quinta-feira, setembro 16, 2021

"São Paulo - Sociedade Anônima", algumas considerações

 


“São Paulo, sociedade anônima”, obra de 1965, dirigido por Luís Sérgio Person, é um filme espetacular. Revela uma perspectiva filosófica que se desloca do local para o universal. A obra de Person procura colocar no centro de sua reflexão a figura de Carlos, um típico pequeno-burguês; o figurão típico da classe média. Carlos trabalha em uma montadora de automóveis. 

O diretor procura colocar em evidência o “boom” econômico alavancado pelo governo Juscelino Kubistchek, no final dos anos 50. A chegada de inúmeras multinacionais. O vertiginoso crescimento urbano de uma das maiores cidades do mundo. A selva de pedras de que é feita a cidade. O movimento frenético das avenidas. A paisagem de concreto que abunda por todos os lados. A amorfa massa de indivíduos que se desloca apressada.  

Apesar desse espaço moderno e veloz, essa sociedade enfrenta um mal-estar. No meio disso tudo se encontra Carlos: o sujeito de vida incerta, de relacionamentos incertos, de perspectivas incertas, de desejos incertos. A produção procura mostrar os dilemas éticos como, por exemplo, o empresário Arturo. Ele demonstra ser alguém disposto a conseguir seus objetivos, ultrapassando os limites éticos e jurídicos das relações: mentir despudoramente; contratar empregado de forma ilegal. Em suma: o filme procura abordar questões que, em um primeiro momento, parecem circunscritas a São Paulo. Todavia, são problemas universais do sujeito urbano, numa sociedade capitalista.

Person procurou filmar as imagens em locais abertos, criando uma experiência bastante realista. Ouvimos os sons, o movimento da cidade – os carros que passam, as pessoas que conversam. Apesar de ser uma obra de 1965, os elementos filosóficos e antropológicos continuam bastante atuais. 

sexta-feira, setembro 10, 2021

"Ressurreição - história e mito", de Geza Vermes. Algumas considerações

 


                Terminei a leitura de “Ressurreição – história e mito”, de Geza Vermes. Estudei teologia. É um assunto que surge, em alguns momentos, com certas nuances de interesse. Cursei  teologia reformada, conservadora, ciosa de certos pressupostos doutrinários; não capaz de relativizar conceitos por que calvinista. Todo aquele conjunto de elementos inegociáveis – soberania divina, as duas naturezas de Cristo, a ressurreição, a justificação pela fé; a predestinação e a eleição; a glorificação dos fiéis numa apoteótica segunda volta de Cristo. São temas caros e, portanto, basilares para os fiéis dessa religião. Aqueles que acreditam fazem disso um dos fundamentos da vida.

                Todavia, o conjunto dessas doutrinas é resultado de uma formação paulatina da Igreja. A consolidação desses entendimentos doutrinários passou por muitas disputas. Afinal, um conceito não resulta de uma consolidação estanque – ainda mais quando se trata de uma narrativa. Não coaduno mais com esse entendimento conservador, que sacraliza certas compreensões e as tornam inamovíveis. A religião é um fenômeno necessariamente humano. Religião é antropologia. É o resultado dos sonhos, dos anseios mais recônditos do ser humano. Ela foi criada para justificar certos elementos da realidade e que, sem ela, o ser humano teria dificuldades para lidar e aceitar. 

                O que convencionamos chamar de cristianismo não era o mesmo há dois mil anos. A história é construída por um constante jogo dialético. Os evangelhos, conforme os lemos, são bem distintos dos textos paulinos, pois estes são o resultado do entendimento, da sistematização daquilo que ele entendia ser o cerne dos ensinamentos de Jesus. É possível falar que aquilo que Jesus não disse foi consolidado por meio de uma interpretação. Paulo é um grande revisionista; um estruturador de fundamentos teológicos. Do mesmo modo, de acordo com o excelente livro de Geza Vermes, o conceito de ressurreição também levou tempo para ser uma doutrina plenamente aceitável dentro do judaísmo e, mais tarde, tornar-se um tema da teologia cristã.  

