quarta-feira, outubro 19, 2022

Viagem a Ouro Preto - algumas impressões históricas


Museu dos Inconfidentes

            Ao longo de três dias, tive o grato privilégio de visitar Ouro Preto, uma das cidades mais bonitas e icônicas do Brasil. Ao longo de minha jornada estudantil, havia aprendido que a cidade fora um importante palco da história do país – principalmente, por causa da Inconfidência Mineira e pelo grande acervo de obras artísticas.

Cheguei à cidade à noite. Ainda à distância, a primeira imagem que pude testemunhar, enquanto descia de carro uma escarpa que leva à cidade, foi uma igreja iluminada. A construção se destacava em meio ao casario que se ocultava na escuridão e revelava na treva apenas os olhos pequenos e notívagos das janelas iluminadas. Fiz uma pequena caminhada pelo pátio da Praça principal da cidade. Olhei o obelisco construído no lugar em que a cabeça de Joaquim José da Silva Xavier, mais conhecido como Tiradentes, ficou exposta após receber a pena capital. Desta posição, o prédio que mais se destaca é o Museu dos Inconfidentes, lugar dedicado à memória da Inconfidência. Deambulei pelo pátio de pedra. Senti as emanações do vento agradável que soprava nos mais de mil e cem metros de altitude.

Tive dois dias completos para poder explorar a cidade. Pouco. Muito pouco. Poderia ter passado uma semana por lá. Como pude logo perceber, quando se visita a cidade, a impressão que passamos a ter é a de que a história continua viva; que os principais personagens que a fizeram ainda continuam por ali. As pedras do calçamento revelam os segredos das violências ali urdidas. Ladeiras imensas. Dirigir é um grande desafio. Há ladeiras que nos enche de incredulidade sobre a possibilidade do carro conseguir galgá-las.

Altar da Igreja de Santa Ifigênia

            Ouro Preto possui mais de 320 anos desde a sua fundação. Ela é resultado da ânsia da Coroa Portuguesa pelo achamento de pedras preciosas. O comércio do açúcar havia esgotado ainda no século XVII. Os holandeses levaram a tecnologia da produção para o Caribe. A técnica melhor aplicada e a proximidade física com a Europa impuseram a Portugal uma avassaladora derrota no antigo posto de grande produtor de açúcar no Ocidente. Os primeiros indivíduos que chegaram à cidade à procura de metais preciosos – principalmente diamantes e ouro – foram os bandeirantes. Descobriram ouro no leito dos rios. O nome da cidade deriva desse fato, pois o ouro encontrado estava misturado a pedras escuras por causa do minério de ferro. Todavia, inicialmente ela foi chamada de Vila Rica e foi tornada capital da província de Minas Gerais até o final do século XIX, quando houve o projeto de mudança para Belo Horizonte.

A partir da descoberta do ouro, houve uma vertiginosa corrida para a cidade. Ouro Preto se tornou um dos centros mais populosos da América Latina. Estima-se que a sua população passasse dos cem mil habitantes em pleno século XVIII, uma população dez vezes maior do que a população da cidade de São Paulo. O fluxo passa a ser intenso. Minas passam a ser exploradas, o que torna a cidade em um verdadeiro “queijo suíço”. Essas minas eram exploradas quase 24 horas por dia pela mão-de-obra escrava. Estima-se que mais de quatrocentas minas foram abertas na cidade. Todas elas indicam o quanto foi intensa a atividade mineradora.

Monumento construído no lugar em que a cabeça de Tiradentes foi exposta

            Portugal desde o princípio, procurou impelir um movimento para controlar essa produção. Foram instituídas as Casas de Fundição, que imprimiam o selo real ao ouro que era achado. Instituiu-se a Derrama, um imposto de vinte por cento de tudo aquilo que era achado. Com isso, havia cotas estabelecidas no padrão de 100 arrobas ou 1500 quilos de ouro anuais que deveriam ser achados e entregues à Metrópole. O objetivo dessa exploração era quitar dívidas com a Inglaterra. Apenas uma pequena porção desse ouro ficou na cidade. Ele pode ser encontrado no altar das belas igrejas. A grande maioria do ouro se encontra na Inglaterra.

