Marafa designa, de acordo com certo
dicionário, “vida libertina”, “devassa”; dessa forma, aponta para certo modo de
ser. É uma palavra de origem africana. Dizer aquilo é uma marafa significa, entre outras coisas, afirmar que algo é
libertino, imoral, obsceno, carnal.
Pois
justamente esse é o nome que o escritor modernista Marques Rebelo deu ao seu
primeiro romance, escrito no agitado ano de 1935. Rebelo pertence àquela
geração de escritores que tomaram de assalto a literatura brasileira na segunda
geração modernista. Seu nome de nascimento Eddy Dias da Cruz. Como se pode ver,
Rebelo é um nome artístico. Carioca de nascimento, Rebelo chegou a ingressar na
Academia Brasileira de Letras – 1965 a 1973. Ainda muito cedo mudou para
Barbacena em Minas Gerais. Foi nessa localidade que realizou as primeiras
leituras.
De
volta ao Rio de janeiro, Rebelo ainda adolescente toma conhecimento da
literatura de Machado de Assis e Manuel Antônio de Almeida, dois dos nomes que
marcariam o seu estilo definitivamente. Excursiona pela medicina e pelo
direito, formando-se neste último. Como era comum entre os intelectuais da
época, exerce o jornalismo.
O
que deve ser afirmado sobre o escritor nessa breve e magra apresentação é que
Rebelo apesar de ter conhecido os grandes nomes da literatura da época – Cyro dos
Anjos, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, Jorge Amado – não se fiou
pelas inovações advindas da Semana de Arte de 1922. O escritor é um continuador
da tradição legada por Machado de Assis. Seu texto guia-se pelo estilo claro, musical.
Dir-se-ia de que se trata de uma fusão de Machado de Assis com Lima Barreto –
Machado pelo estilo; Lima pelos temas que emanam dos seus textos muito bem
escritos.
Rebelo
procura os motivos de sua literatura nos subúrbios. Na vida marginalizada.
Junto àquelas que fazem acrobacias para conseguir um lugar ao sol. Rebelo
escreve uma crônica da vida que surge da mixórdia de eventos da vida
pequeno-burguesa. Insere-se nos becos. Na vida malandra dos personagens que se
utilizam de estratagemas, da confusão, da malandragem, da esperteza, do
rústico. Em Marafa encontramos uma
fauna diversa no meio da polifonia do caos da metrópole. Essa passagem do livro
é expressiva por ilustrar a obra, fornecer um rico panorama a respeito da obra
e da literatura do próprio Rebelo: "Mendigos estendem as mãos imundas,
mostrando chagas, andrajos e deformidades. Mendigas dão maminhas mirradas a
esqueletos de crianças. Inválidos, cegos, aleijados, portadores de elefantíase,
suspeitas caras de leprosos, há mendigos nas esquinas, nas soleiras, no portão
dos cemitérios, nos degraus das igrejas, à porta dos restaurantes, dormindo no
sopé das estátuas e nos bancos das praças. Há tantos mendigos e falsos mendigos
como há pardais. E há a Comissão de Turismo, convidando o mundo, com maus
cartazes, para conhecer as belezas naturais da capital maravilhosa."
O
carioca é um dos grandes escritores brasileiros responsáveis pela análise
afiada da vida urbana e de suas contradições, sua monotonia, sua tristeza, seu
desejo de acerto, sua tragédia. As personagens são metáforas andantes de uma
vida que não se resigna com as condições opressoras das estruturas sociais; são
sujeitos que se esgueiram agilmente nas sombras do andar de baixo da escadaria
da sociedade de classes. É isso que testemunhamos em Marafa.
A
história possui dois personagens nucleares – José e Teixeirinha. O primeiro é
um disciplinado rapaz, dono de uma personalidade que procura sempre acertar.
Trabalhador. Cioso por fazer as coisas de maneira correta. Um excelente filho.
Apaixonado. Desejoso de casar. Formar uma família. Já o segundo é o modelo do
malandro. Vive de pequenos golpes. Acumula passagens pela polícia. Explora
prostitutas. Vive nas sombras, esgueirando-se de credores.
Como
não poderia deixar de ser, esses seres ambivalentes acabam se cruzando, o que
acaba perpetrando a tragédia. Há ainda outros personagens no livro, que
funcionam como satélites. Um desses casos é o irmão de José, um estudante de
medicina com uma vocação pela ambição. Apaixona-se pela noiva do irmão.
Pressiona-a. Comete um aliciamento, capaz de provocar pânico e desespero na
moça, que não arregimenta a coragem necessária para contar para o noivo o
acontecido.
Confesso
que, inicialmente, comecei a leitura com máxima desconfiança. No início, a
história se mostra pouco convidativa. A não convencionalidade do tema provocou
um certo estranhamento, mas, aos poucos, somos conduzidos àquele mundo suburbano,
repleto de poças de lama; repleto de cheiros acres, de energias soturnas. A
literatura de Rebelo possui o gosto da noite. Após o término da leitura, fica a
impressão de que atravessamos uma paisagem noturna, repleta de umidade espessa
e ela acabou por aderir à nossa pele.
Mais
uma leitura concluída. Vamos ao conflito de Jorge de Lima, pois haverá “A
guerra dentro do beco”.
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