quinta-feira, dezembro 26, 2013

Algumas considerações sobre o "Punk Rock" e o documentário "Botinada - a origem do 'punk' no Brasil"


Assisti ao excelente documentário Botinada - a origem do punk no Brasil, 2006, dirigido pelo polivalente Gastão Moreira. O documentário busca retratar a história do movimento punk dos anos de 1976 a 1984 aqui no Brasil. Foram reunidas mais de 200 horas de vídeo; 77 pessoas foram entrevistadas ao longo de quatro anos de um trabalho árduo a fim de reunir documentos - fotografias, reportagens, imagens raras, depoimentos das personagens que fizeram a história do punk no Brasil.

É importante dizer que o punk apesar de ter surgido como movimento em meados dos anos 70, teve a sua gestação com bandas como MC5, com suas letras repletas de veneno político. É só ouvir a maravilhosa Kick out of the jams. Está tudo lá! Outra importante banda são os The Stooges, a banda do imortal Iggy Pop, que se consagrou pelo som ruidoso, de letras fáceis, melodia pegajosa e irreverência louca no palco. É só ouvir Down on the street, 1969, I wanna be your dog. Ou ainda o The Kinks e a maravilhosa All Day and All of the Night. Ou seja, podemos afirmar que essas e outras bandas são responsáveis por um proto-movimento que criava uma estética de irreverência, agressividade, tonalidades pegajosas, letras provocantes que "agrediam" o mainstream.

Mais para frente, por volta de 1971 ou 1972, o New York Dolls, que possuía uma estética bastante provocante foi formado. Algumas de suas músicas atestam isso como, por exemplo, Personality Crisis ou Jet Boy. O New York Dolls influenciaria uma série de bandas, entre elas o The Ramones. Devem ser citados ainda Blondie, Johnny Thunders and the Heartbreakers, The Cramps, Talking Heads.

Todavia, o que fermentou a explosão do Punk na Inglaterra? Pode se afirmar entre outras causas: a década de 70 enfrentava uma séria crise econômica. O Estado keynesiano havia entrado em agonia. Não havia possibilidade de continuá-lo. Era preciso "enxugar" o social do Estado. Foi a época de fundação do neoliberalismo por Margaret Tchatcher, que tornaria primeira ministra da Inglaterra em 1979. Entre as medidas adotadas por ela estavam a desregulamentação do setor financeiro, privatização das empresas estatais, flexibilização das leis e do mercado de trabalho. Ou seja, as consequências das medidas tomadas mais tarde por Tchatcher já vinham sendo experimentadas pelos jovens em anos anteriores. Deriva daí a premissa social do punk. Ou seja, os jovens queriam por meio da rebeldia e de uma estética plástica "apavorante" protestar contra o sistema capitalista. O desemprego, o empobrecimento, as políticas sociais sendo desmanteladas pelos tentáculos do noliberalismo jogou milhões na miséria. Era necessário "chocar" e subverter a ordem. 

É nesse contexto que vão surgir duas bandas que revolucionariam os destinos do punk: o The Sex Pistols e o The Clash. Outras bandas surgidas nesse mesmo contexto inglês foram importantes. Entre elas ressaltam-se o The Damned e Buzzcocks. Estas bandas, rapidamente, exportaram uma atitude provocativa para o mundo. As roupas eram rasgadas; broches pela roupa; em alguns, era possível maquiagens anômalas; cortes de cabelos aberrantes; um palavreado eivado por palavrões; e muita, mas muita atitude. O The Sex Pistols, por exemplo, representa o que foi a atitude punk. Vale falar ainda do The Clash, que tinha uma vertente mais política e que se enveredou por outras sonoridades. O álbum London Calling, de 1979, é considerado um dos maiores discos da história.

O punk era uma estação necessária contra o rock alternativo. Pode se afirmar que a opção pela música barulhenta, rápida, de acordes fáceis e letras simples e provocativas estão firmadas em um voluntarismo estético. Um exemplo disso é o primeiro disco do The Ramones, de 1976, que possuía quatorze músicas em vinte nove minutos. Fazer uma música com essa tessitura era uma forma de insultar o quadro comercial oficial.

