitar que a realidade muda no ritmo que ela quer e não no que a gente decide que ela deva mudar. “Se a realidade não me obedece, não me merece”, dizem ou pelo menos acreditam alguns intelectuais. Eu não.”

- O que fazer diante do desânimo e da impotência depois de ler seus escritos? Que soluções você propõe diante da dominação e da exploração que sofremos sempre?

EG - Eu não vendo receitas da felicidade e te recomendo que não acredite nos bandidos que a vendem. Eu tampouco creio nos dogmáticos religiosos ou políticos que vendem certezas. Para mim, as únicas certezas dignas de fé são as que tomam café de dúvidas a cada manhã.

- Se você entrasse hoje numa máquina do tempo e ela o levasse cem anos para o futuro, o que acha que encontraria quando saísse dela?

EG - Não tenho a menor idéia, nem quero tê-la. Cada vez quem uma cigana se aproxima de mim e me pega a mão para ler o meu futuro, eu lhe peço que, por favor, não cometa essa crueldade. O melhor que tem o futuro é que tem muito mistério.

- O que é para você a esquerda? Por acaso essa dicotomia de esquerda contra direita não caducou na década de 70? Até quando o mal de muitos será culpa de uns poucos “malvados”? Até quando seguirá vendendo a vitimização como tática para a transformação social?

EG – A culpa é de todos, nos dizem os culpados de que as relações humanas tenham se envenenado e os culpados de que estejamos ficando sem planeta. Tinha razão dona Concepción Arenal, mulher luminosa, que se formou como advogada disfarçada de homem, com duplo corsê e teve a coragem de dizer o que os homens diziam, em meados do século XIX: “Se a culpa é de todos, não é de ninguém. Quem generaliza, absolve.”

- Estou de acordo com todos os males do capitalismo que o distinguido escritor coloca em destaque, mas e os males do socialismo? Qual seria a melhor via para um desenvolvimento mais humano?

EG – O século XX divorciou a justiça da liberdade. A metade do mundo sacrificou a justiça em nome da liberdade e a outra sacrificou a liberdade em nome da justiça. Essa foi a tragédia do século passado. O desfio do século atual consiste, acho eu, em unir a essas duas irmãs siamesas que foram obrigadas a viver separadas. A justiça e a liberdade querem viver bem pegadinhas.

- Como fazer que o mundo entenda a diferença entre a verdadeira esquerda, identificada com o povo, da demagoga, como a burocracia soviética ou a cubana?

EG - Cada um entende à seu modo e maneira, e age do seu modo e maneira. Eu sou muito respeitoso com as idéias e as vidas dos demais.

- Você não acha que as palavras “pobre” e “grátis” criaram uma mentalidade resignada nas pessoas deprimidas dado que, por esperar tudo grátis do “papai governo”, fazem muito pouco ou nada para superar suas condições de vida e preferem continuar vivendo na pobreza?

EG- A caridade pode produzir, as vezes, algo disso. A caridade é vertical, da esmola, semeia costumes ruins, como os folgados. Além disso, é humilhante. Como diz um provérbio africano, a mão que dá está sempre acima da mão que recebe. Mas as relações de solidariedade, que são horizontais, geram respostas completamente diferentes.

- Eu sempre me perguntei como você faz para encontrar combinações tão felizes de palavras, palavras que a gente escutou (e escreveu) centenas de vezes e que quando você as junta parecem um discurso novo.

EG - Muito obrigado pelo elogio. Eu só posso te dizer que nenhuma fada visitou meu berço. Eu não tenho mais talento do que o que provêm da experiência: o muito trabalho de cada dia é gasto perseguindo palavras que fogem.

- Há quase 40 anos de As veias abertas da América Latina, você pensou em escrever uma segunda parte?

EG – Na verdade todos escrevemos um único livro, que vai mudando e vai se multiplicando à medida que a vida vive e o escritor escreve. Para mim, As Veias Abertas foi um porto de partida, não um porto de chegada. Desde aí, eu acho, eu multipliquei minha visão do mundo.

