domingo, julho 29, 2018

O ser humano e a crença no sobrenatural (uma pequena reflexão)

"Ora, a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que não se veem" - Hb 11.1

O que leva as pessoas a crerem? Esta pergunta é fundamental. Muitos psicólogos, filósofos e outros estudiosos do comportamento humano também a fazem. Como explicar a crença? Como explicar a convicção em algo que é intangível? Talvez, a resposta esteja no fato de a coisa mesma ser intangível. Quem sabe seja mais fácil crer naquilo que não se ver. É possível afirmar que algo existe (mesmo não se vendo), construir certezas psicológicas sobre isso e estruturar a existência a partir dessa crença. 

Fiquei pensando sobre esse fato após assistir ao documentário "O cérebro e a crença". O documentário mostra um grupo de fiéis em torno do líder Harold Camping, que após estudar a Bíblia, chegou a uma conclusão: o juízo final aconteceria no dia 21 de maio de 2011. O que acontece após essa determinação é curioso. Pessoas dos mais diversos nichos sociais e econômicos passaram a acreditar naquela afirmação: profissionais liberais, economistas, estudantes, etc. Muitos passaram a levar a mensagem do fim do mundo para outras pessoas. Procuraram advertir, conscientizar as pessoas para a data fatídica que se aproximava. Cruzaram o país. Fizeram caravanas. Alguns abandonaram suas profissões. 

Nas entrevistas concedidas pelo líder do grupo, as certezas eram pregadas com o máximo de firmeza. Quando perguntado pelos jornalistas se havia alguma possibilidade de o evento não acontecer, ele respondeu: "Esse é um fato que não se pode cogitar". Ou seja, não havia chances de não acontecer. A determinação de uma data para o fim do mundo já aconteceu em outros momentos da história. Por exemplo, Hilário, bispo de Poitiers, também profetizou o fim do mundo para o ano de 365. d.C. Como não aconteceu, ele adiou para o ano de 400 d.C. Outras profecias se deram no ano 1000 d.C. Ou em 1253, com o papa Inocêncio III. Próximo ao nosso tempo, temos as profecias de William Miller (que previu o fim do mundo para o ano de 1844). Mais tarde, Ellen G. White, uma das profetizas da Igreja Adventista, também vaticinou o fim do mundo para os anos de 1850 e 1856. 

Com relação a "Family Radio", o grupo que se reunia em torno de Harold Camping, quando o dia 21 de maio chegou, houve uma confusão. Muitos não entendiam o que estava acontecendo. Afinal, por que o mundo não havia entrado em colapso? Não havia terremotos. Cataclismos variados. O céu não escureceu. Os anjos não apareceram. As pessoas levavam as suas vidas tranquilamente, indiferentes às visões do grupo. Veio a manhã do dia 21, a tarde, a noite.

A partir daí instala-se a síndrome de dissonância, que é um estado de ansiedade profunda diante daquilo que não se realiza. Ela gera um estranhamento, um sentimento de inadequação, de confusão. Explicações? Harold Camping não as possuía. Dois dias após, ele concedeu uma entrevista e disse que a presença de Deus acontecera apenas espiritualmente. O fim efetivo do mundo aconteceria dia 21 de outubro. Àquela altura, muitos desistiram de crer.

O que impressiona diante de tudo isso é o fato de pessoas inteligentes, de um dos países que apresentam algumas demandas sociais básicas atendidas, embarcarem em algo repleto de incertezas. Em pleno século XXI, aquele lado indefinido da existência humana, agarrou-se com a expectativa da verdade, da crença. A fé modifica o modo como encaramos a vida. Ela modifica as atividades cerebrais. A crença cria certezas; e as certezas organizam a vida, construindo harmonias e dando a tranquilidade devida àquele que a experimenta. Quando cremos, tiramos dos nossos ombros as responsabilidades que temos que tomar na história. Delegamos a outro (o ente supremo de nossa crença) a capacidade de decidir por nós. Ou, simplesmente, entendemos que o fato de acreditarmos em algo, esse algo modifica a história ou a determina a nosso favor.

