sexta-feira, junho 17, 2016

"Corpos Divinos", de Guillhermo Cabrera Infante - algumas parcas palavras

"Sempre há um lapso entre a literatura e a vida e, por mais que a gente queira fechá-lo, a vida acaba ganhando, já que ela é a melhor depositária de histórias", p. 456

Terminei a leitura do delicioso Corpos Divinos, de Guillhermo Cabrera Infante, o escritor cubano, que mais tarde recebeu cidadania britânica, após ter rompido com o regime do seu país de nascimento. O livro é volumoso. Possui próximo de 618 páginas. Todavia, sua leitura flui com grande sinuosidade. Cabrera Infante escreveu-o em uma atividade de mais de quarenta anos. Tendo iniciado a escrita na década de sessenta, veio concluí-lo próximo de sua morte em 2005.

A história se passa num lapso temporal de três anos aproximadamente. No que concerne a isso, impressiona o nível de detalhamento dos acontecimentos narrados. As pessoas são reais. Os nomes são reais. Os lugares são reais. O suor e o cheiro dos corpos são reais. Numa Cuba pré-revolucionária, Infante pinta um quadro com cores vivas. A obra  pode ser dividida basicamente em quatro seções, embora não haja essa separação no livro - os romances, vida familiar, acontecimentos variados e a parte política, como não deveria deixar de ser.

Acerca dos romances, que estão necessariamente vinculados à vida noturna de Havana - e sendo, portanto, a melhor do livro -, o texto ocupa a maior parte, sendo as 150 páginas as mais bem escritas do livro. São inúmeros os nomes das mulheres que surgem na vida de Infante. Ele se revela uma espécie de minotauro romântico, sempre à cata de uma nova emoção, ou simplesmente, à procura de "um corpo divino". A primeira que surge é Elena, uma ninfeta, uma lolita de dezesseis que, como li a respeito, inspirou a escrita do seu romance A ninfa inconstante (já está separado para ser lido). Há outros nomes como, por exemplo, Ella, que seria uma paixão para a vida toda. É curioso perceber como Infante se esgueira pelos cafés de Havana. Pelos bares. Sentimos a temperatura, os anseios de seu nomadismo licencioso. Com o seu instinto felino, notamos os seus esgueiramentos pelas ruas com luminosidade penumbrosa.

Cabrera Infante e sua babel literária
Por outro lado, sua esposa Mirta sofre as intempéries das aventuras extraconjugais do marido. No livro, ela é uma personagem obumbrada. Não se nota uma preocupação do romancista em descrever-lhe as qualidades, as virtudes. Um dos casos em que vemos Mirta sofrer se dá quando Infante vai morar com Elena em um motel.

O livro ainda é povoado pela presença de Ernest Hemingway. É picaresca a imagem que o autor de Três tigres tristes constrói sobre o Nobel de Literatura. Nas páginas que são dedicadas a falar de Hemingway, Cabrera Infante descreve um sujeito pachorrento e misantropo. Descrito com pincéis histriônicos é o evento de filmagem de O velho e o mar, um dos livros mais importantes de Hemingway, nas águas de cor turquesa do Caribe. 

Sua predileção pelo jazz é outro ponto que deve ser mencionado. Por ser apaixonado por este estilo, ficava atento aos novos lançamentos do mundo do jazz. Uma de suas frases mais enigmáticas do livro é sobre esse estilo imortal. É algo como: 'o jazz oferece uma continuação entre a tristeza e alegria de viver'. 

Na última parte do livro, Cabrera limita-se a falar sobre as mudanças políticas vividas em Cuba. A presença de Fidel Castro e do comandante Guevara. As notícias da Sierra Maestra. A presença despótica do odiado Fulgêncio Bastista, o ditador sanguinário. Após a fuga de Batista, Cabrera Infante assume posições no Governo Revolucionário. E foi como jornalista, nas páginas finais do livro, que ele narra a viagem feita para acompanhar Fidel aos Estados Unidos, Canadá, Trinidad e Tobago, Brasil, Argentina e Uruguai. Para o Brasil, são reservadas uma dezena de páginas. Infante narra a sua estadia em São Paulo e Rio Janeiro; e sua visita a recém criada Brasília de JK.

O livro é esplêndido. O estilo de Infante é enfeitiçador. É escrito com objetividade jornalística e com uma preocupação em contar de tal forma, que a história contada assuma cintilações anedóticas. É como se mais tarde, ele ao se lembrar dos fatos, se pusesse a ri, pois era sabedor que a vida é uma fiel depositária de histórias e, a literatura, uma extensão da própria vida.