O punk se desintegra rapidamente. Das suas entranhas brotou a New Age, ou nova onda, que trazia uma estética mais comportada. Mas é possível observar que outras bandas deram seguimento àquilo que era necessário ao movimento punk: ou seja, a sonoridade e a contestação. Um exemplo disso são bandas como Dead Kennedys, Bad Brains, The Germs, Black Flag, entre outras. A New Wave é aquilo que pode se chamar de versão comercial do punk. Uma enxurrada de bandas surgiram nessa época: Elvis Costello, The B-52's, The Jam, Tears for Fears, Duran Duran, Devo; e bandas que inaugurariam um movimento mesclado por um visual gótico-surrealista: Echo and the Bunnymen, Joy Division, The Cure, New Order, The Smiths, U2, The Sonic Youth. O punk continuaria a destilar o seu poder e influenciaria o Grunge da década de 90. O que são bandas como Alice in Chains, The Melvins, Mudhoney ou Nirvana e suas respectivas estéticas, senão uma continuidade desse movimento?

Este cenário serve de pano de fundo para mostrar como se deu o nascimento do movimento punk aqui no Brasil. As primeiras bandas surgiram em 1977, influenciadas por aquilo que estava acontecendo na Europa e nos Estados Unidos. No documentário fica claro que o nascimento do punk se deu em São Paulo, embora outras cidades como Brasília e Salvador reivindiquem essa origem. Entre as bandas que são responsáveis por isso podem ser apontadas a Banda do Lixo e o Joelho de Porco

Mais tarde, surgiriam as bandas que sedimentariam o punk como um movimento com identidade aqui no Brasil. Inocentes, AI-5, Ratos de Porão, Olho Seco, Condutores de Cadáver, Lixomania, Cólera, Garotos Podres, Os Replicantes, Aborto Elétrico etc.

O documentário é relevante por levantar informações sobre esse movimento que avocar atitude, pois o punk é movimento, conforme a sua gênese, sócio-cultural. Existe uma inflexão política. Um elemento contestatório. A vertente mais famosa do punk a promover justamente essa atitude é anarcopunk, que promove anarquismo como filosofia operante.

Dois fatos me chamaram a atenção:

(1)  A mobilização da mídia com a finalidade de enfraquecer e deturpar o movimento. A responsabilização por acontecimentos variados. A confusão com nomes. Os primeiros grupos eram confundidos com nazistas. Ou seja, uma profunda ignorância, já que uma das lutas do movimento é justamente contra os totalitarismos, entre eles o nazismo.

(2) O que me chamou a atenção no documentário, também, é como se encontram aqueles que fizeram o movimento aqui no Brasil. Estão subempregados. Lutando pelo pão de cada dia. Longe do mainstream. Isso serve para mostrar o quanto o movimento é marginal. Botinada é um importante documento a favor dessas personagens.

Pode ser visto no Youtube.


quarta-feira, dezembro 25, 2013

Cento e trinta anos depois, ainda Marx?

Excelente o texto! Traz à baila justamente a questão do posicionamento anti-marxista, antes mesmo que se conheça Marx. Criticar Marx sem que se tenha lido uma única página de Marx é uma baita de uma ignorância. A regra geral é que aqueles que fazem a crítica, geralmente desarrazoada, absorvem os argumentos daquilo que foi feito em nome de Marx. É o exemplo mostrado no texto. A ignorância histórica leva a associar o marxismo a práticas totalitárias. "Existem fatos históricos que podem explicar essa associação, sendo que o principal deles é a associação entre Marx e o regime estalinista da União Soviética. O problema é que entre as ideias de Marx e as práticas totalitárias existe uma série de mediações históricas, políticas e de ideias que são deixadas de lado. Assim, se chega a uma conclusão análoga a algo como atribuir a Einstein a responsabilidade pela bomba atômica". A teoria social desenvolvida por Marx é ampla, complexa e abarca a totalidade. Os reducionismos anti-marxistas nem resvalam na superfície do pensamento de Marx. O pensador buscou superar as contradições da materialidade, trazendo no bojo ideias como libertação, humanização e liberdade. Isso, sim, é Marx! O resto é caricatura e ignorância!

Cento e trinta anos depois de sua morte, Karl Marx continua causando polêmica. Poucos meses atrás, em Porto Alegre, foi veiculada a notícia de que ‘livros marxistas’ teriam sido apreendidos como documentos incriminadores. Pouco depois, o responsável pelas operações afirmou que isso não teria ocorrido. Enquanto isso, um estudante de relações internacionais ganhou notoriedade nacional ao se recusar a escrever sobre Marx em sala de aula. O que esses fatos mostram, antes de tudo, é que Marx continua vivo no debate político ideológico.