Essas questões acontecem pelo fato do ser humano precisar de uma organização interna que torna a vida mais tranquila. Se muitos sujeitos descobrissem que estão sozinhos, que a vida se limita àquilo que temos neste cosmos dado às leis de causa e efeito e, que as decisões que tomam, são o motor que determina a própria existência, certamente enlouqueceriam. É, por isso, que, enquanto o gênero humano estiver neste planeta, a crença o acompanhará. Elas organizam o caos. Constroem certezas. Estabilizam desencontros. É preciso criar signos para decodificar o mundo. E a crença é o símbolo máximo capaz de fazer as certezas respirarem.

quinta-feira, julho 26, 2018

Algumas apalavras sobre "A elite do atraso - da escravidão à Lava Jato" - Jessé Souza

"O imbecil perfeito é criado quando ele, o cidadão espoliado, passa a apoiar a venda subfaturada desses recursos a agentes privados imaginando que assim evita a corrupção estatal". pp. 12 e 13

Jessé Souza é um intelectual provocador. Suas ideias fluem com bastante clareza, firmeza. O que o diferencia de outros intelectuais que se preocupam em interpretar ou entender o Brasil é a sua forma singular de perceber os movimentos da história. É possível perceber Max Weber, Norbert Elias, Karl Marx na estrutura do seu pensamento. Sociólogo de formação, Jessé é professor universitário e esteve à frente do IPEA durante o governo Dilma. Atualmente, tem produzido uma série de livros com forte teor crítico, buscando entender os principais atores que fazem a vida política e social brasileira. 

Nos últimos três anos, Jessé deve ter lançado uns quatro livros - A tolice da inteligência brasileira, A radiografia do golpe, A elite do atraso e A subcidadania brasileira. É sobre A elite do atraso que pretendo fazer algumas considerações limitadas pelo meu olhar.

É importante ressaltar que muitas das ideias pensadas por Jessé se encontram nos quatro livros. Fica impressão de que eles foram escritos com certa velocidade. Determinadas abordagens se replicam. No caso de A elite do atraso, o subtítulo é bastante pretensioso - da escravidão a Lava Jato. Quem estiver à procura de informações históricas, remontando um quadro de evolução dos acontecimentos históricos, não encontrará esse tipo de abordagem. Ora, então, qual é a bordagem de Jessé?

O autor procura analisar as ideias dos intelectuais fundadores ou dos chamados intérpretes do "jeitinho brasileiro" - Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e, em outros momentos, Darcy Ribeiro. Para Jessé, esses intelectuais foram responsáveis por criar uma interpretação mistificadora do Brasil. Esse olhar chega/chegou a um nível de sofisticação tão demasiado, que fez/faz com que esquerda e direita defendam esses pressupostos. A interpretação sugerida por esses intelectuais do mundo tropical é limitada por não levar em conta eventos que são próprios da história do Brasil.

A crítica mais contundente nesse sentido é dirigida a Raymundo Faoro, um intelectual e erudito, que com sua habilidade, cria uma tese completamente equivocada e, mesmo assim, tem o respeito de muitos sofisticados estudiosos. Faoro cunhou o termo patrimonialismo para tentar explicar a corrupção da sociedade brasileira. Segundo essa tese, mais tarde robustecida pela ideia do "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda, a corrupção brasileira é resultado da herança portuguesa. Faoro realiza um movimento histórico que o leva até a Idade Média para tentar mostrar que os vícios que existem na sociedade brasileira vêm de longe; remontam a confusão entre aquilo que era do rei e aquilo que pertencia ao Estado. 

O que é interessante nesse sentido, segundo Jessé Souza, é que essa tese passa a ser um curinga utilizado no Brasil para demonizar a coisa pública. O brasileiro médio, principalmente, originário da classe média, possui um ódio, uma ojeriza profunda a tudo que diz respeito ao público. Isso não nasceu de forma gratuita, sem conexões com essa interpretação. Há um convencimento coletivo invisível tentando mostrar que tudo que se refere ao Estado não vale a pena. Esse olhar enviesado, inamistoso para com a coisa pública, deriva dessas teses controversas sobre o público. 

Segundo um viés já apresentado por Marx, as ideias da classe dominante são ideias que comandam o mundo. Ou seja, a elite do dinheiro é minoritária. Ele possui dinheiro, mas não possui o quantitativo suficiente para conquistar a sociedade. O que esse setor privilegiado da sociedade faz? Trabalha as ideias, mobilizando interesses e criando consensos. Melhor do que dominar alguém pela força, é dominar pelas ideias. Dominar pelas ideias significa que o dominado fará tudo o que o outro quer e ainda terá uma sensação virtual de que está livre. É aí que entra o sujeito imbecilizado de classe média. 

Para Jessé, a classe média tem uma importância fundamental para que os consensos da sociedade sejam formados. Ela lida com dois supostos necessários: (1) a superioridade moral; (2) e o capital cultural. A superioridade moral dá a noção de que ela não é rica, mas é honesta. De que ela é pura. De que tudo que ela possui é resultado de seus esforços. De que o governo é ladrão e, ela, pura, acanalhada. De que somente ela trabalha para sustentar o país. De que os pobres são violentos por natureza. Já o conceito de capital cultural, pois, é desse conceito, que torna possível à classe média, o continuísmo dos "seus méritos". Mérito (daí vem a ideia de meritocracia) é uma palavra cara à classe média. Para ela, tudo que ela consegue o faz por que lutou, esforçou-se, empreendeu. Sem conseguir perceber que na hora da largada, ela já possuía determinados privilégios que os indivíduos das classes inferiores não possuíam. 

