quinta-feira, julho 31, 2008

Breve comentário ao livro O mestre da sensibilidade

1. CURY, Augusto, O mestre da sensibilidade, Ed. Academia de Inteligência, São Paulo, 2000, pp. 214.

Acabei de ler o livro O mestre da sensibilidade de Augusto Cury. De certa forma eu já havia estado em contato com a literatura do sr. Cury indiretamente. Sempre tive em mim a visão de que a sua literatura era incipiente e com fito mercadológico. Encaixa-se na classe dos sensacionalismos da indústria livresca do país. Trata-se de uma série de abordagens feitas em torno da figura de Jesus de Nazaré, segundo o autor, “ o homem mais atraente que já existiu”.
Acabei comprando esse livro no ano de 2002 numa livraria católica. Decidi comprar, talvez, inspirado pelas motivações religiosas que me absorvia na época. O volume foi ficando em minha estante até que chegou o momento de lê-lo. Confesso que inicialmente houve uma indisposição de minha parte. Por mais que em algumas partes o livro seja simplório e completamente vendido aos clichês religiosos, embora haja a explicação de que não vá defender nenhum credo religioso, a leitura é leve e sem maiores complicações. O autor trata de assuntos complexos e amplos com idéias curtas. Alguns assuntos ligados à Psicologia são esboçados com uma superficialidade atordoante. Fica aqui com certeza a impressão de que essa brevidade e laconicidade do autor, possua um interesse mercadológico. É uma espécie de literatura de auto-ajuda, um fast-food literário, tão em voga em nossos dias. Poderíamos afirmar que o sr. Cury é um campeão de bilheterias. Seus livros vendem, desculpem a expressão, como água. Não é que a literatura do sr. Agusto Cury seja boa. O fato é que o público sente uma necessidade de um tipo de literatura que preencha suas necessidades existenciais. Tudo isso de espraia num lastro complexo na pós-modernidade. É resultado do niilismo que acomete nossa civilização. Uma abordagem fraca a fim de alimentar necessidades profundas dos homens dos nossos dias.
Algumas metáforas são sofríveis. Não agradam pela artificialidade com que são acometidas. Poesia pobre atordoa todo aquele que possui um pouco de apuro ou sensibilidade poético-literária. Desculpem a arrogância. Mas finalizo aqui este comentário breve dizendo que a relevância que esse livro tenha me proporcionado reside no fato de que possui alguns apontamentos sobre a personalidade Jesus de Nazaré que revela um certo interesse por todo aquele que deseja crescer como ser humano.

“Sempre haverá argumentos para adiarmos o desenvolvimento da sensibilidade. Se há uma cortina de poluição que aborta nosso campo visual, há certamente um universo de detalhes que pulsa ao nosso redor: um diálogo aberto, o sorriso das crianças, uma viagem para dentro de si mesmo, uma revisão de paradigmas, a leitura de um livro. Precisamos gastar tempo com aquilo que não dá lucro para o bolso, mas para o interior. Jesus dizia que o tesouro do coração e estável, enquanto o material é transitório”. (p.200).

22/02/2007, thurday.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

sábado, julho 26, 2008

Antífona

Eu não tinha esse sorriso bobo.
Esses gestos tão raquíticos.
Essas mãos enfermas.
Os lábios já não sussurram palavra.
Os beiços gretados da alma espera
Por uma chuva vã.
Minhas pernas frias estão quietas, inertes.
O corpo nem aquece e nem é aquecido.
Eu não era dono desses olhos cansados.
Desses sentimentos que são mais dor,
Do que qualquer coisa.
Em meu interior não havia esse turbilhão
De vontades serenas e contidas,
O crepitar magnético da desordem dessa ordem.
Os anos passaram e trouxeram a alegria
Inexpressiva.
A certeza dos gestos sem força.
A incerteza que vomita sua pujança.
Já não sei dar por mim.
A minha face cansada e cadavérica descansa.
Está aguardando o próximo
Bonde na encruzilhada da vida.
Talvez ele não passe.
Eu já não sei o que fizeram de mim;
Eu já não sei o que fiz de mim.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

terça-feira, julho 22, 2008

Motivações

A desmotivação é um ácido fatal.
É uma espécie de gangrena.
Somos aturdidos por algumas pressões.
O mundo se apresenta com determinadas
Tendências, com uma direção.
Sociedade de valores materiais.
Valorização extremada de certas mercadorias,
De certo comportamento.
A expectativa para que se veja cumprido
Certos prazos:
Crescer, estudar, conquistar, viver medianamente
Não refletir e se adequar burguesamente às condições
De um modo de ser.
Os espíritos sensíveis gostam de valores frágeis.
Apreciam não a correria, mas a beleza in natura
Dos elementos universais.
A vida é mais do que uma correria em busca de realização.
Casar, ter carros, usufruir de mulheres, ter dinheiro.
Essa é uma preponderação esdrúxula.
O alvo mais absurdo contemplado como o mais significante.
Tudo se tornou um grande contra-senso.
Os valores frágeis se desmontam e se transformam
Em força sensível.
A latência da dor rói os emplastos da motivação.
A alegria envelhece.
O céu se enche de escaras.
O mundo segue na direção equivocada.
A vida a ser preenchida por um vazio sem causa.
A matéria com seu poder erótico a enfeitiçar
Os homens que amanhã não mais serão – assim como eu.

Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

terça-feira, julho 15, 2008

A problemática do humano

O Livro de Michel de Montaigne Ensaios é uma obra prima profunda, necessária. O filósofo francês discorre sobre as vicissitudes humanas. Nada escapa à ótica de Montaigne. Os Ensaios são uma coleção de reflexões sobre as panacéias e os costumes humanos – a moral humana, os vícios humanos, sobre as organizações humanas, sobre as vaidades, variabilidades e futilidades humanas. Trata-se de uma bíblia filosófica que deve ser lida com exagerada reflexão atenta. Nessa época onde se vende livros de auto-ajuda. O mercado que procura títulos sobre o self, acredito que todos deveriam se debruçar sobre o conteúdo extraordinário de os Ensaios.
Para Montaigne os homens são iguais em nesciandades. O que ocorre a um homem ocorre a outro. Todos estão subjugados às mesmas forças naturais. Tanto o rei como o servo defecam. A se julgar a priori, alguns diriam que isso não é um pensamento filosófico profundo. Todavia, nisso repousa a mais profunda cadência daquilo que é essencial no humano. Não há vantagens, apenas aparências, que em sentido estrito, não conservam nenhuma diferença para ninguém. Todos morrem inexoravelmente. No fundo todos são iguais e as diferenças meras ilusões. A quem diga que Montaigne é um ceticista, um indivíduo com um senso extremos do negativo. Quem o lê assim não percebeu a crítica fina, cortante, profunda aos desmazelos humanos; às contradições humanas. Dentro de seu Castelo, albergado na torre, em sua biblioteca, Montaigne pensava o mundo (o humano).
Há uma passagem nos Ensaios profundamente emblemática que serve como eixo de gravitação da obra: “Esses escritos não têm outra orientação senão revelar-me”. Revelar diz respeito a desvelar a si mesmo, mostrar a si mesmo. Ele diz ainda: “Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um mesmo indivíduo”. É dessa problemática em torno do humano que o pensamento de Montaigne se assenta e se estrutura. E quão extraordinária e difícil tarefa é essa.
Um tema da obra do filósofo é justamente sobre as metamorfoses por que passam os homens. A inconstância humana, a variabilidade, é um assunto complexo. “A constância é a qualidade mais difícil de encontrar no homem”. É por sua vez, “a mais fácil é a inconstância” – diz ele. “Não vamos, somos levados e impelidos como objetos que flutuam, ora devagar ora com violência segundo o vento”. O argumento é de que essa é uma condição humana. Pois, “valente será efetivamente quem o for em todas as ocasiões”. Ou seja, o homem é um descontínuo constante. É não é ao mesmo tempo. Se alguém diz ser algo, deve sê-lo em todo tempo.
Ser sendo é algo que não condiz com o humano. Ao humano resta o devir. Conforme diz Cícero: “Nada pode ser estável se não parte de um princípio sólido”. Não nascemos com uma previsibilidade que nos permita antever os desafios e perigos. Construímos as pontes necessárias à medida que as exigências dos abismos se mostram. “Ninguém determina do princípio ao fim o caminho que pretende seguir na vida; só nos decidimos por trechos, na medida em que vamos avançando. O archeiro precisa antes escolher o alvo, só então prepara o arco e a flecha e executa os movimentos necessários. Nossas resoluções se perdem porque não temos um objetivo predeterminado. O vento nunca é favorável a quem não tem um porto de chegada previsto”.
Para aqueles que se deparam com o dilema de ser muitos em um, Montaigne é sincero e solidário. Dirijo-me a mim e a todos os homens: “Crede-me, não é coisa fácil conduzir-me como um só homem”. Não sou um, sou vários e por isso a inconstância, os atos impensados. As sentenças que borbulham dos meus lábios revelam os muitos eus que tenho em mim mesmo. Paulo na sua carta ao romanos via-se nessa angústia, nessa dança desencontrada, nessa ciranda amalucada: “De maneira que eu mesmo não compreendo o meu modo de agir, pois não faço aquilo que quero; mas, sim, aquilo que não quero, isso sim faço”.
Somos seres inacabados construindo diariamente a possibilidade de sermos humanos. Os desafios surgem a todo instante e eis que o dilema da construção se faz. A cada momento construo uma nova ponte e isso vai me fazendo pela vida afora. Sou nesse momento a versão mais nova de mim mesmo. E amanhã a mais nova em relação a hoje. E: “Crede-me, não é coisa fácil conduzir-me como um único homem, quando tenho muitos duelando dentro de mim”. Viva o gênio profundo e perspicaz do homem Michel de Montaigne.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: Terça-feira, 15 de julho de 2008, 10:58:37.