Tradução: Emir Sader

Extraído DAQUI

segunda-feira, novembro 15, 2010

O Pianista, salvo pela música

Há obras de arte que nos emudecem e certamente o filme O Pianista de Roman Polanski se inscreve nessa categoria. É uma obra sensacional. A reprodução do retrato histórico é único. As cenas em sua maioria sem um tema sonoro, deixa-nos com os personagens, prolongando a nossa experiência com o sofrimento de cada um deles. O terrorismo nazista na Polônia teve uma das suas piores páginas. durante a Segunda Grande Guerra. O país foi um dos primeiros a serem invadidos. O filme de Polanski descreve de modo genial esses eventos. Uma das cenas mais poeticamente trágicas do filme é aquela em que mostra a personagem principal, o pianista Szpilman, fugindo dos soldados nazistas e se alojando num sótão abandonado. Após ter pulado o muro e atravessado para o lado destruído da cidade (imagem ao lado), constituindo num cartão poético sem igual: o homem sujo, doente, esfomeado, claudicante, pequeno, frágil, insignificante, no meio da cidade destruída. À sua frente apenas as ruínas de pedra. O personagem leva a lata com pepinos em conserva, mas não possui meio para abri-la. Em dado momento, ao tentar abrir a lata, encontra-se com um oficial alemão. O alemão com sua pose superior. Bem escovado. Roupa impecável. Com a "superioridade" de um ariano hitlerista. O comandante observa o pianista e lhe pergunta sobre o que estava a fazer ali. Perguntou ainda sobre quem era o pianista e o que ele fazia. Szpilman perplexo, responde que era judeu e pianista. A cena deixa transparecer que o pianista antevia a sua sorte. No entanto, o oficial alemão chamou Szpilman e pediu para que ele tocasse algo num piano contíguo. O pianista senta-se e começa a tocar A Balada No. 1 de Chopin, música eivada por uma beleza triste e arrebatável. Aquilo atingiu o alemão. Desarmou-o completamente. De repente, estavam dois indivíduos, a representação de dois mundos, a superioridade e o derrotado, o farrapo humano vulnerável e o seu tirano, mas que sabia produzir uma música que descongelava o coração e fazia brotar gestos quentes do mais sublime altruísmo. Pelos gestos da face do oficial, percebe-se que a música o aturde. Szpilman é salvo pela arte, salvo pela música. A beleza freiou os instintos animalescos. Produziu a capacidade de enternecimento.

Abaixo a cena em que o pianista Szpilman toca A Balada No. 1 de Chopin:



quarta-feira, novembro 10, 2010

Serra do Adeus ou Réquiem para Zé Bolinha

A eleição de Dilma Rousseff, mesmo tendo fortalecido o projeto da esquerda brasileira, não foi suficiente para prostrar o PSDB definitivamente e tampouco foi ampla a ponto de fazer recuar as forças conservadoras da sociedade. Serra, no entanto, está acabado.

Com o resultado das eleições presidenciais, José Serra está morto politicamente e já pode repousar ao lado de Fernando Henrique Cardoso no jazigo político do PSDB. Assim como FHC, o ex-governador de São Paulo passa a ser uma figura irrelevante no front da política nacional. A eleição de Dilma Rousseff, mesmo tendo fortalecido o projeto da esquerda brasileira, não foi suficiente para prostrar o PSDB definitivamente e tampouco foi ampla a ponto de fazer recuar as forças conservadoras da sociedade. Serra, no entanto, está acabado.

A constatação pode ser dura e difícil para aqueles que admiram o tucano (não são poucos, a julgar pelos 43,6 milhões de votos recebidos) e para a mídia conservadora que tenta dar ares de vitória a uma derrota histórica. Mas, a verdade das urnas é clara e cristalina. Como escreveu o sempre espirituoso Flávio Aguiar em artigo publicado aqui na Carta Maior, a morte política de Serra é um fato inequívoco e teve direito até mesmo à extrema-unção consagrada pelo Papa Bento XVI em pessoa.