A invibilização dessas questões torna o debate público uma verdadeira quimera. O verdadeiro motor da corrupção não é o patrimonialismo. O patrimonialismo é uma consequência. Segundo Jessé, há o esquecimento de dois fatores fundamentais para entendermos o Brasil: (1) a escravidão; e (2) o mercado e suas hostes de rapina, capazes de saquear "oficialmente" as riquezas produzidas pela sociedade. As deformações existentes na sociedade não são resultado de uma suposta herança portuguesa; essa herança vinda de Portugal não é o motor principal. Essa noção culturalista da herança portuguesa esconde os três séculos em que seres humanos foram tratados como bichos, como objetos, criando uma estrutura psicológica no país. A noção de cidadania é deformada em decorrência desse violência herdada historicamente. Logo em seguida, é importante dizer que nunca se expõe a corrupção praticada pelos agentes do mercado, como se a corrupção fosse um atributo subjetivo do setor público; como se ela estivesse reservado aos agentes políticos na sua relação com o Estado. A verdadeira corrupção é praticada pelo mercado que consegue "parasitar" por meio dos juros da dívida e dos juros praticados no Brasil uma das maiores fraudes orçamentárias do mundo, que é a disputa do fundo público para o bolso de alguns privilegiados do setor financeiro. 

As pessoas condenam os espantalhos que são erguidos por determinados intelectuais - a corrupção; condenar determinados atores - principalmente os políticos de esquerda. E, assim, não percebem que são feitas de imbecis, pois estão olhando para os agentes errados. 

Na parte final do livro, Jessé faz uma rápida abordagem sobre a mídia (principalmente a Rede Globo) e a sua associação com a operação Lava Jato. Para Jessé, a Rede Globo possui uma das organizações midiáticas responsáveis por impedir os avanços democráticos do país. A Globo é um agente político bastante poderoso. Ela possui um poder incomensurável, que é a intangibilidade da imagem. Desde a sua fundação, esteve associada com o poder. Foi uma da porta-vozes dos governos militares e até os nossos dias continua a encenar um "teatrinho" patético para sociedade. Ou seja, de que possui um comprometimento imparcial com a produção de um jornalismo profissional, quando, no fundo, suas intenções são pró-mercado e anti-trabalhador. A função da Globo é "distorcer sistematicamente a realidade brasileira". 

A Lava Jato é uma das operações que foram mais bem urdidas que, põe no centro do debate, a questão da corrupção. É importante salientar que é graças a isso, que passou a haver um casamento entre a Globo e a Lava Jato. A Lava Jato criou no imaginário do brasileiro médio a noção de que ela tem um alvo: o corrupto, seja ele de que natureza ou origem for. Ela atacou o consórcio do Estado corrupto com determinadas empresas do setor privado. Entra também a noção de que o público deve ser privatizado - o caso da Petrobrás - pois nós não temos vocação para termos empresas assim. 

Todavia, a Lava Jato tornou-se um importante mecanismo político para atacar principalmente os movimentos populares, corroborando com a tese do surgimento do populismo, outra importante palavra trabalhada no livro. Chama-se de populismo todo movimento que busque representar a soberania popular, como se as classes populares não tivessem discernimento e fossem facilmente enredadas por líderes oportunistas. Populismo é um conceito que busca desprestigiar os movimentos populares; trabalhar a noção de que as massas são facilmente enganadas, o que é um verdadeiro logro. As elites são isentas de manipulação? Elas não enganam ou desviam a atenção do povo? Sim. Fazem isso o tempo todo.

O livro de Jessé é um importante elemento para se entender a conjuntura política do Brasil e conectá-la com a história. Jessé mostra-se com a percepção afiada. Estabelece um debate importante. Faz-nos pensar sobre os lances estratégicos da chamada elite do atraso, que vive às expensas do povo. Fiquei com uma impressão de que o livro foi escrito de maneira rápida. Senti a falta de relação entre o poder das elites e a sua relação com a Lava Jato, como é prometido no título do livro - ou, talvez, eu não tenha percebido por conta de minhas limitações.