sábado, julho 12, 2008

Da incoerência de nossas ações - Montaigne

Os que se dedicam à crítica das ações humanas jamais se sentem tão embaraçados como quando procuram agrupar e harmonizar sob uma mesma luz todos os atos dos homens, pois estes se contradizem comumente e a tal ponto que não parecem provir de um mesmo indivíduo. Mário, o Jovem, ora parece filho de Marte ora filho de Vênus. Dizem que o papa Bonifácio VII assumiu o papado como uma raposa, conduziu-se como um leão e morreu como um cão. E quem diria que Nero, essa verdadeira imagem da crueldade, como lhe apresentassem para ser assinada, de acordo com a lei, a sentença contra um criminoso, observou: – Prouvera a Deus que eu não soubesse escrever! – tanto lhe apertava o coração condenar um homem à morte. Há tantos exemplos semelhantes, e tão facilmente os encontrará sozinho quem quiser, que estranho ver por vezes gente de bom senso procurando juntar tais contradições, mesmo porque a irresolução me parece ser o vício mais comum e evidente de nossa natureza, como o atesta este verso de Públio, o satírico: “Má opinião, a de que não se pode mais mudar”.
É aparentemente possível julgar um homem pelos fatos mais comuns de sua vida; mas, dada a instabilidade natural de nossos costumes e opiniões, pareceu-me muitas vezes que os melhores autores erravam em se obstinar a dar de alguém uma idéia bem-assentada e lógica. Adotam um princípio geral e de acordo com este ordenam e interpretam as ações, tomando o partido de as dissimular quando não as deformam para que entrem dentro do molde preconcebido. O imperador Augusto escapou-lhes; deparamos nesse homem com tal flagrante diversidade de ações, tão inesperada e contínua no decurso de sua existência, que os mais ousados juízes, renunciando a julgá-lo em seu conjunto, tiveram de deixá-lo assim indefinido. Acredito que a constância seja a qualidade mais difícil de se encontrar no homem, e a mais fácil a inconstância. Quem os julgasse pormenorizadamente de acordo com seus atos, um por um, estaria mais apto a dizer a verdade a seu respeito.
Fora difícil encontrar em toda a Antigüidade uma dúzia de homens que tenham orientado sua vida em obediência a determinado princípio, o que é o fim principal da sabedoria – a qual, segundo um autor antigo [Sêneca], se resume em uma frase que enfeixa, em uma só, todas as regras da vida: “Querer e não querer são sempre a mesma e a única coisa”. E poderia acrescentar: à condição de que o que queremos ou não queremos seja justo, pois, se não o é, impossível se faz que permaneça constantemente a mesma coisa. Efetivamente, sei de há muito que o vício nada mais é senão desregramento e falta de medida; e, por conseguinte, não o podemos imaginar constante. Atribui-se a Demóstenes a seguinte máxima: a virtude, qualquer que seja, consiste de início em recolhimento e deliberação; a constância, a seguir, comprova-lhe a perfeição. Em refletindo seguimos sempre o melhor caminho, mas ninguém pensa antes de agir. “Desdenha o que pediu, volta ao que largou e, sempre hesitante, contradiz-se sem cessar” (Horácio).
Nossa maneira habitual de fazer está em seguir os nossos impulsos instintivos para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo, segundo as circunstâncias. Só pensamos no que queremos no próprio instante em que o queremos, e mudamos de vontade como muda de cor o camaleão. O que nos propomos em dado momento, mudamos em seguida e voltamos atrás, e tudo não passa de oscilação e inconstância. “Somos conduzidos como títeres que o fio manobra” (Horácio).
Não vamos, somos levados como objetos que flutuam, ora devagar, ora com violência, segundo o vento: “Acaso não vemos todo mundo indeciso; uns procurando sem descontinuar, outros mudando de lugar, como para largar uma carga pesada demais?” (Lucrécio). Cada dia nova fantasia, e movem-se as nossas paixões de acordo com o tempo: “O pensamento dos homens assemelha-se na terra aos cambiantes raios de luz com que Júpiter a fecunda” (Cícero).
Hesitamos em tomar partido; nada decidimos livremente, de maneira absoluta, coerente. Se alguém traçasse e estabelecesse determinadas leis de conduta e regime político de vida, veríamos brilhar em seus atos e atitudes uma harmonia cabal e em seus costumes uma ordem e uma correlação evidentes. Empédocles observa a seguinte contradição entre os agrigentinos: alguns se entregam aos prazeres como se devessem morrer no dia seguinte e outros edificam como se a vida não tivesse de acabar jamais. O plano de vida fora, entretanto, fácil de se estabelecer, como se vê em Catão, o Jovem: quem nele toca uma tecla, toca todas, pois há nele uma harmonia de sons bem-afinados que nunca se entrechocam. Não seguimos, nós outros, tão sábio exemplo e cada uma de nossas ações decorre de um juízo específico. E, em minha opinião, seria melhor procurar-lhes as causas nas circunstâncias do momento sem mais aprofundada pesquisa e sem tirar delas quaisquer conseqüências.
Durante as desordens que agitaram nosso pobre país, disseram-me que uma jovem, bem perto do local onde eu me encontrava, se jogara pela janela a fim de escapar à brutalidade de um soldado que hospedava. Não teve morte instantânea e para se acabar tentou cortar o pescoço com uma faca, o que não a deixaram fazer. Nesse triste estado, confessou que o soldado nada mais fizera do que lhe declarar seu amor, solicitá-la e presenteá-la, mas ela temera que chegasse a violentá-la. Daí seus gritos, sua atitude, o sangue derramado, como se se tratasse de uma nova Lucrécia. Entretanto, eu soube que antes e depois dessa ocorrência sempre se mostrou muito menos arisca. Como dizem por aí, “por mais belo e decente que sejas, se não és aceito pela tua amada, não concluas, sem mais amplas informações, ser ela de uma castidade a toda prova; isso não impede que o arrieiro tenha a sua possibilidade”.
Antígono, que se afeiçoara a um de seus soldados por causa de sua valentia e coragem, mandou que o médico tratasse de uma doença que o atormentava havia muito. Observando, após a cura, que o homem se expunha muito menos nos combates, perguntou qual a razão dessa mudança que o tornara poltrão: “Vós mesmo, Sire, porquanto me libertastes dos males que faziam com que eu não apreciasse a vida”.
Um soldado de Luculo fora roubado pelo inimigo. Para se vingar executou contra ele um golpe de mão notável, amplamente compensador de seus prejuízos. Luculo, que ficara com excelente opinião dele, quis empregá-lo em uma arriscada expedição e, a fim de decidi-lo, usava todos os meios de persuasão, “com palavras capazes de entusiasmar os mais tímidos” (Horácio). Mas o soldado atalhou: “Mandai algum soldado miserável que tenha sido roubado”. E recusou peremptoriamente. Como diz Horácio: “Irá quem tiver perdido a bolsa”.
Maomé II admoestara violentamente Chasan, chefe de seus janízaros cuja tropa fora desfeita pelos húngaros, sendo que se conduzira ele próprio covardemente durante o combate. Como única resposta, Chasan, sozinho, sem precisar de ninguém, precipitou-se furioso, espada na mão, contra o primeiro pelotão inimigo que percebeu e desapareceu em poucos instantes como se fora por ele tragado. Nesse ato, parece que foi movido menos pelo desejo de se reabilitar do que em virtude de uma reviravolta em seus sentimentos: Não agia sob o impulso da coragem moral e sim por despeito. Quem ontem vistes tão temerário, não vos espanteis em vê-lo poltrão no dia seguinte. A cólera, a necessidade, a companhia ou o vinho, ou o som de uma trombeta, terão feito de suas tripas coração. Não foi o raciocínio que lhe deu coragem: foram as circunstâncias. Não nos espantemos, pois, de ver que mudou ao mudarem elas. Essa variação e essa contradição, tão comuns em nós, levaram muitas pessoas a pensar que possuímos duas almas, ou duas forças que atuam cada qual num sentido, uma no sentido do bem e outra no do mal. Uma só alma e uma só força não poderiam conciliar-se com tão repentinas variações de sentimentos.
Não somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde vem, como eu mesmo me agito e perturbo em conseqüência da instabilidade da posição em que esteja. Quem se examina de perto raramente se vê duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado para o qual me volto. Se falo de mim de diversas maneiras é porque me olho de diferentes modos. Todas as contradições em mim se deparam, no fundo como na forma. Envergonhado, insolente, casto, libidinoso, tagarela, taciturno, trabalhador, requintado, engenhoso, tolo, aborrecido, complacente, mentiroso, sincero, sábio, ignorante, liberal e avarento, e pródigo, assim me vejo de acordo com cada mudança que se opera em mim. E quem quer que se estude atentamente reconhecerá igualmente em si, e até em seu julgamento, essa mesma volubilidade, essa mesma discordância. Não posso aplicar a mim um juízo completo, sólido, sem confusão nem mistura, nem o exprimir com uma só palavra. “Distingo” é o termo mais encontradiço em meu raciocínio.
Embora acredite sempre que é preciso falar bem do que é justo e interpretar com simpatia o que a tal juízo se presta, nossa condição é tão singular que não raro o próprio vício nos impele a bem fazer (se o bem não se julgasse unicamente pela intenção que o determina). Daí não se dever tirar de um ato corajoso a conclusão de que um valente o praticou. Valente será efetivamente quem o for sempre, em todas as ocasiões. Se fosse um hábito e não um gesto imprevisto, a virtude faria que um homem mostrasse sempre igual resolução; seria o mesmo, só ou acompanhado, na justa como no campo de batalha. Suportaria esse homem, com igual atitude, uma enfermidade em seu leito e um ferimento na guerra; e não temeria mais a morte em seu lar do que em um assalto. Não o veríamos lançar-se através de uma brecha com insopitável bravura e em seguida chorar como uma mulher a perda de um processo ou de um filho; ser covarde diante da infâmia e resoluto na miséria, ter medo da navalha do barbeiro e desafiar a espada do adversário. Em tais casos, a ação é louvável, não o homem. Há gregos, diz Cícero, que tremem à vista do inimigo e se mostram tenazes quando enfermos, e tem-se o inverso nos cimbros e nos celtiberos: “Nada pode ser estável se não parte de um princípio sólido” (Cícero).
Não há maior valentia, no gênero, do que a de Alexandre, o Grande; e, no entanto, não se verifica em tudo. Por incomparável que seja, tem suas falhas, o que o faz perturbar-se a mais insignificante suspeita de conjuras e o leva a incrível e absurda crueldade na repressão e a temores em nada compatíveis com sua apreciação habitual das coisas. A superstição que lhe era peculiar participa também da pusilanimidade, e a exagerada penitência que se impõe a si mesmo após o assassínio de Clito prova igualmente a desigualdade de sua coragem. Somos um amontoado de peças juntadas inarmonicamente e queremos que nos honrem quando não o merecemos. A virtude vale por si mesma; se para outro fim tomamos a sua máscara, logo ela no-la arranca da cara. Quando nossa alma se impregna dela, forma ela uma espécie de verniz fortemente adesivo que só se tira com a própria pele. Eis por que para julgar um homem é preciso seguir suas pegadas, penetrar sua vida; e, se não deparamos com a constância alicerçando seus atos, “com um plano de vida bem ponderado e previsto” (Cícero), se sua marcha, ou antes, seu caminho (pois é lícito acelerar ou diminuir o passo) se modifica segundo as circunstâncias, abandonemo-lo. Como a ventoinha gira de acordo com o vento, assim reza a divisa de nosso Talbot.
Não é de espantar, diz um autor antigo, que o acaso tenha tanta força sobre nós, pois por causa dele é que existimos. Quem não orientou sua vida, de um modo geral, em determinado sentido, não pode tampouco dirigir suas ações. Não tendo tido nunca uma linha de conduta, não lhe será possível coordenar e ligar uns aos outros os atos de sua existência. De que serve fazer provisão de tintas se não se sabe que pintar? Ninguém determina do princípio ao fim o caminho que pretende seguir na vida; só nos decidimos por trechos, na medida em que vamos avançando. O arqueiro precisa antes escolher o alvo; só então prepara o arco e a flecha e executa os movimentos necessários; nossas resoluções se perdem porque não temos um objetivo determinado. O vento nunca é favorável a quem não tem um porto de chegada previsto. Não estou de acordo com o juízo que se fez, ao assistir a uma tragédia de Sófocles, declarando-o, contra a opinião de seu filho, capaz de administrar seus bens. Não acho tampouco muito mais lógico o que fizeram os párias enviados com missão de reformar o governo dos milésios. Depois de visitar a ilha, observando o cultivo cuidadoso da terra, a boa ordem das propriedades, e registrando os nomes dos proprietários, considerando que a atenção e a eficiência demonstradas na administração de seus negócios particulares eram uma garantia de que de igual modo iam gerir os negócios do Estado.
Somos todos constituídos de peças e pedaços juntados de maneira casual e diversa, e cada peça funciona independentemente das demais. Daí ser tão grande a diferença entre nós mesmos quanto entre nós e outrem: “Crede-me, não é coisa fácil conduzir-se como um só homem” (Sêneca). Se a ambição pode impelir o homem a ser valente, sóbrio, liberal e mesmo justo; se a avareza pode dar coragem a um caixeiro criado no ócio e na indolência e infundir-lhe bastante confiança para que se lance à aventura em frágil navio, à mercê de Netuno, e lhe ensina a discrição e a prudência; se a própria Vênus arma de resolução e audácia o jovem ainda sob a autoridade paterna, e faz com que se mostre impudica a virgem de coração terno ainda sob a égide de sua mãe – “Passando furtivamente entre os guardas que dormem, protegida por Vênus, vai a jovem sozinha, dentro da noite, juntar-se a seu amante” (Tibulo) –; se assim é, não deve um espírito refletido julgar-nos pelos nossos atos exteriores; cumpre-lhe sondar as nossas consciências e ver os móveis a que obedecemos. É uma tarefa elevada e difícil e desejaria por isso mesmo que menor número de pessoas se dedicasse a ela.