Como a atividade mineradora foi entrando em declínio e Portugal continuava com a sua sanha para arrecadar os mesmos valores, as dívidas dos colonos passaram a números absurdos. Bens, propriedades, joias, móveis, passaram a ser confiscados. A Inconfidência nasce como um movimento que buscava acabar com os abusos cometidos pela Coroa Portuguesa. Havia ainda uma iniciativa separatista. Outro projeto era a criação de uma universidade na cidade. Os inconfidentes como ficaram conhecidos, foram motivados pelas mudanças que estavam acontecendo na Europa e pela independência das 13 Colônias na América do Norte, formando aquilo que conhecemos hoje como Estados Unidos. A independência de um país com moldes liberais como se dera nos Estados Unidos, em 1776, mobilizava o entusiasmo de nomes como o do poeta e jurista Tomás Antônio Gonzaga, autor de “Cartas Chilenas”, “Marília do Dirceu” e um manual de direito natural, escrito pela ocasião da sua formação em Portugal. Gonzaga é um dos grandes nomes do Arcadismo. Outro importante nome é o do advogado e poeta Claudio Manuel da Costa, que acabou, segundo versão canônica dos livros de história, se matando na prisão. Esse é um fato controverso, conforme pude apurar com alguns guias. É possível que ele tenha sido morto por tudo aquilo que sabia. Alvarenga Peixoto é outro nome importante. Peixoto acabou sendo degredado de forma permanente para a África. Ele é o responsável pela escrita da frase latina da bandeira de Minas – “Libertas quae sera tamen”, extraído de um verso do poeta romano Virgílio. Além desses há a figura de alguns cônegos e o caso emblemático do alferes Joaquim José da Silva Xavier, “o Tiradentes”, que teve a sua pena assinada pela rainha Maria I. O movimento foi traído por Joaquim Silvério dos Reis.

Igreja de São Francisco de Assis

           Vale mencionar que o Iluminismo também foi uma importante influência. Claudio Manuel da Costa e Tomás Antônio Gonzaga talvez sejam os dois grandes mentores intelectuais do movimento. Os dois haviam estado na Europa e certamente entraram em contato com os textos dos contratualistas franceses e ingleses. A vocação liberal era um dos lemas do movimento.

Enquanto caminhava pelo calçamento de pedra e sentia o cheiro dos monumentos, percebia o quanto a força dos escravos foi responsável pela construção da cidade. Isso está posto nos museus, nas igrejas, nas pedras das ruas, nas paredes dos casarões, no silêncio escuro e úmido das minas. Os escravos foram a força motriz que ergueu a cidade. Os rastros da violência institucionalizada estão colocados nas esquinas, na forma como se organizavam as missas, na obrigatoriedade de seguir a fé cristã, mesmo sendo oriundo de um local em que essa tradição não existia.

Um exemplo dessa relação de violência pode ser demonstrada no processo de construção da Igreja de Nossa Senhora do Rosário e Santa Ifigênia, erguida entre os anos de 1733 e 1785. Ifigênia segundo reza a tradição era de Noba – na Etiópia -, e teria se convertido pela pregação do evangelista Matheus. Era negra. Consagrou a sua virgindade a Deus. Mais tarde, sendo obrigada a casar com um tirano, recusou de forma peremptória. O cruel monarca decidiu, por isso, incendiar o convento onde Ifigênia e outras mulheres se dedicavam ao serviço religioso. Quando as chamas devoravam a construção, elas decidiram invocar o nome de Jesus. Milagrosamente, o incêndio apagou e iniciou no palácio do rei. Em sua imagem, nota-se uma chama em uma das suas mãos. Ela é a padroeira da igreja. A Igreja de Santa Ifigênia foi construída pelos e para os escravos. É a única na cidade com esse objetivo. Nas demais igrejas históricas (quase vinte), os escravos não ocupavam dignamente os espaços de culto. Assistiam à missa do lado de fora. E, nesse sentido, notamos a terrível violência praticada contra eles e: (1) por não terem direito ao culto, já que a premissa básica do cristianismo é de que todos são iguais perante Deus; (2) a obrigatoriedade de cultuarem as mesmas divindades dos seus algozes. Não fazia sentido, assim como hoje não faz sentido.