                Do ponto de vista histórico, o cristianismo é uma vertente religiosa derivada do judaísmo. Sendo assim, boa parte dos elementos estruturais do cristianismo foram herdados da religião dos judeus. Por exemplo, a divindade do chamado Antigo Testamento, Javé, é a mesma divindade do Novo Testamento. É o mesmo que profere uma sentença de aprovação à Jesus no ato do batismo, conforme Mateus 4. Alguns conceitos teológicos também foram herdados do judaísmo. A ideia de aliança é algo que perpassa todo o texto bíblico. O amor, a proteção, a predileção divina também é algo que faz parte desse conjunto.

                No Antigo Testamento, conforme diz Vermes, não se encontra a ideia de ressurreição como passou a ser acreditada no cristianismo. Paulo eleva esse entendimento, tornando esse um dos signos de sua pregação. Como teria ocorrido essa mudança de compreensão ao longo dos séculos? É sobre isso  que o autor procura discorrer ao longo de sua didática obra.

                Para ele, - e isso pode ser comprovado pela experiência -, a teologia existente no Antigo Testamento afirma que a vida no mundo físico é a única oportunidade que o fiel possui para se deleitar, para fruir, para se regozijar. O autor de Eclesiastes escreve: “Tudo quanto te vier à mão para fazer, faze-o conforme as tuas forças, porque na sepultura, para onde vais, não há obra nem projeto, nem conhecimento, nem sabedoria alguma”. (Ec 9.10). No livro de Jó, há ainda uma descrição mais dramática sobre esse silêncio a que todos os seres vivos serão submetidos após a morte. “Antes que eu vá para o lugar de que não voltarei, à terra da escuridão e da sombra da morte; Terra escuríssima, como a própria escuridão, terra de sombra da morte e sem ordem alguma, e onde a luz é como a escuridão”. (Jó 10.20-21). Esse lugar silencioso, escuro, fechado, recôndito, de onde nada emanava, tinha o nome de Xeol ou Sheol – em hebraico, “mundo” ou “morada dos mortos”. Nesse mundo não seria possível adorar a deus. Isso só se torna possível do lado de cá da existência (Sl 6.5).

                Segundo Geza Vermes a mudança de compreensão se deu por volta do segundo século antes de Cristo, no período Asmoneu com os Macabeus. Esse período foi marcado por uma forte resistência religiosa. As violações cometidas por Antíoco IV contra a fé dos judeus teria feito surgir uma quantidade enorme de pessoas dispostas a proteger as tradições da religião. Muitas pessoas teriam dado a própria vida para garantir a pureza da fé. Há relatos de que Antíoco IV tenha sacrificado uma porca no altar do templo sagrado dos judeus, algo que os ofendeu profundamente. Esse mesmo soberano da dinastia selêucida procurou helenizar à força a cidade de Jerusalém, instalando contra a vontade dos judeus, uma estátua de Zeus; além disso, proibiu o culto judeu e a circuncisão. Foi o suficiente para um movimento de resistência.

                Aqueles que resistiram, entregando a própria vida, precisavam de um prêmio. Não era justo para com eles a morte e o confinamento frio e eterno do Sheol. Vermes cita o esclarecedor texto do Testamento de Judá, escrito nesse período: “aqueles que foram mortos em nome do Senhor despertarão para a vida” (25.4). Percebe-se, claramente, uma mudança de compreensão. Do silêncio do Sheol, alguém poderia ressurgir. Era uma mudança radical de compreensão.

