segunda-feira, outubro 31, 2022

Jair, o homem pequeno


Segundo reportagem da Folha de São Paulo, Jair Bolsonaro foi dormir cedo após saber que havia sido derrotado nas urnas. As luzes do Palácio da Alvorada apagaram por volta das 22h06. Uma clara metáfora de um dos governos mais ineptos da história da República. Assessores e membros do Governo tentaram dialogar com o presidente. A imprensa queria ouvir as suas palavras. Um único pronunciamento que fosse de reconhecimento da vitória de Lula. Todavia, “o imbrochável” não demonstrou grandeza nem quando perdeu. Esquivou-se em um aceno de orgulho e covardia.

A reportagem da Folha ainda afirma que ele esteve a maior parte do dia com o filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro, implicado no esquema das rachadinhas. Como deve ter estado o seu humor? Como terá falado com a Michelle? Diz um dos capítulos da história que Nero, após ter ateado fogo em Roma, ficou do alto do seu palácio tangendo uma harpa, enquanto a cidade pegava fogo. Após o episódio, dirigiu a culpa do evento aos cristãos. Bolsonaro ateou fogo no Brasil nos últimos quatro anos (outra metáfora) e, à semelhança de Nero, não se responsabilizou. A diferença entre os dois é que Bolsonaro nem para tanger harpas possui talento. É medíocre. É pequeno. A única habilidade da qual é detentor é a da ignomínia.

Muita gente sofreu nos últimos quatro anos. Se ele não foi responsável direto pela pandemia, deve ser imputada a ele a negligência e o desdém com que a tratou. 400 mil vidas poderiam ter sido salvas. Famílias sofreram seus dramas. Como no episódio bíblico dos hebreus no Egito, o anjo da morte visitou milhares de lares brasileiros. A vacina era “o sangue” que deveria nos proteger. Ele não o fez. Retardou o quanto pôde a aquisição. Como o faraó do texto bíblico, riu, escarneceu. Imitou as pessoas que morriam sem ar. À semelhança dos mágicos que buscavam imitar o que estava acontecendo no Egito por meio de ilusionismos para impressionar o faraó, alguns médicos desonestos indicaram remédio sem nenhuma comprovação científica.

Mesmo com alguns desses absurdos, recebeu mais de 50 milhões de votos. Algo que impressiona. Quando votaram em Bolsonaro, em quê essas pessoas estavam votando? Qual a mensagem que fica, mesmo tendo experimentado o que experimentaram nos últimos quatro anos?

Recolheu-se no Palácio. Apagou as luzes o homem pequeno. Talvez, tenha ficado em posição fetal. Talvez, nem tenha conseguido dormir. Como estava o seu humor? Como uma criança mimada, talvez tenha ficado emburrado. Tenha se enchido de melindres. Culpado os outros. E, certamente, não reconhecerá os próprios erros. Não fará uma “mea culpa”. Afinal, o que se faz quando não se sabe tanger uma harpa?

domingo, outubro 23, 2022

As contradições do mundo evangélico

 

O mundo evangélico é amplo e complexo. Afirmo isso, pois já estive lá. Há vertentes das mais variadas - protestantes históricos, pentecostais e neopentecostais. Dizer que todos são iguais é uma generalização perigosa. Mas, hoje, dois de cada três eleitores evangélicos optam por Bolsonaro, o que revela uma flagrante contradição a respeito dos valores cristãos que o segmento afirma defender.

Presos a chavões, a debates nulos e a clichês insossos, muitos evangélicos esquecem o fundamento da mensagem dos profetas e se agarram ardorosamente àquilo que é falado por pastores mal intencionados. Ignoram a dura mensagem do profeta Amós contra a aristocracia corrupta e mentirosa de Jerusalém. Abandonam a essência da mensagem dramática do profeta Jeremias, que pregou durante quarenta anos para que o povo convertesse o coração à justiça e à verdade. Esquecem a mensagem do profeta Habacuque, que esperava por dias em que a verdade e a justiça triunfariam, "mesmo que não houvesse frutos nas vinhas" (Hc 3.17).