Muitas expressões usadas até os nossos dias, principalmente em Minas Gerais, são resultado da relação de violência perpetrada contra os escravos. A sociabilidade brasileira está saturada por um imaginário de encobrimento do outro. São exemplos: “dar no couro”; “enquanto descansa, carrega pedra”; “levar a égua”; “serviço de meia tigela”; “encher o bucho”; “olha o passarinho”; “cair no conto do vigário”; “santo do pau oco”; “tirar o cavalo da chuva”; “estar com o burro na sombra”; “para inglês ver” entre outras. Essas expressões indicam o quanto a violência e as relações de dominação e expropriação fazem parte do nosso imaginário. Expressões racistas também são repetidas, às vezes, sem que se faça a devida reflexão da violência simbólica que elas disseminam – “Você está me denegrindo”; “A coisa tá preta”; ou “Isso é magia negra”.

Basílica Matriz de Nossa Senhora do Pilar

             Outra página importante são igrejas. Todas construídas para indicar a opulência de um momento importante da história do Brasil e da cidade. E, nesse sentido, Ouro Preto é um dos mais importantes centros do mundo com essa característica. Na cidade, o barroco e o rococó se firmaram como movimentos complementares. Tive a oportunidade de visitar quatro das mais bonitas igrejas da cidade – a já mencionada Igreja de Santa Ifigênia e outras três que revelam o apuro e a meticulosidade do trabalho de embelezamento: Igreja de São Francisco de Assis, repleta de obras de Aleijadinho e um dos tetos barrocos mais bonitos do mundo; Igreja de Nossa Senhora do Carmo, com forte estilo fincado na tradição rococó; e a Basílica Matriz de Nossa Senhora do Pilar, que possui um dos altares com maior quantidade de ouro do Brasil (mais de quatrocentos quilos).

Nota-se em cada igreja a preocupação com o significado dos elementos. O fiel ao entrar em cada igreja deveria ser absorvido por aquilo que via. Sendo assim, há uma imposição de elementos aos sentidos e à cognição. A monumentalidade das construções deveria “dizer” algo. Há uma profusão de referências explícitas ou, às vezes, veladas. O observador comum e desatento deixa passar a maior parte dos detalhes. O teto, o altar, os afrescos, os azulejos; nas referências sagradas ou profanas, há uma indução para que o fiel seja direcionado à divindade. O que importa é o esfuziamento de detalhes e as impressões geradas. Pode-se ficar por horas e horas contemplando o multíplice conjunto de minúcias. E aqui assinalamos uma importante questão: pode-se fazer uma viagem à cidade, simplesmente, para observar as igrejas. São extraordinárias.

Enquanto saía da Igreja de São Francisco de Assis, um senhor fez uma indagação que me deixou pensando. A pergunta veio sem que eu esperasse e, por isso, causou um súbito efeito. Perguntou ele: “A turma de há duzentos anos deixou isso para que nós pudéssemos ver; e, nós, o que vamos deixar para aqueles que viverão daqui a duzentos anos?”. Fiquei sem saber o que dizer. Seu questionamento é inquietante. 

Ouro Preto, assim como as outras cidades mineiras que compõem o Ciclo do Ouro – Mariana, Congonhas, São João del Rey, Sabará, Tiradentes etc – são textos abertos para que possamos ler e nos deleitar. Depois de visitá-la (espero um dia voltar novamente) pude compreender um pouco mais a nossa história tão “ignorada e tão mal contada” e me bateu um desejo profundo de saber mais sobre os eventos que envolvem essa página do país.

 

           

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