Não se trata mera e simplesmente de uma derrota eleitoral. Ao repetir diversas vezes nos últimos anos - e todos os dias durante a campanha - que se preparou a vida inteira para ser presidente, Serra revelou um sonho, mas também uma obsessão tão forte a ponto de alguns críticos terem inventado para ele o apelido de “presidente nato”. Após abandonar a militância na AP nos anos 60, Serra deixou de ser de esquerda, apesar das teses em contrário. Sua conversão definitiva aos encantos do capital (financeiro, não o livro de Marx) aconteceu em sua passagem pelos Estados Unidos. Quando retornou ao Brasil, já estava pronto para ser um expoente da elite política neoliberal que comandou o país no período pós-ditadura.

Em sua moderna e definitiva encarnação, Serra não precisou pedir, como fez FHC, que esquecessem o que escreveu. Ao contrário, na falta de coisa melhor, registrou um livro como programa de governo. Mas, nestas eleições o tucano associou-se às forças mais tenebrosas da direita de tal forma que transformou sua figura política em uma face disforme.

A campanha difamatória contra Dilma, feita à sombra das catedrais católicas e templos evangélicos, já revelava um Serra disposto a tudo para “cumprir seu destino” e chegar à Presidência. A sórdida e orquestrada repercussão midiática dada à discussão sobre o aborto, no entanto, jogou o Brasil à beira de uma cisão religiosa que nunca antes na história desse país havia acontecido. Para quem se diz “defensor das liberdades democráticas” foi uma irresponsabilidade chocante, mas útil para revelar aos eleitores que o candidato do agronegócio destruidor da Amazônia, o candidato da grande mídia monopolizadora, o candidato dos privatistas entreguistas da riqueza nacional era também o candidato da TFP e de outros segmentos fundamentalistas de nossa sociedade.

No discurso proferido logo após a confirmação da vitória de Dilma, Serra recorreu a bravatas consideradas ingênuas até mesmo na UNE, da qual foi presidente, e alertou aos “que nos imaginam derrotados” que estava “apenas começando uma luta de verdade”. Disse que “o momento não era de adeus”, e sim um “até logo”, mas a verdade é que a luta dos tucanos vai continuar sem ele. Aos 68 anos, a saída mais honrosa para Serra seria assumir a presidência do PSDB nas eleições internas programadas para o ano que vem e se candidatar ao Senado em 2014, quando terá 72 anos. Seu discurso após a derrota, entretanto, revela que a obsessiva procura pela Presidência da República permanece em seus planos. Mas, não será fácil encontrar espaço.

Tucanos divididos

No PSDB, as coisas caminham para a divisão em dois grandes blocos, aglutinados em torno do governador eleito de São Paulo, Geraldo Alckmin, e do senador eleito Aécio Neves (MG). Ambos almejam disputar a Presidência em 2014, e os efeitos dessa divisão já começam a se fazer sentir na troca de críticas pela imprensa feita entre tucanos mineiros e paulistas. Nessa briga, o fiel da balança pode ser a posição de outras lideranças do PSDB, representadas pelos oito governadores eleitos pelo partido. Se Aécio vencer a queda-de-braço interna e permanecer no PSDB, é o candidato natural do partido. Se não tiver espaço, vai sair, mas, nesse caso, parece impossível imaginar que Alckmin, o “querido amigo”, abrirá mão da disputa em favor de Serra.

Restaria ao “presidente nato” a opção de perseguir seu sonho de poder em outra legenda. Isso, entretanto, só é imaginável se Serra abraçar de vez o perfil mais sombrio que demonstrou durante a última campanha e tentar aglutinar fundamentalistas religiosos, ex-torturadores e barões decadentes da mídia numa espécie de “Tea Party” brasileiro.

Convenhamos que seria um fim de carreira política para lá de melancólico até mesmo para quem é capaz de se submeter a uma tomografia após ter sido atingido por uma bolinha de papel. Isso sem falar nas parcas possibilidades eleitorais que Serra teria em um quadro com candidatáveis do porte de Marina Silva e Eduardo Campos, além dos próprios Aécio e Alckmin e da presidente Dilma, entre outros.