Autor: Michel de Montaigne
Tradução: Sérgio Milliet
Original: Ensaios; 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980, pp. 159-162

terça-feira, julho 08, 2008

Algumas palavras

A tolerância, a paciência, as virtudes.
Somos forçados a agir de certa forma.
Quando nascemos encontramos um mundo
Pronto: com seus valores, princípios éticos.
Temos que nos moldar irremediavelmente
Aos ditames da sociedade a que pertencemos.
Se a sociedade diz: “É necessário que a família
Seja nuclear”.
O indivíduo aceita essa imperatividade e certamente
Entende que o arranjo nuclear de família é o mais “correto”.
De certa forma, o ser humano com seus ideais julga o próprio
Comportamento como o mais acertado.
Temos por tendência defender os nossos princípios e
Pontos de vistas até que o outro seja “derrotado” – vencido.
Isso revela um estado cruel de beligerância.
Penso que devemos ponderar acerca daquilo que é cultural
E aquilo que é ideal.
É claro que entendo que o artifício que conduz esse texto
Está desbotado desde o princípio narrativo, mas
Não devo deixar de acrescentar
Que aprender a ouvir e falar deve ser um imperativo
De valor universal.
Essa postura não denunciaria nenhum tipo de beligerância,
Mas de sabedoria.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