Excelente leitura! Vamos à Subcidadania brasileira

terça-feira, julho 17, 2018

A crise na Venezuela

Vídeo bastante honesto sobre a crise na Venezuela. Carece de outras mediações, já que algumas informações foram suprimidas. Mas consegue colocar algumas informações relevantes para se começar a entender a crise econômica, política e social. Há muitos cientistas políticos, especialistas do senso comum, formados pela mídia conservadora nas redes sociais. Esta matização acaba por "colocar óculos", induzir a interpretação. Não há uma preocupação investigativa, uma  curiosidade teórica, o que já permitiria uma formulação de ideias sensatas e menos impregnadas de preconceito. 

quarta-feira, julho 11, 2018

A noite de 10/07/2018 e a apresentação da OSTNCS

Ontem, felizmente, fui ao Cine Brasília assistir à apresentação da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Cláudio Santoro (OSTNCS). É fato de grande e relevante acontecimento existir uma orquestra de boa qualidade, mantida com o dinheiro público - mesmo com as dificuldades que são típicas, com os desafios que são diários para aqueles que fazem a orquestra. A arte no Brasil é um elemento sempre secundário. Há uma imensa falta de interesse e preocupação por parte das autoridades. Todavia, na contramão disso tudo, ainda há bons espetáculos sendo patrocinados pelo poder público.

A existência de uma sinfônica é motivo de privilégio para a cidade de Brasília. O público tímido sempre comparece. Alguns acostumados; outros, chegam desconfiados. O público que escuta a chamada música clássica é bastante pequeno no Brasil - ainda. Há determinadas mistificações que acabam afastando as pessoas comuns desse tipo de música. Primeiro é preciso entender que música é música. O nome "clássico" não deve ser um fato impeditivo. Só é possível se abrir à "música clássica", ouvindo e ouvindo cada vez mais. Tudo o que é novo acaba por provocar um estranhamento, mas é preciso insistir. 

O Cine Brasília raramente fica cheio. Ontem havia um número maior de convidados. Uma explicação talvez seja a presença do regente espanhol José Luis Castillo, um sujeito de mãos ágeis e com um senso de domínio da orquestra que impressionou. Outro fato para a presença do público, quiçá, tenha sido o nome dos compositores - Moncayo, Manuel de Falla e Jean Sibelius. Falarei um pouco sobre cada um deles, bem como se deu a execução de suas respectivas obras.

A obra de abertura foi o dançante o Huapango, de Pablo Moncayo, compositor mexicano, um dos mestres do nacionalismo do seu país, ao lado de Silvestre Revueltas e Carlos Chávez. O Huapango é uma obra mágica. Possui uma fragrância mexicana típica. Os temperos da terra, os ventos mornos e as cores do céu estão derramadas e impregnadas no ritmo enérgico e nas melodias agradáveis. A obra foi escrita em 1941. O huapango é um gênero musical mexicano. No caso em questão, Moncayo foi influenciado pelo huapango do estado de Veracruz. Existem outros com certas características.

A segunda obra foi o Sombrero de tres picos, do espanhol Manuel de Falla, outro importante compositor nacionalista. A obra foi baseado no livro homônimo de Pedro Antonio de Alárcon. Vale mencionar que foram apresentadas apenas as suítes do balé. A obra de Manuel de Falla possui uma beleza temperada com a essência do azeite espanhol, das touradas e do vento mediterrâneo. A obra do espanhol foi escrita em 1919.

A terceira obra da noite foi a Sinfonia número 3, do compositor finlandês Jean Sibelius. Trata-se de um dos trabalhos sinfônicos do finlandês de que mais gosto. Sibelius escreveu ao todo sete sinfonias e uma quantidade considerável de poemas sinfônicos. O finlandês não possui uma obra grandiosa. Dizem até que ele queimou inúmeras partituras. Sua prometida Sinfonia no. 8 foi  uma promessa que nunca se cumpriu. É possível que ele tenha realizado um esboço da obra, mas acabou por liquidá-la. O certo é que a Sinfonia No. 3 é um trabalho bastante característico do compositor. É comum perceber como seus trabalhos possuem certos atributos que o aproximam de Carl Nielsen, outro compositor nórdico. O tema do movimento inicial acaba se encontrando no último movimento. No caso da Sinfonia no. 3, há apenas três movimentos. O primeiro e o último movimentos possuem pontos em comum. O segundo movimento é uma incógnita, um campo vasto com presságios cinzentos. Esse movimento é contrastado pelo primeiro e pelo último movimento, que são mais luminosos. 

Devo assentir que a noite foi de grandes emoções. Havia uma atmosfera belíssima de compositores que buscavam trabalhar temas nacionais. Sibelius foi aquele que mais distou desse aspecto. Todavia, vale mencionar que a obra de Sibelius é um hino de reverência à sua bela Finlândia. Quem quiser perceber o quanto a Finlândia é bela com os seus imensos fiordes, florestas escuras, aves selvagens e estreitos de tirar o fôlego é só escutar a música de Sibelius. Assistir a uma apresentação daquela de tão alto nível patrocinada pelo estado é um grande privilégio.