                Nos dias de Jesus, a ressurreição era uma doutrina digna de certas disputas. Os fariseus, por exemplo, (partido surgido à época dos Macabeus, diga-se de passagem), acreditavam que haveria ressurreição. Já os saduceus, constitutivos da elite sacerdotal, não acreditavam nessa doutrina. Todavia, há algo importante de ser observado. Os fariseus eram o grupo mais proeminente e com maior capilaridade na sociedade judaica da época. Eles possuíam um amplo grupo de adeptos. As doutrinas defendidas pelos fariseus tinham uma maior penetração social. Os grupos moderadamente abastados eram fariseus, o que dava a eles uma maior densidade, uma maior penetração em vários estratos da sociedade. Eram criadores de consenso.

                Os evangelhos são escritos posteriores à vida de Jesus. Foram escritos por pessoas que tinham o objetivo de provar que Jesus era o Cristo, o Messias. Sendo assim, há um esquema presente em todos: Jesus nasce miraculosamente, vive miraculosamente, morre; e ressuscita miraculosamente. Como diz Vermes, quando se ler atentamente os evangelhos é possível perceber que os apóstolos não tinham ideia do que aconteceria. Ou seja, não contavam com a morte de Jesus. O próprio Jesus se esforça o tempo todo para narrar com plena ênfase a chegada do reino de deus. Muitos dos seguidores de Jesus e – talvez o próprio Jesus - entendessem que não veriam a morte. O reino de deus havia chegado. Um exemplo disso está na passagem em que Jesus diz que “muitos não provariam a morte até que vissem o reino de deus” (Lc 9.27); ou na esclarecedora passagem: “Interrogado pelos fariseus sobre quando chegaria o Reino de Deus, respondeu-lhes: ‘A vinda do Reino de Deus não é observável. Não se poderia dizer: ‘Ei-lo aqui! Ei-lo ali!’, pois eis que o Reino de Deus está no meio de vós’” (Lc 17. 20-21). O “reino de deus” havia chegado; era uma realidade incontrastável. 

                Entre a sua chegada, o estabelecimento do reino de deus e o final dos tempos, havia o entendimento para o próprio Jesus, que não haveria morte. Tanto é assim, afirma Geza Vermes, que o ensinamento sobre a vida após a morte nos evangelhos é algo vago. A sentença que emula a doutrina evangélica é a chegada do reino de deus.

                Desse modo, a morte de Jesus foi um verdadeiro “balde de água fria” nas intenções dos seus seguidores. Aquilo os aturdiu profundamente. Ficaram confusos. Sem entender o evento. Alguns, talvez, até decepcionados. Afinal, Jesus havia feito a promessa de uma redenção, de uma transformação por meio da chegada de seu reino.  Os quatro evangelhos, de acordo com a redação encontrada na bíblia nos nossos dias, aparentemente, conservam uma narrativa coesa. Todavia, analisada em detalhes, deixam algumas pistas. Diz Vermes:

“O tema da ressurreição ganha importância através do tratamento de dois aspectos da vida de Jesus nos Evangelhos. Para servir às necessidades apologéticas da Igreja explicando a cruz e a subsequente ressuscitação do Messias, os evangelistas sentiram-se obrigados a inserir, nas suas narrativas da fase final da vide de Jesus predições reiteradas da sua morte e ressurreição iminentes. Essas profecias visavam, aparentemente, preparar seus companheiros mais próximos para a sua queda e exaltação imprevistas ao final de sua carreira. É óbvio que ao tentar relatar a ressurreição de Jesus os evangelistas enfrentaram uma laboriosa tarefa. Seus relatos exibem numerosas incoerências. Contudo, as sete ou oito décadas – entre 30 d.C. e 100-110 d.C., os anos que separam a morte de Jesus da conclusão do Evangelho de João – testemunharam uma certeza constantemente crescente na Igreja Primitiva quanto à ressurreição de Jesus e sua presença espiritual entre os seus seguidores”. (pp. 135,136)