quarta-feira, julho 02, 2008

Um fragmento nietzscheniano

Postei este fragmento do Ensaio de 1873 de Nietzsche - Verdade e Mentira no Sentido Extramoral - pois e julguei necessário difundir as questões relativas a construção dos sentidos da realidade imediata. As construção da "verdade" é uma metáfora humana, demasiado humana. Nietzsche busca neste texto "explorar o lado gnosiológico, de origem e fundamentação do conhecimento. O conhecimento é uma ilusão, a única relação do homem com o mundo possível é a estética. O conhecimento típico do homem, que assimila o mundo à sua perspectiva. Existem os instrumentos do conhecimento (categorias e linguagem) e seu produto, o mundo percebido. Uma das perspectivas que aprecem em Nietzsche é noção de que o instinto da conservação da espécie é a responsável por muitos atos. O conhecimento é útil à preservação da vida, e é também o objetivo de todos os líderes religiosos. O conhecimento não é transcendente, o homem é criador de seus valores. O homem interpreta e dá um sentido humano às coisas, o resultado é o mundo articulado. O conhecimento foi inventado em um minuto, em relação aos cosmos, pelo homem. Foi um minuto mentiroso. A verdade é procurada para ser válida e comum e a linguagem dá as primeiras leis da verdade. A verdade e a mentira seriam relativas, válidas para o ponto de vista humano. No processo de antropomorfização do mundo, o reduzimos e generalizamos. Por exemplo, ao estereotiparmos folha, ignoramos qual folha é verdadeira e válida. Não existe na natureza a folha, elas são bilhões. Nietzsche observa os humanos de longe, e não o considera um ser privilegiado. Um dos pontos principais de sua obra é a crítica aos valores judaico-cristãos. O homem não é divino. Necessita sobreviver e dominar, na história estão presentes a vontade de poder, de dominar. O destino de um homem não é tanto assim, afinal, o sistema solar é apenas um ponto. O homem se apega à mentira do conhecimento como se sua filosofia ou ciência explicasse realmente o mistério cósmico. São invenções o conhecimento, a moral e a metafísica. No século XVIII caíram as teorias de origem divina do homem. Mas existe o idealismo metafísico, o homem é divino, a Terra é escolhida. Para Nietzsche, o homem está sem Deus, sem causa transcendente. O conhecimento é ativo e submisso à vida. O mundo que tem valor é o que criamos ao perceber. Nossas verdades são ilusão". Boa leitura

Capítulo 1.