Em conversa com o ex-marido, relatada pelo jornal O Globo, Dilma afirmou: “Eu nunca quis, nunca pensei em ser presidente do Brasil. Nunca tive de fazer arranjos constrangedores para chegar onde cheguei. E o Serra só fez isso (almejar a Presidência) a vida inteira: foi o primeiro aluno da classe, liderou o grêmio estudantil, foi parlamentar e governou sempre de olho na Presidência. Como é surpreendente o processo político brasileiro! Ao contrário do Serra, para mim ser presidente não era uma coisa de vida ou morte. Aconteceu naturalmente”. Como se vê pelas palavras da presidente eleita, não basta ter se preparado a vida inteira. Como diziam os velhos políticos, “Presidência é destino”. Ou, felizmente para o Brasil, Presidência é vontade popular.

Por Maurício Thuswohl - jornalista.

EXTRAÍDO DAQUI

domingo, outubro 31, 2010

O Fundamentalista Bento XVI perdeu a noção de vez


DIRIGE UM ESTADO TEOCRÁTICO E QUER FALAR EM DEMOCRACIA NO BRASIL!

Antonio Carlos Mazzeo*

"Faces sob o sol, os olhos na cruz

Os heróis do bem prosseguem na brisa da manhã.

Vão levar ao Reino dos Minaretes a paz na ponta dos arietes

a conversão para os infiéis..."

(Agnus Sei ) Aldir Blanc

Não é que o cardeal Joseph Alois Ratzinger por alcunha, Papa Bento XVI, resolveu intrometer-se nas eleições brasileiras? Ingenuidade de quem pensa que sua intervenção claramente a favor do candidato reacionário-conservador - apoiado pelos setores mais retrógrados e obscurantistas da igreja católica e ainda pela ordem crípto-fascista Opus-Dei e pela TFP - , tenha sido pautada pelas "formulações intelectuais" digamos, modestas, do bispo de Guarulhos, Luis Gonzaga Bergonzini.

Não é novidade a intromissão da igreja católica na vida política dos países onde possui influência. Vem de uma tradição milenar sua associação com o poder e, muitas vezes, não somente como associados participaram diretamente dos destinos políticos de centenas de nações, o que explica as inúmeras guerras e conflitos religiosos desde o período medieval até nossos dias. Dos mortos e torturados cruelmente pela Santa Inquisição, passando por milhares de camponeses, pequeno-burgueses (huguenotes) assassinados durante os conflitos entre católicos e protestantes, até os apoios às ditaduras burguesas e bonapartistas, como as de Mussolini, Franco, Hitler, Salazar, Vargas, Perón, a ditadura militar-bonapartista brasileira e tantas outras!

Em rápidas pinceladas, a história recente da igreja católica. Iniciamos pelo cardeal Eugenio Pacelli, conhecido como il tedesco (o alemão), mais tarde Papa Pio XII. Ninguém nos altos postos do Vaticano era mais germanófilo. É sabido que Pacelli/ Pio XII apoiou, direta ou indiretamente, todos as ditaduras fascistas européias, começando pela de Mussolini, quando abençoou suas tropas que partiam para invadir a Etiópia, antiga Abissínia. Pacelli/Pio XII, quando Núncio Apostólico em Berlin, circulava livremente pela chancelaria e em muito auxiliou a conciliação entre os nazi e as facções burguesas alemãs. Também é conhecido o silêncio conivente de Pacelli/Pio XII em relação ao assassinato de milhões de judeus, ciganos, comunistas e homossexuais nos campos de extermínios nazistas. Pacelli ficou do lado dos monarquistas na Guerra Civil espanhola, não somente pelo anticomunismo visceral da igreja católica, mas pela íntima relação (quase promíscua) do vaticano com a monarquia espanhola, tanto que ao ser nomeado Papa, já ao final da Guerra Civil Espanhola, Pacelli/Pio XII saúda o fim do conflito, com a vitória dos monarquistas, Com imenso gozo, em discurso radiofônico proferido em 18 de abril de 1939. Uma tradicional relação que ainda continua. Lembremos que, entre 2001 e 2007, 731 pretensas "vítimas" dos republicanos espanhóis durante a Guerra Civil, foram beatificadas pelos papados de João Paulo II e de Bento XVI, em que pesem os protestos dos parentes das milhares de vítimas do outro lado, dos republicanos, e do clero basco que teve muitos de seus sacerdotes fuzilados pelos franquistas. Na ocasião da beatificação das 498 pretensas "vítimas" dos republicanos, Bento XVI destacou " a importância do martírio como testemunho de fé numa sociedade secularizada." (Los Angeles Times de 28/10/2007, Vatican Beatifies 498 Spanish Martyrs)