                Sendo assim, a ressurreição é um tema que ganha relevância, pois a morte de Jesus quebrou o fluxo de expectativa dos seus seguidores. Os evangelhos procuram direcionar a narrativa, deixando a entender que aquilo estava no horizonte da pregação de Jesus. Todavia, as contradições internas atestam uma tentativa de inserção do tema. Há a busca de relacionar a morte de Jesus com predições do Antigo Testamento que se harmonizassem com a vida de Jesus. Um exemplo disso se encontra em Mateus 12.40. Nesta passagem Jesus faz supostamente uma analogia da sua morte com o fato do profeta Jonas ter ficado ‘três dias no ventre de um monstro marinho’. Do mesmo modo, ele ficaria três dias no ‘ventre da terra’, até ressurgir dos mortos.

                Como nos alega Vermes, essa afirmação possivelmente seja fruto de uma organização pessoal do escritor do Evangelho segundo Mateus. É a “laboriosa tarefa” de que fala o escritor. Diante do evento da morte de Jesus, foi necessário criar um enredo capaz de criar  esperança. A ressurreição não era o fim. Paulo, mais tarde, falaria que “Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram” (1 Co 15.20).

                Uma outra questão importante levantada por Vermes diz respeito a como cada evangelista narra o evento da ressurreição, o que atesta um desencontro de perspectivas. Ou seja, cada evangelista se muniu de material diverso. Isso gerou desencontros nos detalhes da suposta ressurreição.

 Mateus diz que Maria Madalena e a outra Maria foram ao túmulo, no primeiro dia da semana, e um anjo removeu a pedra e sentou-se sobre ela. O anjo possuía o brilho de um relâmpago. Os guardas tremeram de medo e ficaram como mortos. As mulheres são aconselhadas pelo anjo a contarem para os discípulos que Jesus havia ressuscitado e que iria para a Galileia. Jesus aparece para as mulheres e reitera o que havia sido anunciado pelo anjo. Os guardas são subornados pelas autoridades para não confessarem o que havia acontecido. Era preciso falar que os discípulos roubaram o corpo de Jesus enquanto os guardas dormiam. Na Galileia, Jesus se encontra com os onze discípulos. Anima-os e encoraja para que eles levem a mensagem ensinada até os confins do mundo. (Mt 28).

Em Marcos, diz-se que José de Arimatéia pediu o corpo de Jesus a Pôncio Pilatos (sic.). José tirou Cristo da cruz. Enrolou-o em um lençol e o pôs num túmulo que fora talhado na rocha. Em seguida, fechou a entrada do túmulo com uma pedra. Maria Madalena e Maria, mãe de Joset, observavam onde Ele (Jesus) fora posto. Tendo passado o sábado, elas voltaram para aplicar aromas ao corpo de Jesus. Afinal, os preparativos não foram feitos por causa do final da sexta-feira, quando foi morto, e o início do sábado. Elas especulavam entre si como removeriam a pedra.  Dessa vez, diferente de Mateus, havia pelo menos três mulheres – Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé. Em Mateus não consta, Salomé. Outro detalhe, de Mateus para Marcos é que, em Mateus, o anjo senta-se na pedra à entrada do túmulo; em Marcos, elas entram para o túmulo e encontram o anjo sentado. Nos manuscritos mais antigos, o capítulo 16 de Marcos termina abruptamente no versículo 8. Nota-se, quando se inicia o versículo 9, que o texto tenta retomar um assunto, mas há uma clara mudança no foco narrativo. É como se alguém tivesse pegado um texto inacabado e fizesse um fecho para delimitar o seu fim.

Nesse sentido, é preciso perceber que o enxerto insere outras aparições. A narrativa retilínea de Mateus é bem diferente do emaranhado de aparições de Marcos. Por exemplo, Mateus diz que ele reapareceu para os onze no alto de um morro. Em Marcos, Jesus se manifesta quando os discípulos estão á mesa. O texto chega ao seu cabo com a seguinte sentença: “Ora, o Senhor Jesus, depois de lhes ter falado, foi arrebatado ao céu e sentou-se à direita de Deus” (Mc 16.18). E diz o texto que eles saíram dali decididos a pregar.