No desvio de algum rincão do universo inundado pelo fogo de inumeráveis sistemas solares, houve uma vez um planeta no qual os animais inteligentes inventaram o conhecimento. Este foi o minuto mais soberboe mais mentiroso da .história universal., mas foi apenas um minuto. Depois de alguns suspiros da natureza, o planeta congelou-se e os animais inteligentes tiveram de morrer. Esta é a fábula que se poderia inventar, sem com isso chegar a iluminar suficientemente o aspecto lamentável, frágil e fugidio, o aspecto vão e arbitrário dessa exceção que constitui o intelecto humano no seio da natureza. Eternidades passaram sem que ele existisse; e se ele desaparecesse novamente, nada se teria passado; pois não há para tal intelecto uma missão que ultrapasse o quadro de uma vida humana. Ao contrário, ele é humano e somente seu possuidor e criador o trata com tanta paixão, como se ele fosse o eixo em torno do qual girasse o mundo. Se pudéssemos entender a mosca, perceberíamos que ela navega no ar animada por essa mesma paixão e sentindo em si que voar é o centro do mundo. Nada há de tão desprezível e de tão insignificante na natureza que não transborde como um odre ao menor sopro dessa força do conhecer, e assim como todo carregador quer também ter o seu admirador, o homem mais arrogante, o filósofo, imagina ter também os olhos do universo focalizados, como um telescópio, sobre suas obras e seus pensamentos. É admirável que o intelecto seja responsável por esta situação, ele a quem todavia não foi dado senão servir precisamente como auxiliar dos seres mais desfavorecidos, mas vulneráveis e mais efêmeros, a fim de mantê-los na vida pelo espaço de um minuto . existência da qual eles teriam todo o direito de fugir, tão rapidamente como o filho de Lessing6 , não fosse esta ajuda recebida. Este orgulho ligado ao conhecimento e à percepção, névoa que cega o olhar e os sentidos do homem, engana-os sobre o valor da existência, exatamente quando vem acompanhada da avaliação mais lisonjeira possível com relação ao conhecimento. O seu efeito mais comum é a ilusão; mas seus efeitos mais particulares implicam
também qualquer coisa da mesma ordem. O intelecto, enquanto meio de conservação do indivíduo, desenvolve o essencial de suas forças na dissimulação, pois esta é o meio de conserva
ção dos indivíduos mais fracos e menos robustos, na medida em que lhe é impossível enfrentar uma luta pela existência munidos de chifres ou das poderosas mandíbulas dos animais carnívoros. É no homem que esta arte da dissimulação atinge o seu ponto culminante: a ilusão, a lisonja, a mentira e o engano, a calúnia, a ostentação, o fato de desviar a vida por um brilho emprestado e de usar máscaras, o véu da convenção, o fato de brincar de comediante diante dos outros e de si mesmo, em suma, o gracejo perpétuo que em todo lugar goza unicamente com o amor da vaidade, são nele a tal ponto a regra e a lei, que quase nada é mais inconcebível do que o aparecimento, nos homens, de um instinto de verdade honesto e puro. Eles estão profundamente mergulhados nas ilusões e nos sonhos, seu olhar somente desliza sobre a superfície das coisas e vê apenas as .formas., sua percepção não leva de maneira nenhuma à verdade, mas se limita a receber as excitações e a andar como que às cegas no dorso das coisas. Além disso, durante a vida toda, o homem se deixa enganar à noite pelos sonhos, sem que jamais o seu sentido moral procure impedi-lo disso, embora deva haver homens que, por força da vontade, tiveram sucesso
em se livrar do ronco. Mas o que sabe o homem, na verdade, de si mesmo? E ainda, seria ele sequer capaz de se perceber a si próprio, totalmente de boa-fé, como se estivesse exposto numa vitrine iluminada? A natureza não lhe dissimula a maior parte das coisas, mesmo no que concerne a seu próprio corpo, a fim de mantê-lo prisioneiro de uma consciência soberba e enganadora, afastado das tortuosidades dos intestinos, afastado do curso precipitado do sangue nas veias e do complexo jogo de vibrações das fibras? Ela atirou fora a chave; e infeliz da curiosidade fatal que chegar um dia a entrever por uma fresta o que há fora desta cela que é a consciência e aquilo sobre o que ela está assentada, e descobrir então que o homem repousa, a despeito da sua ignorância, sobre um fundo impiedoso, ávido, insaciável e mortífero, agarrado a seus sonhos assim como ao dorso de um tigre. Nessas condições, haveria no mundo um lugar de onde pudesse surgir o instinto de verdade? No estado de natureza, na medida em que o indivíduo quer conservarse diante dos outros indivíduos, ele não utiliza sua inteligência o mais das vezes senão com fins de dissimulação. Mas, na medida em que o homem, ao mesmo tempo por necessidade e por tédio, quer viver em sociedade e no rebanho, necessário lhe é concluir a paz e, de acordo com este tratado, fazer de modo tal que pelo menos o aspecto mais brutal do bellum omnium contra omnes7 desapareça do seu mundo. Ora, este tratado de paz fornece algo como um primeiro passo em vista de tal enigmático instinto de verdade. De fato, aquilo que daqui em diante deve ser a .verdade. é então fixado, quer dizer, é descoberta uma designação uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação da linguagem vai agora fornecer também as primeiras leis da verdade, pois, nesta ocasião e pela primeira vez, parece uma oposição entre verdade e mentira. O mentiroso utiliza as designações pertinentes, as palavras, para fazer parecer real o que é irreal; ele diz por exemplo: .eu sou rico., ainda que, para qualificar sua condição, fosse justamente a palavra .pobre. a designação mais correta. Ele mede as convenções estabelecidas, operando substituições arbitrárias ou mesmo invertendo os nomes. Se age assim de maneira interessada e demasiadamente prejudicial, a sociedade não lhe dará mais crédito e, por causa disso, o excluirá. Nesse caso, os homens fogem menos da mentira do que do prejuízo provocado por uma mentira. Fundamentalmente, não detestam tanto as ilusões, mas as conseqüências deploráveis e nefastas de certos tipos de ilusão. É apenas nesse sentido restrito que o homem quer a verdade. Deseja os resultados favoráveis da verdade, aqueles que conservam a vida; mas é indiferente diante do conhecimento puro e sem conseqüência, e é mesmo hostil para com as verdades que podem ser prejudiciais e destrutivas. Mas, por outro lado, o que são as convenções da linguagem? São produtos eventuais do conhecimento e do sentido da verdade? Coincidem as coisas e suas designações? É a linguagem a expressão adequada de toda e qualquer realidade? Somente graças à sua capacidade de esquecimento é que o homem pode chegar a imaginar que possui uma verdade no grau que nós queremos justamente indicar. Se ele recusa contentar-se com uma verdade na forma de tautologia, quer dizer, como cascas vazias, ele tomará eternamente ilusões por verdades. O que é uma palavra? A transposição sonora de uma excitação nervosa. Mas, concluir a partir de uma excitação nervosa uma causa primeira exterior a nós, isso é já até onde chega uma aplicação falsa e injustificável do princípio da razão. Se a verdade tivesse sido o único fator determinante na gênese da linguagem e se o ponto de vista da certeza o fosse quanto às designações, como teríamos então o direito de dizer, por exemplo, que .esta pedra é dura., como se conhecêssemos o sentido de .duro. de outro modo que não fosse apenas uma excitação totalmente subjetiva? Classificamos as coisas segundo os gêneros, designamos l.arbre como masculino e a planta como feminino: que transposições arbitrárias! A que ponto estamos afastados do cânone da certeza! Falamos de uma serpente: a designação alcança somente o fato de se contorcer, o que poderia convir igualmente ao verme. Que delimitações arbitrárias, que parcialidade é preferir ora uma ora outra propriedade de uma coisa! As diferentes línguas, quando comparadas, mostram que as palavras nunca alcançam a verdade, nem uma expressão adequada; se fosse assim, não haveria efetivamente um número tão grande de línguas. A .coisa em si. [como sendo precisamente a verdade pura e sem conseqüência], enquanto objeto para aquele que cria uma linguagem, permanece