E, acima de tudo, fecham os olhos para o coração da mensagem de Jesus, que é a paz, a tolerância e o amor ao próximo (Mt 5.38-48). Gosto, especialmente, de uma passagem do Sermão do Monte em que Jesus diz: "Portanto, se estiveres para trazer a tua oferta ao altar e ali te lembrares de que o teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta ali diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão; e depois virás apresentar a tua oferta" (Mt. 5.23-24).

Há uma inversão a respeito desse ensinamento, pois alguns cristãos, tendo contenda consigo e com o mundo, levam primeiro suas ofertas a Deus (que deve ser entendida como culto, dádiva, entrega), ignorando completamente a noção de que não existe oferta aceita pela eternidade sem que haja concórdia, paz, acerto com o outro. Sem tolerância, sem amor ao próximo, oferecer a oferta é um grande erro. Fé sem amor é um ato fingido; esperança sem amor, é um equívoco em si mesmo. (1 Co 13.13)

No vídeo, o pastor Ed René Kivitz reflete um pouco sobre as contradições de uma igreja evangélica que faz opção por uma mensagem ostensivamente anticristã. 

quarta-feira, outubro 19, 2022

Viagem a Ouro Preto - algumas impressões históricas


Museu dos Inconfidentes

            Ao longo de três dias, tive o grato privilégio de visitar Ouro Preto, uma das cidades mais bonitas e icônicas do Brasil. Ao longo de minha jornada estudantil, havia aprendido que a cidade fora um importante palco da história do país – principalmente, por causa da Inconfidência Mineira e pelo grande acervo de obras artísticas.

Cheguei à cidade à noite. Ainda à distância, a primeira imagem que pude testemunhar, enquanto descia de carro uma escarpa que leva à cidade, foi uma igreja iluminada. A construção se destacava em meio ao casario que se ocultava na escuridão e revelava na treva apenas os olhos pequenos e notívagos das janelas iluminadas. Fiz uma pequena caminhada pelo pátio da Praça principal da cidade. Olhei o obelisco construído no lugar em que a cabeça de Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes, ficou exposta após receber a pena capital. Desta posição, o prédio que mais se destaca é o Museu dos Inconfidentes, lugar dedicado à memória da Inconfidência. Deambulei pelo pátio de pedra. Senti as emanações do vento agradável que soprava nos mais de mil e cem metros de altitude.

Tive dois dias completos para poder explorar a cidade. Pouco. Muito pouco. Poderia ter passado uma semana por lá. Como pude logo perceber, quando se visita a cidade, a impressão que passamos a ter é a de que a história continua viva; que os principais personagens que a fizeram ainda continuam por ali. As pedras do calçamento revelam os segredos das violências ali urdidas. Ladeiras imensas. Dirigir é um grande desafio. Há ladeiras que nos enche de incredulidade sobre a possibilidade do carro conseguir galgá-las.

Altar da Igreja de Santa Ifigênia

            Ouro Preto possui mais de 320 anos desde a sua fundação. Ela é resultado da ânsia da Coroa Portuguesa pelo achamento de pedras preciosas. O comércio do açúcar havia esgotado ainda no século XVII. Os holandeses levaram a tecnologia da produção para o Caribe. A técnica melhor aplicada e a proximidade física com a Europa impuseram a Portugal uma avassaladora derrota no antigo posto de grande produtor de açúcar no Ocidente. Os primeiros indivíduos que chegaram à cidade à procura de metais preciosos – principalmente diamantes e ouro – foram os bandeirantes. Descobriram ouro no leito dos rios. O nome da cidade deriva desse fato, pois o ouro encontrado estava misturado a pedras escuras por causa do minério de ferro. Todavia, inicialmente ela foi chamada de Vila Rica e foi tornada capital da província de Minas Gerais até o final do século XIX, quando houve o projeto de mudança para Belo Horizonte.

