terça-feira, novembro 23, 2021

"Marafa", de Marques Rebelo

 

       

                Marafa designa, de acordo com certo dicionário, “vida libertina”, “devassa”; dessa forma, aponta para certo modo de ser. É uma palavra de origem africana. Dizer aquilo é uma marafa significa, entre outras coisas, afirmar que algo é libertino, imoral, obsceno, carnal.

            Pois justamente esse é o nome que o escritor modernista Marques Rebelo deu ao seu primeiro romance, escrito no agitado ano de 1935. Rebelo pertence àquela geração de escritores que tomaram de assalto a literatura brasileira na segunda geração modernista. Seu nome de nascimento Eddy Dias da Cruz. Como se pode ver, Rebelo é um nome artístico. Carioca de nascimento, Rebelo chegou a ingressar na Academia Brasileira de Letras – 1965 a 1973. Ainda muito cedo mudou para Barbacena em Minas Gerais. Foi nessa localidade que realizou as primeiras leituras.

            De volta ao Rio de janeiro, Rebelo ainda adolescente toma conhecimento da literatura de Machado de Assis e Manuel Antônio de Almeida, dois dos nomes que marcariam o seu estilo definitivamente. Excursiona pela medicina e pelo direito, formando-se neste último. Como era comum entre os intelectuais da época, exerce o jornalismo.

            O que deve ser afirmado sobre o escritor nessa breve e magra apresentação é que Rebelo apesar de ter conhecido os grandes nomes da literatura da época – Cyro dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, Jorge Amado – não se fiou pelas inovações advindas da Semana de Arte de 1922. O escritor é um continuador da tradição legada por Machado de Assis. Seu texto guia-se pelo estilo claro, musical. Dir-se-ia de que se trata de uma fusão de Machado de Assis com Lima Barreto – Machado pelo estilo; Lima pelos temas que emanam dos seus textos muito bem escritos.

            Rebelo procura os motivos de sua literatura nos subúrbios. Na vida marginalizada. Junto àquelas que fazem acrobacias para conseguir um lugar ao sol. Rebelo escreve uma crônica da vida que surge da mixórdia de eventos da vida pequeno-burguesa. Insere-se nos becos. Na vida malandra dos personagens que se utilizam de estratagemas, da confusão, da malandragem, da esperteza, do rústico. Em Marafa encontramos uma fauna diversa no meio da polifonia do caos da metrópole. Essa passagem do livro é expressiva por ilustrar a obra, fornecer um rico panorama a respeito da obra e da literatura do próprio Rebelo: "Mendigos estendem as mãos imundas, mostrando chagas, andrajos e deformidades. Mendigas dão maminhas mirradas a esqueletos de crianças. Inválidos, cegos, aleijados, portadores de elefantíase, suspeitas caras de leprosos, há mendigos nas esquinas, nas soleiras, no portão dos cemitérios, nos degraus das igrejas, à porta dos restaurantes, dormindo no sopé das estátuas e nos bancos das praças. Há tantos mendigos e falsos mendigos como há pardais. E há a Comissão de Turismo, convidando o mundo, com maus cartazes, para conhecer as belezas naturais da capital maravilhosa."

            O carioca é um dos grandes escritores brasileiros responsáveis pela análise afiada da vida urbana e de suas contradições, sua monotonia, sua tristeza, seu desejo de acerto, sua tragédia. As personagens são metáforas andantes de uma vida que não se resigna com as condições opressoras das estruturas sociais; são sujeitos que se esgueiram agilmente nas sombras do andar de baixo da escadaria da sociedade de classes. É isso que testemunhamos em Marafa.

            A história possui dois personagens nucleares – José e Teixeirinha. O primeiro é um disciplinado rapaz, dono de uma personalidade que procura sempre acertar. Trabalhador. Cioso por fazer as coisas de maneira correta. Um excelente filho. Apaixonado. Desejoso de casar. Formar uma família. Já o segundo é o modelo do malandro. Vive de pequenos golpes. Acumula passagens pela polícia. Explora prostitutas. Vive nas sombras, esgueirando-se de credores.

            Como não poderia deixar de ser, esses seres ambivalentes acabam se cruzando, o que acaba perpetrando a tragédia. Há ainda outros personagens no livro, que funcionam como satélites. Um desses casos é o irmão de José, um estudante de medicina com uma vocação pela ambição. Apaixona-se pela noiva do irmão. Pressiona-a. Comete um aliciamento, capaz de provocar pânico e desespero na moça, que não arregimenta a coragem necessária para contar para o noivo o acontecido.

            Confesso que, inicialmente, comecei a leitura com máxima desconfiança. No início, a história se mostra pouco convidativa. A não convencionalidade do tema provocou um certo estranhamento, mas, aos poucos, somos conduzidos àquele mundo suburbano, repleto de poças de lama; repleto de cheiros acres, de energias soturnas. A literatura de Rebelo possui o gosto da noite. Após o término da leitura, fica a impressão de que atravessamos uma paisagem noturna, repleta de umidade espessa e ela acabou por aderir à nossa pele.

            Mais uma leitura concluída. Vamos ao conflito de Jorge de Lima, pois haverá “A guerra dentro do beco”.