Sem esquecermos de João Paulo II, o militante anticomunista, que imiscuiu-se fundamente na vida da Polônia, apoiando o sindicalista católico-conservador (e quando no poder, acusado e condenado por corrupção) Lech Walessa, não como cidadão polonês, mas como "cidadão do céu" (como diria São Pedro, Bíblia Sagrada,Filipenses, III-20), como Papa e líder religioso. O cardeal Woitila/João Paulo II não limitou-se a combater o marxismo na Europa. Também aumentou a ofensiva contra o clero progressista na América Latina , tendo como fiel escudeiro e mentor intelectual, o cardeal Ratzinger/Bento XVI, na época, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, leia-se Tribunal da Santa Inquisição/ Santo Ofício, o mesmo que torturou e executou barbaramente (seja na fogueira, em azeite fervente ou esquartejando vivos) milhares de "infiéis". Ratzinger/Bento XVI, quando dirigia o Tribunal da Santa Inquisição/Santo Ofício/Congregação para Defesa da Fé, censurou diversas obras ligadas à Teologia da Libertação, como as do teólogo espanhol Jon Sobrino e a do então frade Leonardo Boff, condenando-o ao "silêncio obsequioso", termo clerical para designar mordaça à subjetividade social e política.

O cardeal Ratzinger/ Bento XVI, tem uma longa ficha de serviços ao obscurantismo. Para além de sua controversa participação na Juventude Hitlerista (da Baviera), que de um modo ou de outro era uma forma de cooptação forçada de jovens para o nacional-socialismo, e de ter participado do exército alemão durante a II Guerra Mundial, algo nada estranho em se tratando de um país em guerra, Ratzinger destaca-se de fato como sacerdote, ideólogo e teólogo conservador, reacionário e obscurantista. Chegando ao papado, aproximou-se da vertente mais atrasada do clero europeu, trazendo de volta o conhecido para as hostes do Vaticano o fundamentalista católico francês, cardeal Lefebvre, removendo a censura de excomunhão latae sententiae a quatro bispos ordenados pelo fundamentalista françês, em total desacordo com o Concílio Vaticano II. Dentre os bispos lefebvriano, está o sacerdote inglês que vive na Argentina, Richard Williamson que nega o Holocausto. Ratzinger/Bento XVI prosseguiu a política de Woitila/João Paulo II no desmantelamento dos núcleos progressistas e de esquerda da igreja católica na América Latina e em todo o mundo e para tal nomeou vários cardeais conservadores, inclusive no Brasil.

A pergunta que fazemos é como uma pessoa com uma história inequivocamente ligada ao núcleo mais reacionário e autocrático da igreja católica, que perseguiu e censurou sacerdotes e leigos em sua instituição religiosa, se arvora em discutir condutas democráticas nas eleições brasileiras? Além da cara de pau do cardeal Ratzinger/Papa Bento XVI, quero ressaltar que o Brasil é um país laico, onde vige institucionalmente a separação entre religião e Estado. Mais grave ainda, é que esse senhor é chefe de um Estado e, pelas leis internacionais, não deve interferir em assuntos de outros Estados. Imaginem a tempestade e o alvoroço que seria em nossa imprensa golpista se um dirigente estrangeiro, como Chaves, por exemplo, fizesse declarações sobre nosso processo eleitoral? E mais, Ratzinger/Bento XVI dirige um Estado teocrático-autocrático, uma plutocracia dirigida por cardeais, onde o voto não é democrático porque restrito à oligarquia cardinalícia. Com que autoridade democrática esse senhor pretende imiscuir-se na vida política nacional?

