sábado, dezembro 31, 2022

Balanço cinematográfico de 2022

Ao longo do ano de 2022, estabeleci a meta audaciosa de assistir a 70 filmes. Não é uma quantidade absurda. Facilmente poderia ter sido vencida. Mas não consegui. Cheguei ao 62 filmes. Uma quantidade - pelo menos - razoável.

O que me anima é que consegui ver todos os doze - um por mês - filmes do mestre Akira Kurosawa aos quais havia proposto a mim mesmo. Vistos foram 15 no total. Após essa experiência, coloca o diretor japonês como um dos gênios da história da humanidade. Kurosawa é o mais ocidental dos diretores orientais. Um mestre em todos os sentidos. Ele conseguiu por meio de experimentos e inovações técnicas criar uma série de discípulos que vão de Sergio Leone a George Lucas. 

Fiz uma pequena lista - pessoal - com os 10 melhores filmes de Kurosawa vistos ao longo de 2022. 

1 - Trono manchado de sangue (1957)

2 - Ran (1985)

3 - A fortaleza escondida (1958)

4 - Kagemusha, a sombra do samurai (1980)

5 - Viver (1952)

6 - Sonhos (1990)

7 - Escândalo (1950)

8 - Rapsódia em agosto (1991)

9 - Sanjuro (1962)

10 - O barba ruiva (1965)

segunda-feira, dezembro 12, 2022

"Capitães de Areia": algumas palavras

            

Jorge Amado é um dos escritores brasileiros que menos li e que mais eu preciso ler. Com este livro sobre o qual escrevo, é a terceira leitura. Sua vasta obra, repleta de paisagens diversas é um importante afresco sobre uma dimensão do Brasil a partir da Bahia. A ideia daqui para frente é visitar uma obra por ano do autor de “Cacau”, “Mar Morto”, “Suor”, entre tantas outras obras que criaram uma espécie de deslumbrante painel sobre o fascinante povo baiano.

O livro da vez foi “Capitães de Areia”, de 1937. Trata-se de um romance, cujo narrador onisciente nos apresenta um grupo de garotos desamparados. Moradores de um trapiche, próximo a uma praia, o bando sobrevive afoitamente, cometendo pequenos furtos e desafiando as autoridades da capital baiana.

O grupo é chefiado por Pedro Bala, um órfão que lidera o grupo formado por uma dezena de meninos abandonados – há um leitor, um malandro que conquista prostitutas; há o beato, o desejoso pelo cangaço; um coxo, alma mais amarga e vingativa do grupo. Na parte dois da obra, aparece a figura de Dora, uma menina órfã de mãe, que fora vitimada pela bexiga. Inicialmente, há uma hostilidade contra ela, mas, depois, ela passa a ser benquista pelo bando. A adolescente passa a exercer o papel arquetípico da mãe que eles não possuem. Ela é o lado terno, feminino, capaz de mudar o ambiente. Dora inicia um romance com o chefe do grupo, consolidando um relacionamento entre aquele que chefiava os garotos – e a única mulher da comunidade –, um tipo de mãe.

Cena do filme "Capitães de Areia", de Cecília Amado

A obra faz parte da chamada 2ª geração modernista. Está inscrita no romance de 30. Reverbera nela uma forte crítica social. Vale mencionar que o chamado Romance de 30, mobilizou escritores para refletir a respeito de um país que passava por enormes mudanças. Logo após o fim da República Velha (1889-1930), o país inicia um outro período com mudanças políticas, econômicas e sociais. O outrora país agrário e refém das oligarquias regionais – vale mencionar os casos de São Paulo e Minas Gerais que, durante a Primeira República, revezavam-se na escolha dos presidentes do país, naquilo que ficou conhecido como a República do Café com Leite – começa a se industrializar. Novos atores políticos
emergem. O eixo do poder se consolida no Centro-Sul. Getúlio Vargas passará a ser o principal nome da política nacional nos próximos vinte anos.