Em Lucas, há um detalhamento maior. Enquanto Marcos é frugal com o seu texto, o autor de Lucas procura ser meticuloso. Repete alguns eventos encontrados nos dois textos. Fala de José de Arimatéia. Descreve a intervenção dele junto a Pilatos. O depósito do corpo de Cristo em um túmulo.  As mulheres que ficam observando à distância onde o corpo havia sido colocado. Quando elas voltam, encontram o túmulo aberto. E, dessa vez, não é mais um único anjo: são dois com vestes fulgurantes. Outra diferença é o nome daquelas que vão ao túmulo: Maria Madalena, Joana e Maria, mãe de Tiago. Novamente, não há referência a Salomé. Em compensação, surge alguém denominada de Joana. De acordo com Lucas, ainda havia outras mulheres. (Lc 24.10). Outro detalhe que exibe a contradição sobre o tema diz respeito ao modo como Jesus aparece para os onze. Após o episódio do caminho de Emaús, Jesus aparece para os onze, dessa vez, em Jerusalém. Em Mateus e Marcos, afirma-se que esse encontro se deu na Galiléia. (lC.24.33-36). Em Marcos, é dito que a ascensão de Jesus se deu forma abrupta, quando eles estavam comendo. Em Lucas, os discípulos vão com Jesus até Betânia. E nessa localidade, Jesus foi “elevado ao céu”.

                Em João, a figura de José de Arimatéia reaparece, acompanhado, dessa vez, por Nicodemos. Observa-se que os preparativos para o sepultamento acontecem ainda na sexta-feira. Segundo narra o autor de João, Jesus foi colocado em uma espécie de jardim, em um sepulcro novo. João insere outros elementos, o que sugere que houve uma tentativa por parte dos evangelistas de criar uma narrativa que correspondesse à nova situação que se estabelecera, a saber, a morte de Jesus. Diz João que Maria Madalena foi sozinha ao túmulo (sic). Tendo chegado lá e percebido que o túmulo estava aberto e vazio, voltou e foi avisar a Simão, ou seja, a Pedro, e, possivelmente, a João, o discípulo que Jesus amava. Os dois correram até o túmulo e comprovaram aquilo que havia sido dito por Maria.

                Maria fica – sozinha – chorando “junto ao sepulcro”, “de fora”. E aparecem dois anjos. Mas, junto com os anjos, Jesus também aparece para ela. Ela não o reconhece. Após tê-lo confundido com um jardineiro, ela o identifica. Ele pede para que ela vá contar a novidade aos discípulos. Estando todos trancafiados, ele aparece no meio deles. Apresenta-se e sopra sobre eles o espírito santo. Nesse ponto, há uma divergência para os escritos de Lucas – o evangelho e Atos dos Apóstolos -, pois nos dois textos eles são aconselhados a ficarem em Jerusalém até que do alto fossem revestidos de poder. Oito dias depois, estando os discípulos juntos, ele reaparece – aparentemente – para dar uma prova de vida a Tomé. João termina dizendo que Jesus fez inúmeros outros prodígios que não estão escritos no seu texto. Na parte final, há uma espécie de epílogo. Funciona como se fosse um evento deslocado do texto principal, mas que traz algumas informações curiosas. O fato que chama a atenção é a pescaria frustrada de alguns discípulos. Jesus faz um outro milagre: o milagre da pesca abundante. Pedro e os seus companheiros recolhem 153 peixes grandes. Diz João que essa foi a terceira vez que ele apareceu para os discípulos, depois que havia ressuscitado dos mortos. Há uma série de falas repletas de um mistério que se projeta de forma aleatória. E o texto de João termina dizendo que Jesus realizou tantas ações que, se elas fossem descritas, não caberiam nos livros do mundo.