O problema é que poucos se aventuram a entrar nos escritos deste controverso pensador. O que geralmente se vê são críticas feitas ao totalitarismo, ao despotismo e à falta de liberdades. Em entrevista repercutida no jornal Zero Hora, o estudante mencionado foi questionado e convidado a explicar por que se posicionava contra o marxismo. Não respondeu. Afirmou: “Minha educação sempre foi pela liberdade, pela vida, pela justiça acima de tudo. Os regimes totalitaristas se tornaram genocidas, trouxeram miséria e morte. Vejo que o Brasil caminha para ser uma Venezuela.” Se vê claramente que a pergunta não foi respondida, e isso é reflexo da ignorância generalizada acerca das ideias de Marx, já que o rótulo ‘marxismo’ traz consigo a ideia pronta e acabada que associa o marxismo com o totalitarismo.

Existem fatos históricos que podem explicar essa associação, sendo que o principal deles é a associação entre Marx e o regime estalinista da União Soviética. O problema é que entre as ideias de Marx e as práticas totalitárias existe uma série de mediações históricas, políticas e de ideias que são deixadas de lado. Assim, se chega a uma conclusão análoga a algo como atribuir a Einstein a responsabilidade pela bomba atômica. A questão que mais interessa, neste momento em que vivemos, não é mais essa, e sim por que o estudante que recusa o marxismo sem ter condições de responder por que é contra o marxismo, ganha notoriedade nacional? Perguntas como essa poderiam encontrar respostas na concepção filosófica do próprio Marx, para quem as ideias e as representações da consciência estão entrelaçadas com a atividade e as trocas materiais. Vivemos em 2013 momentos de contestação e questionamentos acerca das desigualdades sociais que assolam o País. A produção material da vida e as regras que determinam quem ganha e quem perde estão sendo questionadas, e esse embate se reflete também nas ideias e na consciência. Assim, para além de um posicionamento político, a teoria de Marx continua válida nos dias de hoje para explicar esses embates. No entanto, é necessário compreendê-la, e não aceitar acriticamente associações automáticas que se escondem sob o véu da ideologia. Quem perde com isso são aqueles que querem aprender, conhecer e entender o mundo.

Rafael Kruter Flores é Doutor em Administração/UFRGS

Daqui

terça-feira, dezembro 24, 2013

Pedra Bonita, de José Lins do Rego; e algumas memórias

 Terminei na última sexta-feira, a leitura de mais um dos romances do escritor paraibano José Lins do Rego. Minha intenção é ler toda a obra do autor de Menino de Engenho. Talvez, faltem uns quatro ou cinco livros. Tenho tido um êxito considerável. Não tenho seguido um script cronológico. Olho para os volumes disponíveis em minha biblioteca, saco-os e inicio a leitura. Muito simples. Seguindo essa lógica randomizante, o próximo livro a qual lerei será Cangaceiros, de 1953, um dos últimos romances escritos por José Lins; em seguida, pretendo ler Pureza, de 1937, primeiro romance escrito após o término do Ciclo da cana-de-açucar.

A cada livro que termino do escritor paraibano, surge-me uma pergunta: "O que me atrai a José Lins do Rego?". As suas produções são de cunho memorialístico. É estranho a Zé Lins a capacidade de criar a partir de elementos do não vivido, de inovar. As temáticas são recorrentes. Ou seja, aquilo que experimentou, que seus olhos captaram enquanto era moço na Paraíba, nos engenhos de açúcar, transformou-se em bagagem existencial que o seguiu pelo resto da vida. José Lins era um Balzac rural, um descritivista da vida do sertão nordestino. 

Quando penso essas coisas, talvez, encontre um pouco dos motivos que me prendem à sua narrativa. Cresci na zona da mata pernambucana. Vivi lá até os nove anos de idade. E ainda aprisiono dentro de mim as rutilâncias febris da infância: a autoridade dos mais velhos, principalmente do meu pai e do meu avô materno; as brincadeiras com objetos primitivos forjados pela necessidade; os imensos canaviais das terras dos meus avôs; os riachos para as quais eu ia me banhar, ficar horas e horas a fio na água poluta; as árvores variadas e suas estações frutíferas (jaqueiras, mangueiras, jenipapeiros, jambeiros, saputizeiros, cajueiros, ingazeiros, larajeiras etc); os cheiros variados nos invernos imensos; a água que escorria feroz nos meses de maio e junho de cada ano, alargando os fios anêmicos dos regatos; as biqueiras dos telhados que faziam despencar veios arteriais profusos; a sensação de espanto quando ia à cidade; os trabalhadores no corte da cana; a fragrância inconfundível da cana queimada; o barulho do vento na palha dos coqueiros.