totalmente incompreensível e absolutamente indigna de seus esforços. Esta designa somente as relações entre os homens e as coisas e para exprimi-las ela pede o auxílio das metáforas mais audaciosas. Transpor uma excitação nervosa numa imagem! Primeira metáfora. A imagem por sua vez é transformada num som! Segunda metáfora. A cada vez, um salto completo de uma esfera para outra completamente diferente e nova. Imaginemos um homem que seja totalmente surdo e que jamais tenha percebido o som e a música: da mesma maneira que ele sem dúvida se espanta com as figuras acústicas de Chladni8 feitas de areia e descobre sua causa na vibração das cordas, jurará então por esta descoberta que não poderá ignorar daí por diante o que os homens chamam de som, assim como ocorre com todos nós no que concerne à linguagem. Acreditamos possuir algum saber sobre as coisas propriamente, quando falamos de árvores, cores, neve e flores, mas não temos entretanto aí mais do que metáforas das coisas, as quais não correspondem absolutamente às entidades originais. Assim como o som enquanto figura de areia, também o x enigmático da coisa em si é primeiramente captada como excitação nervosa, depois como imagem, afinal como som articulado. A gênese da linguagem não segue em todos os casos uma via lógica, e o conjunto de materiais que é por conseguinte aquilo sobre o que e com a ajuda de quem o homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, trabalha e constrói, se não provém de Sírius9 , jamais provém em todo caso da essência das coisas. Pensemos ainda uma vez, particularmente, na formação dos conceitos: toda palavra se torna imediatamente conceito, não na medida em que
ela tem necessariamente de dar de algum modo a idéia da experiência original única e absolutamente singular a que deve o seu surgimento, mas quando lhe é necessário aplicar-se simultaneamente a um sem-número de casos mais ou menos semelhantes, ou seja, a casos que jamais são idênticos estritamente falando, portanto a casos totalmente diferentes. Todo conceito surge da postulação da identidade do não-idêntico. Assim como é evidente que uma folha não é nunca completamente idêntica à outra, é também bastante evidente que o conceito de folha foi formado a partir do abandono arbitrário destas características particulares e do esquecimento
daquilo que diferencia um objeto de outro. O conceito faz nascer a idéia de que haveria na natureza, independentemente das folhas particulares, algo como a .folha., algo como uma forma primordial, segundo a qual todas as folhas teriam sido tecidas, desenhadas, cortadas, coloridas,
pregueadas, pintadas, mas por mãos tão inábeis que nenhum exemplar teria saído tão adequado ou fiel, de modo a ser uma cópia em conformidade com o original. Dizemos de um homem que ele é honesto; perguntamos a nós mesmos porque ele agiu hoje tão honestamente. Respondemos geralmente que foi por causa da sua honestidade. Honestidade! Isto significa novamente dizer que a folha é a causa das folhas. Não sabemos mesmo absolutamente nada de uma qualidade essencial chamada honestidade, no entanto conhecemos inumeráveis ações individualizadas e por
conseguinte dessemelhantes, mas que postulamos como idênticas ao deixarmos de lado o que as torna diferentes; assim, designamos as ações honestas a partir das quais afinal formulamos uma qualitas occulta10 com o termo: a honestidade. A omissão do particular e do real nos dá o conceito, assim como nos dá a forma, contrariamente ao que revela a natureza, que não conhece formas ou conceitos e portanto nenhum gênero, mas somente um x para nós inacess ível e indefinível. Pois a oposição que introduzimos entre o indivíduo e a espécie é também antropomórfica e não provém da essência das coisas, mesmo quando ousamos dizer que esta oposição não corresponde à essência das coisas; pois isto seria de fato uma afirmação dogmática e, enquanto tal, tão indemonstrável quanto a afirmação contrária. O que é portanto a verdade? Uma multidão móvel de metáforas, metonímias e antropomorfismos; em resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas, transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retórica e que, depois de um longo uso, pareceram estáveis, canônicas e obrigatórias aos olhos de um povo: as verdades são ilusões das quais se esqueceu que são, metáforas gastas que perderam a sua força sensível, moeda que perdeu sua efígie e que não é considerada mais como tal, mas apenas como metal. Não sabemos ainda todavia de onde provém o instinto de verdade, pois até agora só temos falado do constrangimento que a sociedade impõe como condição da existência: é necessário ser verídico, quer dizer, empregar metáforas usuais; portanto, nos termos da moral, só temos falado da obrigação de mentir segundo uma convenção estabelecida, mentir como rebanho e num estilo obrigatório para todos. Na verdade, o homem esquece que é assim que se passam as coisas. Ele mente portanto inconscientemente, tal como indicamos, conformando-se a costumes seculares... e é mesmo por intermédio dessa inconsciência, desse esquecimento, que
ele chega ao sentimento da verdade. Ao experimentar o sentimento de estar obrigado a designar uma coisa como vermelha, outra como fria, uma terceira como muda, ele é seduzido por um impulso moral que o orienta para a verdade e, em oposição ao mentiroso a que ninguém dá crédito e que todos excluem, o homem é persuadido da dignidade, da confiança e da utilidade da verdade. Enquanto ser racional, deve agora submeter seu comportamento ao poder das abstrações; não suporta mais ser levado pelas impressões súbitas e pelas intuições, mas generaliza em primeiro lugar todas as impressões em conceitos mais frios e mais exangües, a fim de atrelar neles a condução da sua vida e do seu agir. Tudo o que eleva o homem acima do animal depende dessa capacidade de fazer desaparecer as metáforas intuitivas num esquema ou, em outras palavras, dissolver uma imagem num conceito. Sob o domínio desses esquemas, é possível ser bem sucedido em relação àquilo que jamais se alcançaria submetido às primeiras impressões intuitivas: edificar uma pirâmide lógica ordenada segundo divisões e graus, instaurar um novo mundo de leis, privilégios, subordinações e delimitações, que se opõe desde logo ao ou tro mundo, o mundo intuitivo das primeiras impressões, como sendo aquele melhor estabelecido, mais geral, melhor conhecido, mais humano e, por esta razão, como uma instância reguladora e imperativa. Enquanto toda metáfora da intuição é particular e sem igual, escapando sempre portanto à qualquer classificação, o grande edifício dos conceitos apresenta a estrita regularidade de um columbário romano, edifício de onde emana aquele rigor e frieza da lógica que são próprios das matemáticas. Aquele que estivesse impregnado desta frieza hesitaria em crer que mesmo o conceito duro como o osso e cúbico como um dado e como ele intercambiável . acabasse por ser somente o resíduo de uma metáfora e que a ilusão própria a uma transposição estética de uma excitação nervosa em imagens, se não era a mãe, era entretanto a avó de tal conceito. Mas nesse jogo de dados dos conceitos, chama-se .verdade. o fato de se utilizar cada dado segundo a sua designação, de computar exatamente seus pontos, de formular rubricas corretas e de jamais pecar contra o ordenamento das divisões ou contra a série ordenada das classificações. Assim como os romanos e os etruscos dividiram o céu segundo linhas matemáticas estritas e destinaram este espaço assim delimitado para templum de um deus, assim também todo povo possui um céu conceitual semelhante a que está adstrito; a exigência da verdade significa então para ele que todo conceito, a exemplo de um deus, somente deve ser procurado na sua própria esfera. Bem poderíamos, a respeito disso, admirar o homem pelo fato de ser ele um poderoso gênio da arquitetura: ele conseguiu erigir uma catedral conceitual infinitamente complicada sobre fundações movediças, de qualquer maneira sobre água corrente. Na verdade, para encontrar um ponto de apoio em tais fundações, precisa-se de uma construção semelhante às teias de aranha, tão fina que possa seguir a corrente da onda que a