                Em Atos dos apóstolos, o autor – supostamente Lucas – diz que Jesus ficou com os discípulos durante quarenta dias. Jesus diz, “no decurso de uma refeição”, que eles deveriam permanecer em Jerusalém. Nota-se que diferente de João, eles ainda receberiam o espírito santo. De repente, o texto afirma de maneira estranha que ele “foi elevado à vista deles, e uma nuvem o ocultou a seus olhos”. Todavia, a continuidade do texto nos faz crer que eles estavam “no monte chamado das Oliveiras”. Nota-se que aqui já é o terceiro lugar de onde se fala que Jesus estava ou ascendeu aos céus – Galiléia, Betânia e Monte das Oliveiras.  Essas evidências contrastantes atestam aquilo que Vermes afirma sobre a tarefa que os discípulos tiveram a fim de criar um “esquema” capaz de dar significado à ressurreição. Era preciso tornar crível a existência de Jesus como o Messias; que sua mensagem não fracassou com a morte. A ressurreição de Jesus se tornou um emblema poderoso. É a esperança daqueles que nele esperam.

                No final do livro de Vermes, há uma referência a uma expressão usada pelo teólogo alemão Rudolf Butmann. Segundo ele, “o túmulo vazio é uma lenda apologética”. Sim. Lenda, pois passou a fazer do imaginário e dos desejos extraordinários dos discípulos. E “apologética”, pois se transformou em uma sentença teológica fundamental para o cristianismo. Na verdade, é uma marca dessa religião. Não há como dissociar esse elemento da fé. Excelente livro! Enriqueceu a minha percepção sobre esse aspecto mitológico da fé cristã.  

domingo, setembro 05, 2021

"A doce vida", de Federico Fellini


“A Doce Vida” é uma produção cinematográfica do ano de 1960, dirigida por Federico Fellini. É uma obra cuja atualidade e a reflexão atordoante impressionam. A inescapável trilha sonora – presente como um personagem – é de Nino Rota. O filme (que possui aproximadamente três horas) é um teste denso de paciência para o espectador, porquanto somos lançados em um labirinto de vaidades. Vi-o lentamente, em vários momentos. A genialidade de Fellini se derrama pela obra. 

A produção em preto em branco esbanja beleza. As personagens são bonitas. Jovens. Ricas. Saudáveis; no vigor da potência sexual. Estamos na Via Veneto. Há festas badaladas. Extravagâncias. Exotismos. Marcello, o personagem principal da obra, vive de evento em evento; é um jornalista que cobre esses acontecimentos faustosos da sociedade italiana. É um homem de singular beleza. Mete-se em vários namoricos dispersivos. Esses relacionamentos voláteis são desfeitos com bastante pressa. 

A cena tórrida de Marcello Mastroianni com Anita Ekberg, na Fontana de Trevi

Há fotógrafos para todos os lados – os paparazzis – dispostos a registrarem o próximo “furo” sobre celebridades ou, quem sabe, um escândalo que alimentará o “mainstream” ou público sedento por novidades. É visível que a obra está permeada por um pessimismo, por um niilismo. Aquelas fatuidades não levam a lugar nenhum. Geram apenas vazio. O filme é uma crítica mordaz à sociedade do espetáculo. É imensamente atual, pois, em tempos de Instagram e de outras redes sociais, cada sujeito constrói a noção equivocada de que ele é o centro de um espetáculo. 

Dentro de um microcosmo construído por uma teia tênue, há a necessidade das “curtidas” para que esse gatilho gere prazer. A expressão “La dolce vida” é uma metáfora do prazer superficial, repleto de um charme fugidio. E, nesse sentido, é uma metáfora que explica as sensações geradas por uma sociedade que vive em torno da imagem e que se alimenta das impressões causadas por ela. “Doce”, mas de final amargo.