Graciliano Ramos e José Lins do Rego
Ou seja, toda aquela planície ensolarada descortinada no texto de José Lins do Rego faz parte de mim. Está contida em galáxias interiores, neste vasto universo do meu ser. Esse cenário abrangente toma conta de mim. Cria conexões. Portas dimensionais são escancaradas e me fio por elas. Posso estabelecer um paralelo comparativo entre Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Com relação ao primeiro, entendo que se trata de um dos nossos maiores escritores de todos os tempos. Com relação ao texto, Graciliano era um depurador de palavras. Seu estilo é inconfundível. Seu texto possui as gradações corretas. A pontuação precisa com a finalidade de criar efeitos estéticos únicos. É um texto que caminha com os pés na terra, medindo cada passo para chegar a determinado lugar com bastante precisão e estudo. Admiro isso. Já José Lins é dono de uma prosa "descuidada". Comete atropelos quanto à regência. Em alguns momentos se delonga em excesso em descrições. Em outros, passa-me a impressão de que está cometendo divagações. Todavia, "os pedaços" dessa prosa singular são conectados e temos um texto que produz sensações elétricas. José Lins sabia contar uma história como ninguém. Talvez, em nossa literatura o caso mais parecido seja o escritor gaúcho Erico Veríssimo.

Terminei a leitura de Pedra Bonita, livro escrito em 1938.Trata-se de um livro de temática religiosa. Aborda um elemento vital do imaginário do povo nordestino: a superstição. A história se passa em algum lugar do estado de Pernambuco, pois as referências aludem a isso. Há a citação de cidades como Garanhuns, Limoeiro, Goiana e Recife, cidades pernambucanas. O vilarejo de Açu reconstitui a arquitetura tão rotineira nas cidades interioranas do Brasil: a vida pacata do povo que se reúne embaixo de uma árvore para especular sobre a vida dos outros; a paróquia no centro da cidade; os coronéis que mandam na cidade; os comerciantes; e a gente comum; a devoção exagerada à tradição erguida pela Igreja Católica.

Como protagonistas temos o padre Amâncio e Antônio Bento, cuja história se ligava a ecos de acontecimentos espetaculosos com a cidade de Pedra Bonita.O jovem Antônio Bento havia sido adotado pelo padre. Era intenção do sacerdote torná-lo padre, mas o sacerdote teve suas intenções inviabilizadas em decorrência das dificuldades econômicas. Antônio Bento, assim, torna-se coroinha da paróquia. Passa a assistir o padre nos trabalhos da igreja. Todavia, a maior parte do povo de Açu não gostava do jovem. Ele era discriminado. Sofria com os debiques dos moradores da cidade.

O fato é que ao final da história, Antonio Bento se ver dividido entre ajudar o padre Amâncio, que estava em seu leito de morte, aguardando outro padre para fazer a confissão; ou se juntar aos seus patrícios de Pedra Bonita, que seriam vitimados pelas tropas do Estado que vinham com fúria para alijar do tumulto gerado por mais um frenesi messiânico. 

O livro possui um realismo duro. O Estado parece como força tirana. Os militares batem sumariamente nas pessoas sem que estas possuam direito ao contraditório. Espancam velhos. Buscam à toda força, lançar por terra os cangaceiros que, também, surgem na história como força antitética aos desmandos do governo. Todavia, acabam se constituindo em mais um "flagelo" do sertão, pois defloravam moças, saqueavam os moradores da terra, alastravam pânico e a especulação de medo por onde quer que passassem.

Em dados momentos do texto, os infortúnio do tempo parecem acometer ao personagem Antonio Bento. A realidade parece sufocar a sua existência. Não há saídas. Existe uma espécie de fado do tempo histórico que é maior do que ele. Antonio Bento não tem saídas. Ele parece ser um joguete do destino. O céu está contra ele; os homens estão contra ele; a história está contra ele. Esse neorrealismo com pitadas de naturalismo, liga Pedra Bonita a Zola ou Aluísio de Azevedo, escritores do século XIX. 