A partir da descoberta do ouro, houve uma vertiginosa corrida para a cidade. Ouro Preto se tornou um dos centros mais populosos da América Latina. Estima-se que a sua população passasse dos cem mil habitantes em pleno século XVIII, uma população dez vezes maior do que a população da cidade de São Paulo. O fluxo passa a ser intenso. Minas passam a ser exploradas, o que torna a cidade em um verdadeiro “queijo suíço”. Essas minas eram exploradas quase 24 horas por dia pela mão-de-obra escrava. Estima-se que mais de quatrocentas minas foram abertas na cidade. Todas elas indicam o quanto foi intensa a atividade mineradora.

Monumento construído no lugar em que a cabeça de Tiradentes foi exposta

            Portugal desde o princípio, procurou impelir um movimento para controlar essa produção. Foram instituídas as Casas de Fundição, que imprimiam o selo real ao ouro que era achado. Instituiu-se a Derrama, um imposto de vinte por cento de tudo aquilo que era achado. Com isso, havia cotas estabelecidas no padrão de 100 arrobas ou 1500 quilos de ouro anuais que deveriam ser achados e entregues à Metrópole. O objetivo dessa exploração era quitar dívidas com a Inglaterra. Apenas uma pequena porção desse ouro ficou na cidade. Ele pode ser encontrado no altar das belas igrejas. A grande maioria do ouro se encontra na Inglaterra.

Como a atividade mineradora foi entrando em declínio e Portugal continuava com a sua sanha para arrecadar os mesmos valores, as dívidas dos colonos passaram a números absurdos. Bens, propriedades, joias, móveis, passaram a ser confiscados. A Inconfidência nasce como um movimento que buscava acabar com os abusos cometidos pela Coroa Portuguesa. Havia ainda uma iniciativa separatista. Outro projeto era a criação de uma universidade na cidade. Os inconfidentes como ficaram conhecidos, foram motivados pelas mudanças que estavam acontecendo na Europa e pela independência das 13 Colônias na América do Norte, formando aquilo que conhecemos hoje como Estados Unidos. A independência de um país com moldes liberais como se dera nos Estados Unidos, em 1776, mobilizava o entusiasmo de nomes como o do poeta e jurista Tomás Antônio Gonzaga, autor de “Cartas Chilenas”, “Marília do Dirceu” e um manual de direito natural, escrito pela ocasião da sua formação em Portugal. Gonzaga é um dos grandes nomes do Arcadismo. Outro importante nome é o do advogado e poeta Claudio Manuel da Costa, que acabou, segundo versão canônica dos livros de história, se matando na prisão. Esse é um fato controverso, conforme pude apurar com alguns guias. É possível que ele tenha sido morto por tudo aquilo que sabia. Alvarenga Peixoto é outro nome importante. Peixoto acabou sendo degredado de forma permanente para a África. Ele é o responsável pela escrita da frase latina da bandeira de Minas – “Libertas quae sera tamen”, extraído de um verso do poeta romano Virgílio. Além desses há a figura de alguns cônegos e o caso emblemático do alferes Joaquim José da Silva Xavier, “o Tiradentes”, que teve a sua pena assinada pela rainha Maria I. O movimento foi traído por Joaquim Silvério dos Reis.

Igreja de São Francisco de Assis

           Vale mencionar que o Iluminismo também foi uma importante influência. Claudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga talvez sejam os dois grandes mentores intelectuais do movimento. Os dois haviam estado na Europa e certamente entraram em contato com os textos dos contratualistas franceses e ingleses. A vocação liberal era um dos lemas do movimento.

Enquanto caminhava pelo calçamento de pedra e sentia o cheiro dos monumentos, percebia o quanto a força dos escravos foi responsável pela construção da cidade. Isso está posto nos museus, nas igrejas, nas pedras das ruas, nas paredes dos casarões, no silêncio escuro e úmido das minas. Os escravos foram a força motriz que ergueu a cidade. Os rastros da violência institucionalizada estão colocados nas esquinas, na forma como se organizavam as missas, na obrigatoriedade de seguir a fé cristã, mesmo sendo oriundo de um local em que essa tradição não existia.