empurra, tão resistente que não se deixe despedaçar à mercê dos ventos. Enquanto gênio da arquitetura, o homem supera em muito a abelha: esta constrói com a cera que recolhe da natureza, o homem o faz com a matéria bem mais frágil dos conceitos que é obrigado a fabricar com seus próprios meios. Nisso, o homem é bem digno de ser admirado . mas não por seu instinto de verdade ou pelo conhecimento puro das coisas. Se alguém esconde algo atrás de uma moita e depois a procura exatamente nesse lugar acabando por encontrá-la aí, não há nenhum motivo para a glorifica ção dessa procura e dessa descoberta. Mas é todavia isso o que ocorre com a procura e a descoberta da .verdade. no domínio que concerne à razão. Quando dou a definição de mamífero e quando, depois de ter examinado um camelo, declaro: eis aqui um mamífero, isto é certamente uma verdade que vem à luz, mas o seu valor é limitado; quero dizer com isso que ela é em tudo uma definição antropomórfica e que não contém qualquer coisa que seja .verdade em si., real e universal, independentemente do homem. Aquele que se põe à busca de tais verdades, no fundo procura somente a metamorfose do mundo no homem; luta para alcançar uma compreensão do mundo enquanto coisa humana e conquista no melhor dos casos o sentimento de uma assimilação. Semelhante a um astrólogo, aos olhos de quem as estrelas estão a serviço dos homens e relacionadas com sua felicidade ou infelicidade, um tal pesquisador considera o mundo inteiro como estando ligado aos homens, como o eco sempre deformado de uma voz primordial do homem, como a cópia multiplicada e diversificada de uma imagem primordial do homem. Seu método consiste no seguinte: considerar o homem como medida de todas as coisas; por ém, assim fazendo, parte do erro que consiste em acreditar que as coisas lhe seriam dadas imediatamente enquanto puros objetos. Ele esquece portanto que as metáforas originais da intuição são já metáforas, e as toma pelas coisas mesmas. Foi somente o esquecimento desse mundo primitivo das metáforas, foi apenas a cristalização e a esclerose de um mar de imagens que surgiu originariamente como uma torrente escaldante da capacidade original da imaginação humana, foi unicamente a crença invencível em que este sol, esta janela, esta mesa são verdades em si, em suma, foi exclusivamente pelo fato de que o homem esqueceu que ele próprio é um sujeito e certamente um sujeito atuante criador e artista, foi isto que lhe permitiu viver beneficiado com alguma paz, com alguma segurança e com alguma lógica. Se ele pudesse por um instante transpor os muros desta crença que o aprisiona, adquiriria imediatamente a .consciência de si.. Já lhe custa
bastante reconhecer até que ponto o inseto ou o pássaro percebem o mundo de uma maneira totalmente diferente do homem, e confessar que a questão de saber qual das duas percepções é a mais justa é completamente absurda, já que para respondê-la precisaria em primeiro lugar que se as medisse segundo o critério da percepção justa, quer dizer, segundo um critério do qual não se dispõe. Mas me parece sobretudo que a percepção justa . que significaria a expressão adequada de um objeto num sujeito . é um absurdo pleno de contradições: pois, entre duas esferas absolutamente distintas como são o sujeito e o objeto, não há qualquer laço de causalidade, qualquer exatidão, qualquer expressão possíveis, mas, antes de mais nada, uma relação estética, quer dizer, no sentido que dou, uma transposição aproximativa, uma tradução balbuciante numa língua totalmente estranha. Contudo, isto exigiria em todo caso uma esfera intermediária e uma força auxiliar onde a criação e a descoberta pudessem operar livremente. A palavra fenômeno esconde muitas seduções; eis porque eu evito empregá-la o mais que posso, pois não é verdade que a essência das coisas se manifeste no mundo empírico. Um pintor que fosse maneta e quisesse exprimir pelo canto o quadro que ele projeta pintar dirá sempre mais, passando de uma esfera a outra, do que revela o mundo empírico sobre a essência das coisas. A própria relação entre uma excitação nervosa e a imagem produzida não é em si nada de necessário; mas se precisamente esta mesma imagem for reproduzida milhões de vezes e se inúmeras gerações de homens deixam-na de herança, enfim, sobretudo se ela aparece ao conjunto da humanidade sempre nas mesmas circunstâncias, ela acaba por adquirir, para o homem, a mesma significação como se ela fosse a única imagem necessária e como se esta relação entre a excitação nervosa de origem e a imagem produzida fosse uma relação de estrita causalidade. Assim também, um sonho eternamente repetido seria experimentado e julgado como absolutamente real. Mas a cristalização e a esclerose de uma metáfora não daria nenhuma garantia quanto à necessidade e à legitimidade exclusiva desta metáfora. Todo homem familiarizado com tais considerações experimentou evidentemente uma desconfiança profunda a respeito de todo idealismo desse tipo, a cada vez que se mostrou claramente persuadido pela lógica, pela universalidade e pela infalibilidade eternas das leis da natureza, e disso tirou a seguinte conclusão: aí tudo é certo, elaborado, infinito, regrado, desprovido de falha até onde pode levar o nosso olhar . graças ao telescópio apontado para as alturas do mundo e graças ao microscópio dirigido para as suas profundezas. A ciência terá sempre material para explorar com êxito este poço e tudo quanto ela puder encontrar concordará sem se contradizer. Quão pouco se assemelha isto a um produto da imaginação, pois, se assim o fosse, seria todavia necessário que algo da ilusão e da irrealidade que lhe são próprias se revelasse. Ao contrário, é preciso dizer primeiramente o seguinte: se tivéssemos em cada parte nossa uma percepção sensível de natureza diferente, poderíamos perceber ora como um pássaro, ora como um verme de terra, ora como uma planta; ou, se um de nós percebesse uma excitação visual como vermelha, se outro a percebesse como azul ou se, para um terceiro, fosse uma excitação auditiva, ninguém diria que a natureza é regida por leis, mas contrariamente a conceber íamos somente como uma construção altamente subjetiva. Assim: o que é então para nós uma lei da natureza? Ela não nos é conhecida em si, mas apenas nos seus efeitos, ou seja, nas suas relações com outras leis da natureza que, por sua vez, somente são conhecidas enquanto relações. Portanto todas as relações nada fazem senão remeter-se umas às outras e nos são absolutamente incompreensíveis quanto à sua essência. Unicamente o que aí colocamos, o tempo e o espaço, quer dizer, as relações de sucessão e os números, nos é realmente conhecido. Mas tudo o que precisamente nos surpreende nas leis da natureza, que reclama nossa análise e que poderia nos levar à desconfiança do idealismo, reside de fato e unicamente no rigor matemático, unicamente na inviolabilidade das representa ções do tempo e do espaço, e não em outro lugar. Ora, produzimo-las em nós e projetamo-las fora de nós segundo a mesma necessidade que leva a abelha a tecer sua teia. Se somos obrigados a conceber todas as coisas apenas sob tais formas, então não há nada de admirável em captar sob estas mesmas formas o que verdadeiramente procuramos nas coisas. De fato, todas elas necessariamente se referem às leis do número, e o número é justamente o que há de mais surpreendente nas coisas. Toda presença das leis que se nos impõe sobre o curso dos astros e sobre os processos químicos coincide no fundo com aquelas propriedades que acrescentamos às coisas para assim darmo-nos respeito a nós mesmos. Disso resulta, sem dúvida nenhuma, que esta criação artística de metáforas que marca em nós a origem de toda percepção pressupõe já aquelas formas nas quais, por via de conseqüência, ela se efetua. É apenas a persistência invariável dessas formas originais que explica a possibilidade que permite assim construir um edifício conceitual apoiado novamente sobre as próprias metáforas. Este edifício é com efeito uma réplica das relações de tempo, espaço e número, reconstruído sobre a base das metáforas.


Friedrich Nietzsche. Disponível em http://portal.filosofia.pro.br/fotos/File/verdade.pdf