Mesmo em face dessas transformações, nota-se o quanto o Brasil continuava atrasado em relação às grandes economias capitalistas. Jorge Amado, um baiano, filho de uma tradicional família do estado, entra no debate político, que demonstra de forma realista as chagas sociais de um país que precisa superar os seus problemas; iniciar um novo ciclo; superar os antagonismos.

Amado é o primeiro escritor a dar visibilidade ao papel de jovens adolescentes malandros. Havia um consenso que buscava enquadrar esses jovens como bandidos e marginais desocupados. Isso fica provado em dois momentos do romance: (1) na reportagem que surge no início da obra, trazendo as escusas do diretor do reformatório, defendendo-se das acusações de maus-tratos contra jovens institucionalizados; (2) quando Pedro Bala é apreendido e experimenta a tortura na própria pele numa instituição para menores.

Nota-se, assim, o olhar benevolente e generoso de Amado para a condição desses jovens. Sua tese era a de que garotos eram obrigados a praticar pequenas infrações pelo fato de não possuírem uma estrutura familiar favorável e o Estado não assumir o seu devido papel ante tão grande calamidade. Durante o Estado Novo, período conhecido como a Ditadura de Vargas (1937-1946), mais de 800 exemplares da obra foram queimados em praça pública. Observa-se que a mensagem da obra atingiu em cheio o poder oficial. Aqueles que controlavam o Estado entenderam a poderosa crítica escrita por Jorge Amado.

Jorge Amado


O escritor procura humanizar os garotos desumanizados por suas histórias de vida. Um exemplo é a personagem Sem-Perna. Após ter se inserido em uma família com o objetivo determinado de roubar, fica balançado entre a opção de cumprir as demandas do grupo e ceder aos afetos recebidos pela família que o acolheu. Nota-se, assim, que a principal carência dos meninos era de aceitação e afeto. Para que aquele bando de malandros juvenis pudesse abandonar aquele ciclo de contravenções, era necessário que tivessem algumas de suas carências preenchidas. Apesar da brutalização, da vida clandestina, há a clara tese de que o afeto, a necessidade de um lar, de uma vida segura e com as necessidades primárias atendidas, é um imperativo para todas as pessoas.

O livro possui uma mensagem atemporal. Passados mais de 80 anos da escrita, o país avançou em algumas questões, mas não entendeu a necessidade de proteger integralmente os direitos de crianças e adolescentes. Ainda vigora uma noção punitivista a respeito dos jovens que cometem ilícitos; uma defesa intransigente por certa porção da população brasileira que desconhece a realidade de milhões de brasileiros e brasileiras pobres que vivem nas periferias do país. O combate que evita o cometimento desses atos não é a repressão, mas a existência de políticas públicas que garantam os direitos sociais às famílias mais pobres. Certamente, foi essa a mensagem que atravessa o tempo deixada por Jorge Amado.

sábado, dezembro 10, 2022

Um comentário sobre a Bíblia

                          

Hoje, enquanto ziguezagueava pelo Facebook, encontrei uma reportagem da BBC Brasil a respeito do dilúvio contadopela Epopeia de Gilgamesh, um fascinante relato sobre como se deu a luta entre homens e deuses nos primórdios dos tempos. A reportagem chamava a atenção para o fato de que, a Epopeia que é muito mais antiga que os relatos bíblicos, já descrevia a existência de um dilúvio com características bem próximas daquelas aludidas no texto bíblico do Gênesis.