Um exemplo dessa relação de violência pode ser demonstrada no processo de construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e Santa Ifigênia, erguida entre os anos de 1733 e 1785. Ifigênia segundo reza a tradição era de Noba – na Etiópia -, e teria se convertido pela pregação do evangelista Matheus. Era negra. Consagrou a sua virgindade a Deus. Mais tarde, sendo obrigada a casar com um tirano, recusou de forma peremptória. O cruel monarca decidiu, por isso, incendiar o convento onde Ifigênia e outras mulheres se dedicavam ao serviço religioso. Quando as chamas devoravam a construção, elas decidiram invocar o nome de Jesus. Milagrosamente, o incêndio apagou e iniciou no palácio do rei. Em sua imagem, nota-se uma chama em uma das suas mãos. Ela é a padroeira da igreja. A Igreja de Santa Ifigênia foi construída pelos e para os escravos. É a única na cidade com esse objetivo. Nas demais igrejas históricas (quase vinte), os escravos não ocupavam dignamente os espaços de culto. Assistiam à missa do lado de fora. E, nesse sentido, notamos a terrível violência praticada contra eles e: (1) por não terem direito ao culto, já que a premissa básica do cristianismo é de que todos são iguais perante Deus; (2) a obrigatoriedade de cultuarem as mesmas divindades dos seus algozes. Não fazia sentido, assim como hoje não faz sentido.

Muitas expressões usadas até os nossos dias, principalmente em Minas Gerais, são resultado da relação de violência perpetrada contra os escravos. A sociabilidade brasileira está saturada por um imaginário de encobrimento do outro. São exemplos: “dar no couro”; “enquanto descansa, carrega pedra”; “levar a égua”; “serviço de meia tigela”; “encher o bucho”; “olha o passarinho”; “cair no conto do vigário”; “santo do pau oco”; “tirar o cavalo da chuva”; “estar com o burro na sombra”; “para inglês ver” entre outras. Essas expressões indicam o quanto a violência e as relações de dominação e expropriação fazem parte do nosso imaginário. Expressões racistas também são repetidas, às vezes, sem que se faça a devida reflexão da violência simbólica que elas disseminam – “Você está me denegrindo”; “A coisa tá preta”; ou “Isso é magia negra”.

Basílica Matriz de Nossa Senhora do Pilar

             Outra página importante são igrejas. Todas construídas para indicar a opulência de um momento importante da história do Brasil e da cidade. E, nesse sentido, Ouro Preto é um dos mais importantes centros do mundo com essa característica. Na cidade, o barroco e o rococó se firmaram como movimentos complementares. Tive a oportunidade de visitar quatro das mais bonitas igrejas da cidade – a já mencionada Igreja de Santa Ifigênia e outras três que revelam o apuro e a meticulosidade do trabalho de embelezamento: Igreja de São Francisco de Assis, repleta de obras de Aleijadinho e um dos tetos barrocos mais bonitos do mundo; Igreja de Nossa Senhora do Carmo, com forte estilo fincado na tradição rococó; e a Basílica Matriz de Nossa Senhora do Pilar, que possui um dos altares com maior quantidade de ouro do Brasil (mais de quatrocentos quilos).

Nota-se em cada igreja a preocupação com o significado dos elementos. O fiel ao entrar em cada igreja deveria ser absorvido por aquilo que via. Sendo assim, há uma imposição de elementos aos sentidos e à cognição. A monumentalidade das construções deveria “dizer” algo. Há uma profusão de referências explícitas ou, às vezes, veladas. O observador comum e desatento deixa passar a maior parte dos detalhes. O teto, o altar, os afrescos, os azulejos; nas referências sagradas ou profanas, há uma indução para que o fiel seja direcionado à divindade. O que importa é o esfuziamento de detalhes e as impressões geradas. Pode-se ficar por horas e horas contemplando o multíplice conjunto de minúcias. E aqui assinalamos uma importante questão: pode-se fazer uma viagem à cidade, simplesmente, para observar as igrejas. São extraordinárias.

Enquanto saía da Igreja de São Francisco de Assis, um senhor fez uma indagação que me deixou pensando. A pergunta veio sem que eu esperasse e, por isso, causou um súbito efeito. Perguntou ele: “A turma de há duzentos anos deixou isso para que nós pudéssemos ver; e, nós, o que vamos deixar para aqueles que viverão daqui a duzentos anos?”. Fiquei sem saber o que dizer. Seu questionamento é inquietante. 