Que o cardeal Ratzinger/Bento XVI governe sua teocracia corrupta e interfira em seus problemas político-religiosos é aceitável. Mais do que isso, convenhamos, é cinismo cara de pau inconcebível.

Extraído DAQUI

sábado, outubro 30, 2010

Dona Margarida vota Dilma 13!

Dona Margarida, septuagenária, nem precisa comparecer à seção eleitoral, mas votou no 1º turno e está decidida a repetir o gesto neste final de semana. Ela acompanha a campanha eleitoral, assiste aos programas, debates e procura se manter bem-informada.

Fui visitá-la e, claro, ela logo puxou o assunto da eleição. Se depender dela, o Serra não se elege. Ela considera-o mentiroso e cínico. Minha mãe não se referia à escola filosófica de Diógenes Sínope (413-323 a. C.). Para esticar a conversa, brinquei: “A senhora quer dizer que ele tem mil caras?!” Ela reafirmou que o demo-tucano mente, se faz por bonzinho e é um sem-vergonha, além de arrogante. Já a Dilma… Bem, ela se desmanchou em elogios.

A opinião da minha mãe espelha bem o que os eleitores convictos da Dilma Rousseff pensam. Não há marqueteiro que consiga demovê-los da decisão de votar nela. Quanto mais a atacam, mas lhes parecem que são mentiras. E não adianta o Serra fazer cara de bom moço e de “presidente do bem”. A pecha de cinismo o acompanha!

Minha mãe não navega na internet. Imagino o quanto ela ficaria aborrecida com a boataria contra a Dilma! A rede reproduz e potencializa as fofocas da vida real. A Dona Margarida comentou que no grupo da terceira idade alguém disse que a Dilma era “sapatão”. Ela ficou irritadíssima com a boataria. E resumiu tudo na frase: “É preconceito!” Tive orgulho dela.

Não tentei demovê-la da decisão de votar na Dilma. Até porque também voto contra o Serra. Poderia, porém, argumentar que há a alternativa de votar nulo ou em branco; poderia listar uma série de razões políticas e ideológicas. Bem, estávamos apenas conversando e respeito as opiniões dela. De qualquer forma, ela me fez pensar.

Ao contrário da Dona Margarida, o meu amigo Walterego diz que vai anular o voto. Ele não milita no PSTU nem nos grupos de esquerda, organizados ou não em partidos, que defendem o voto nulo. Ele não faz campanha pelo voto nulo! Walterego também é esclarecido e tem título de doutor. Já a Dona Margarida não teve oportunidades de estudo e aprendeu a ler e fazer contas por esforço próprio, na escola da vida. Isto não desqualifica suas opiniões. Na verdade, ambos têm argumentos fortes para defender as posições políticas que consideram melhores.

O que os exemplos de Dona Margarida e Walterego mostram é que posição política nada tem a ver com educação formal e titulação acadêmica. O título universitário não indica, necessariamente, inteligência e capacidade política. Não obstante, há muito preconceito contra os pobres e pessoas humildes no que diz respeito à opção política. O preconceito é social e regional (contra os nordestinos). Ora, a atitude política não é determinada por um canudo universitário e o fato de tê-lo não torna ninguém politicamente melhor nem pior. Não é critério de avaliação política. Há muitos analfabetos políticos titulados por aí!

O meu amigo Walterego pode até votar nulo, mas duvido que ele se considere superior à Dona Margarida, aos pobres e nordestinos. Não é porque ele é doutor que sua posição política é qualitativamente melhor. Afinal, há muitos pobres e nordestinos que também votam no Serra. Os preconceituosos esquecem que ninguém se elege apenas com o voto da classe média e dos ricos. O governo Lula, aliás, foi um dos melhores para os ricos. Não estranho que muitos figurões o apóiem.

Por outro lado, boa parte da classe média divide-se entre a postura de tutela dos pobres e o preconceito social, racial e regional. A tutela também é uma forma invertida de preconceito, pois indica a desconfiança na capacidade política dos pobres. Dona Margarida, que vota em Dilma, diria: “É preconceito!” Decididamente, ela não é analfabeta política!

Extraído DAQUI