Li certos comentários – poucos. Alguns que questionavam a autoridade da Bíblia; já, outros, enaltecian sua suposta grandiosidade. Vivendo em um país cristão e, deveras, religioso, é algo natural que se faça uma defesa apaixonada de suas prerrogativas. Também deixei um comentário. Ei-lo abaixo:


A Bíblia é a experiência religiosa de um povo, no caso, os judeus, que foi transformada em registro sagrado. O que há na Bíblia é antropologia. É o desejo do homem em alcançar a eternidade. É a fé erguida por meio da linguagem. Boa parte dos escritos bíblicos está eivado de relatos mitológicos, principalmente, certos trechos do Antigo Testamento. Dizer que a Bíblia foi escrita por mais de 40 escritores diferentes; que os relatos compreendem mais de 3 mil anos; que ela mudou gerações, civilizações, não quer dizer nada. Na Índia, o Bhagavad Gita também tem mudado gerações; o Alcorão, também, tem feito isso no mundo islâmico. O cristianismo se tornou uma religião hegemônica no Ocidente. Durante muito tempo, nascer no Ocidente era automaticamente se tornar um seguidor de Jesus nos seus mais variados eixos - católico, protestante, ortodoxo etc. Quem não o fizesse era perseguido sob o risco de perder a própria vida; ou pagava duramente com o ostracismo social e político.

Os judeus, um dos povos mais fracos da Antiguidade, que não tinham nada de mais a oferecer; que não possuíam um exército forte; que não manobravam em rotas comerciais pelo Mediterrâneo à semelhança dos fenícios, foi dono de uma das maiores estratégias da história da humanidade: que foi fundação de uma religião nacional monoteísta sob a égide de Javé. Daí pra frente, nós conhecemos o resultado. Dizer que a Bíblia transforma as pessoas que são expostas a ela também não quer dizer nada. Como um livro compilado por uma série de eventos, o principal ator nas suas páginas é o ser humano com todas as suas fragilidades e fragmentações, diante do desejo, do medo, da angústia, diante do numinoso, como diria Rudolf Otto.

P.S. Além disso, encontrei esse vídeo entusiasmante e esclarecedor no Facebook sobre a famosa Epopeia e sua relação com a Bíblia.

terça-feira, dezembro 06, 2022

"O Barba Ruiva", de Akira Kurosawa


Domingo, tive o privilégio de assisti ao longa “Barba Ruiva”, de Akira Kurosawa, de 1965. Após ter iniciado em três outras ocasiões – mas sem sucesso -, à tarde, demorei-me por um bom tempo no sofá, acompanhando a bela e delicada obra do mestre japonês. É um trabalho lento, sinuoso, que aposta em planos escuros. Uma fotografia bela e digna de Kuroswa. Exige-se atenção para que se consiga acompanhar os diálogos nas mais de três horas do filme.

No Japão do século XIX, um jovem e ambicioso e altivo médico recém-formado, procura trabalhar para um “shogum”. Isso permitiria tranquilidade e uma possibilidade de ascensão na carreira. Todavia, acaba sendo designado a desenvolver as suas atividades em uma aldeia, num hospital que atende pessoas pobres, exposto às experiências mais dramáticas e desafiadoras. Neste hospital, ele vai trabalhar sob a supervisão do doutor Niide (Toshiro Mifune), conhecido pela alcunha de “barba ruiva”. O médico é respeitado pela firmeza moral e pela postura humanista. Niide procura mostrar ao jovem médico que por trás de todo paciente existe um ser humano, alguém que precisa ser atendido com desprendimento, com carinho, com os rigores de uma solicitude que suprime o preconceito e a indiferença. O filme deveria ser obrigatório para todos aqueles que desempenham uma função de atendimento ao público, principalmente médicos.

“Akahige” (em japonês) é uma obra que aponta para uma crença profunda na humanidade. É o sensível olhar do diretor para a fragilidade da vida; e como ela não pode ser colocada em um segundo plano. A vida é um exercício que desenvolvemos e que, só passa a ter sentido, quando a realizamos com altruísmo e simpatia.

“Barba Ruiva” é a última obra que Kurosawa realizou ao lado do genial ator Toshiro Mifune. O filme demorou dois anos para ficar pronto. Kurosawa levou a paroxismos a dimensão dos detalhes. Prendeu Mifune em um contrato, que não permitia que o ator realizasse outros trabalhos. Isso acabou por gerar contendas recíprocas. Ao final, os dois cindiram as relações. Não mais trabalhariam juntos. Uma perda irreparável.