Ouro Preto, assim como as outras cidades mineiras que compõem o Ciclo do Ouro – Mariana, Congonhas, São João del Rey, Sabará, Tiradentes etc – são textos abertos para que possamos ler e nos deleitar. Depois de visitá-la (espero um dia voltar novamente) pude compreender um pouco mais a nossa história tão “ignorada e tão mal contada” e me bateu um desejo profundo de saber mais sobre os eventos que envolvem essa página do país.

 

           

terça-feira, outubro 18, 2022

"A troca", de Clint Eastwood

 

 "A Troca" é uma produção do ano de 2008. Leva a marca Clint Eastwood - é longo, possui um bom enredo e uma forte convergência para o drama. A história é baseada em fatos reais. O roteiro foi escrito por J. Michael Straczynski, um experimentado mestre em transpor para o papel, intrincadas histórias policiais. O filme se baseia em fatos ocorridos em Los Angeles, no ano de 1928. 

Existem três eixos sob os quais o filme se assenta: (1) a corrupção policial e as manobras do poder público; (2) as marcas da violência e o quase fracasso do indivíduo perante essa inexpugnável força de instituições corruptas ; (3) e como a sociedade age diante de fatos com grande repercussão pública.

Essas três questões gravitam em torno do fato principal do filme - a violência atroz contra crianças. É uma excelente história. O liame dos fatos revelam a mão habilidosa de Eastwood. As mais de duas horas de filme não constituem um obstáculo. Não se observa a passagem do tempo. O filme possui sequências muito bem montadas, com fatos que acontecem em paralelo, criando um excelente efeito. Eastwood ainda se utiliza de "flashbacks" que encaixam muito bem, reforçando a noção de suspense e drama. Tudo é muito bom!


quarta-feira, outubro 05, 2022

Algumas palavras sobre "Úrsula", de Maria Firmina dos Reis

 

                Maria Firmina dos Reis é um nome importante da literatura brasileira. Nasceu no Maranhão, no ano de 1822. Ou seja, há duzentos anos. Como se pode observar, Maria veio ao mundo no ano em que o Brasil se tornou um país politicamente independente. Sua história é típica das pessoas negras deste país. Ela, uma mulher culta, professora, tem sido negligenciada, não recebendo uma fortuna crítica à altura de sua obra.

                Seu principal texto – “Úrsula” – só se tornou efetivamente conhecido nacionalmente nos anos 60 do século XX – mais de cem anos após a sua publicação. Três fatores, talvez, expliquem a “invizibilização” de sua obra:

(1) o fato de ser uma mulher. O número de mulheres que fizeram literatura no século XIX é inexpressivo. Citam-se os casos de Nísia Floresta, Júlia Lopes de Almeida, Emília Freitas entre outras; números que podem ser contados nos dedos. A maior parte das obras era constituída por folhetins inocentes. O Brasil era um país rigidamente patriarcal. Às mulheres cabia um papel subalterno.  Uma das principais preocupações era para que as mulheres se mostrassem discretas e não aparecessem em público, pois assim não envergonhariam o pai ou o marido. A instrução entre o sexo feminino era quase inexistente. A maior preocupação de uma mulher dizia respeito à capacidade que ela teria de arranjar um casamento e ser uma boa esposa. Maria Firmina é predecessora de outros comportamentos. Um exemplo é o fato de ela ser a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público para professor no estado do Maranhão. Mais tarde, ela fundaria uma classe híbrida com meninos e meninas, algo impensado para a época.

(2) Maria Firmina era uma mulher negra em uma sociedade patriarcal e provinciana. Filha de uma mulher branca com um homem negro, Firmina tornou-se órfã ainda muito jovem. Por conta desse fato, foi morar com uma tia. Nesse novo ambiente, ela entrou em contato com os livros e com uma educação mais refinada. A escritora em um espaço como esse, certamente, viveu uma amarga solidão. Pesava ainda o fato de que era negra. O texto escrito, o manejo da palavra, era um privilégio de pessoas brancas.

(3) O Maranhão ficava distante da Capital do país. Anos mais tarde, o Maranhão teria importantes figuras da literatura nacional. Vale mencionar os nomes dos irmãos Azevedo – Arthur e Aluízio. Este, por exemplo, será um dos principais nomes ligados à escola naturalista. Livros como “O Cortiço”, “O mulato” e “Casa de pensão” são marcos importantes da literatura brasileira, produzidos por um grande escritor maranhense. Mesmo diante de um fenômeno com essas características, o Rio de Janeiro era considerado o centro das produções literárias brasileiras. José de Alencar, Machado de Assis, Manuel Joaquim de Macedo entre outros estavam por lá. O que uma mulher – negra – de um espaço provinciano poderia produzir? Muita gente deve ter torcido o nariz para esse fato. E, analisando sobre esse ponto de vista, Maria Firmina é um grande fenômeno.

                Esse ponto é corroborado pelo fato de que, mesmo tendo vivido quase cem anos, não se sabe ao certo como era a feição de Maria Firmina dos Reis. Desconhece-se como era o formato do seu rosto; a cor do seu cabelo. Chega-se a essa conclusão por causa da origem de seus pais. Esse episódio ilustra como Maria Firmina desperta interesse pela grandiosidade e originalidade de sua obra. “Úrsula” é um caso muito significativo da literatura brasileira, que desperta um grande interesse.

                A história é simples. Possui um enredo e estética românticos. O texto não se diferencia de qualquer dos escritos de José de Alencar. A estética de Maria Firmina é singela. Sentimos todo aquele “afetamento” na linguagem, criando uma experiência, às vezes, capaz de criando um enfado na leitura. Mas, vale mencionar que apesar de ter os pés fincados na tradição romântica, Maria Firmina procura revestir as suas personagens com uma nobreza de caráter distinta daquela feita pelos demais escritores da época. É importante salientar que o texto de Maria Firmina fornece um outro olhar para o papel da mulher e do negro numa sociedade marcadamente patriarcal, desigual e escravista. Um exemplo são os textos do já mencionado escritor cearense José de Alencar.

                Quando se verificam textos como Iracema e o Guarani, é patente o esforço de Alencar de construir um mito de fundação, um conceito de nacionalidade. Todavia, observa-se que o material usado pelo escritor cearense para realizar esse feito é a conformação, o idílio, a subalternidade em relação à história contada pelos europeus. Alencar procura por em evidência construção do Brasil como se aqui fosse um paraíso, estruturado a partir do encontro dos brancos desenvolvidos e civilizados europeus com o índio bravo e heroico. O Brasil seria, portanto, o encontro do bravio e do indômito com a civilização branca e cristã vinda do Norte. O negro é colocado à margem. Sua importância não é mencionada. O tratamento e a importância do negro são deixados de lado.

                A importância de Úrsula reside nesse quesito, pois a perspectiva apresentada sobre o negro e sobre a mulher é modificada. O negro deixa de ser um ente doce, passivo, resignado à sua condição e passa a ter uma história – e muita dignidade. Os dois personagens Túlio e a negra Suzana são descritos de tal forma a evidenciar o quanto são nobres e infelizes por serem submetidos a uma estrutura injusta e anticristã. O narrador de “Úrsula” (narrador em terceira pessoa), preocupa-se em apresentar a violência sofrida pela velha escrava, que fora arrancada da África – da sua história, do seu povo, das suas crenças, de suas tradições – e trazida para viver em uma terra distante sob o rude manto da escravidão. Nesse sentido, Maria Firmina ressalta a importância e a dignidade do escravo.

Túlio é outro importante elemento na obra, pois sua personalidade é quase rousseauniana.  O jovem negro é apresentado como uma pessoa boa, apesar de toda o meio em que vive. Túlio é generoso. Bondoso. A forma como ele acolhe e cuida de Tancredo evidencia a sua personalidade. Maria Firmina afirma: “Era infeliz; mas era virtuoso”. Ao encontrar um homem branco caído em local ermo, Túlio poderia se aproveitar e saborear a vingança por toda a sua raça. Não. O jovem escravo leva aquele que seria o amor de “Úrsula” para a casa de sua senhora. E aqui é importante estabelecer uma conexão com a história bíblica do bom samaritano encontrada em Lucas 15.11-32. Essa nobreza de caráter fornece uma leitura diferente daquela ditada pelas relações materiais existentes no Brasil. “Úrsula” é considerado o primeiro romance genuinamente abolicionista da história da literatura brasileira.

Outro importante personagem é o Comendador, o tio de Úrsula. Sua postura é de controle completo sobre tudo. Sua vontade é assassina. Seus impulsos são de morte. A única linguagem que utiliza é a da aniquilação. O Comendador representa a figura do patriarcado e da aristocracia que dominava o país. É a figura do macho com apetite e hábitos irrefreáveis; capaz de perpetrar maldades extremas.

A obra é essencialmente romântica. A parte final é pessimista. Apesar de haver em seu enredo uma profunda perspectiva cristã – a prevalência do bem, da generosidade, da verdade, do sofrimento que é suportado com resignação e nobreza de caráter -, o final da história é marcado pelo pessimismo. Em “Úrsula” o bem se faz presente, representado na personalidade de personagens que são acossados pela crueldade dos fatos e do destino, todavia o desfecho dessas personagens é melancólico, com cintilações pálidas. Um livro importantíssimo de uma brasileira negra que muito disse e ainda tem muito a dizer sobre o Brasil.

 

               

 

segunda-feira, outubro 03, 2022

A vitória do bolsonarismo e a derrota do Brasil

 

            As eleições de 2022 evidenciaram que o bolsonarismo é um fenômeno consolidado na sociedade brasileira. Milhões de brasileiros decidiram dobrar a aposta e garantir ao atual governo a possibilidade de mais quatro anos de mandato. É simplesmente assustador. Não me refiro apenas à eleição presidencial. O que aconteceu nos estados – principalmente nas regiões do Centro-Sul – nas eleições para governador, senador e deputado federal, é um fenômeno que deixou desolado o indivíduo mais otimista. Em um país "normal", sem as fraturas psíquicas e as contradições que possuímos, Bolsonaro seria fragorosamente enxotado do cargo. 

            Os mais de 50 milhões de votos recebidos por Bolsonaro é um golpe impiedoso na sensatez e na razão. Como explicar algo assim? O governo Bolsonaro é um dos piores da história da República. Qualquer dado que seja estudado demonstra que houve mais retrocessos do que avanços em várias áreas. A gestão da pandemia por si só nos coloca diante de uma tragédia. A falta de humanidade, de simpatia para com milhões de brasileiros que morreram ou que tiveram seus familiares enlutados é indignador; o atraso intencional e sistemático na aquisição das vacinas também estarrece. O movimento antivacina. O incentivo ao uso de medicação equivocada também impressiona. O questionamento absurdo à ciência. O discurso violento. As falas desumanas. A misoginia. O cristianismo de faixada. As intenções destruidoras. O armamento sem precedentes da população brasileira. A retórica golpista. O desrespeito às instituições. O jogo constante que procura impor um olhar de descrédito a tudo aquilo que se refira aos pressupostos da razão. A falência econômica. A inflação. A fome que passou a assustar como um fantasma milhões de brasileiros pobres. O neoliberalismo em seu estilo mais cru. Todo esse repertório de políticas negativas deveria mobilizar o país para uma posição defensiva. 

            Todavia, parece que isso não importa. O brasileiro não parece, simplesmente, fazer um esforço para conectar os fatos. É como se ele ignorasse o quanto significam quatro anos de um novo mandato do atual governo. Com a pujança que conseguiu nas eleições parlamentares, o que ainda nos resta de proteção social e trabalhista na Constituição de 88, será simplesmente atropelado e solapado. A única música que o brasileiro consegue mimetizar é: “Lula não”. “PT nunca mais”. Sem pensar nas consequências da sua escolha.

            O país não está lidando com um indivíduo qualquer. Estamos lidando com um projeto miliciano, que tem por objetivo acabar com as conquistas civilizatórias do país. É a construção de uma ditadura explícita, assim como já se deu na Hungria ou na Turquia.  O bolsonarismo sai forte da eleição; e, o Brasil, enfraquecido.