Muito bom o livro, embora não seja um dos melhores de José Lins do Rego.

sexta-feira, dezembro 20, 2013

Uma música "endiabrada" de Charles Mingus

Esta música é um "estouro". Esse George Adams é um ser mágico, de outro planeta. Que voz! Que agonia e desespero elegantes. Que música!

quinta-feira, dezembro 19, 2013

"Habemus Papam" - Por Mauro Saytayana. Uma contribuição contra a imbecilidade

Quando vejo disposições "sacadas" do lugar comum contra Marx, vêm a mim dois sentimentos: primeiro de indignação e, segundo, de consciência da ignorância do oponente. O capitalismo conseguiu cooptar, por meio do deus mercado e da construção de um estilo de vida manco, a naturalização do niilismo e do individualismo massacrante. Tal estilo de vida tem levado o planeta ao colapso e, a humanidade, à barbárie. Confundem experiências ou tentativas de materialização do socialismo com a filosofia de Marx. Marxismo é acima de tudo uma força que busca a liberdade, a humanização e a dignificação do ser humano. Um excelente antídoto (texto) contra o fascismo e a imbecilidade.

 Habemus Papam

Por Mauro Saytayana. Extraído do site do Leonardo Boff.  

Acusado por um conservador norte-americano de ser marxista, Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, negou sê-lo, mas disse que não se sentia ofendido, por ter conhecido ao longo de sua vida muitos marxistas que eram boas pessoas.

A declaração do papa, evitando atacar ou demonizar os marxistas, e atribuindo-lhes a condição de comuns mortais, com direito a ter sua visão de mundo e a defendê-la, é extremamente importante, no momento que estamos vivendo agora.

A ascensão irracional do anticomunismo mais obtuso e retrógrado, em todo o mundo — no Brasil, particularmente, está ficando chique ser de extrema direita — baseia-se em manipulação canalha, com que se tenta, por todos os meios, inverter e distorcer a história, a ponto de se estar criando uma absurda realidade paralela.

Estabelecem-se, financiados com dinheiro da direita fundamentalista, “museus do comunismo”; surgem por todo mundo, como nos piores tempos da Guerra Fria, redes de organizações anticomunistas, com a desculpa de se defender a democracia; atribuem-se, alucinadamente, de forma absolutamente fantasiosa, 100 milhões de mortos ao comunismo.

Busca-se associar, até do ponto de vista iconográfico, o marxismo ao nacional-socialismo, quando, se não fossem a Batalha de Stalingrado, em que os alemães e seus aliados perderam 850 mil homens, e a Batalha de Berlim, vencidas pelas tropas do Exército Vermelho — que cercaram e ocuparam a capital alemã e obrigaram Hitler a se matar, como um rato, em seu covil — a Alemanha nazista teria tido tempo de desenvolver sua própria bomba atômica e não teria sido derrotada.

Quem compara o socialismo ao nazismo, por uma questão de semântica, se esquece de que, sem a heroica resistência, o complexo industrial-militar, e o sacrifício dos povos da União Soviética — que perdeu na Segunda Guerra Mundial 30 milhões de habitantes — boa parte dos anticomunistas de hoje, incluídos católicos não arianos e sionistas, teriam virado sabão nas câmaras de gás e nos fornos crematórios de Auschwitz, Birkenau e outros campos de extermínio.

Espalha-se, na internet — e um monte de beócios, uns por ingenuidade, outros por falta de caráter mesmo, ajudam a divulgar isso — que o Golpe Militar de 1964 — apoiado e financiado por uma nação estrangeira, os Estados Unidos — foi uma contrarrevolução preventiva. O país era governado por um rico proprietário rural, João Goulart, que nunca foi comunista. Vivia-se em plena democracia, com imprensa livre e todas as garantias do Estado de Direito, e o povo preparava-se para reeleger Juscelino Kubitscheck presidente da República em 1965.

1964 foi uma aliança de oportunistas. Civis que há anos almejavam chegar à Presidência da República e não tinham votos para isso, segmentos conservadores que estavam alijados dos negócios do governo e oficiais — não todos, graças a Deus — golpistas que odiavam a democracia e não admitiam viver em um país livre.

Em um mundo em que há nações, como o Brasil, em que padres fascistas pregam abertamente, na internet e fora dela, o culto ao ódio, e a mentira da excomunhão automática de comunistas, as declarações do papa Francisco, lembrando que os marxistas são pessoas normais, como quaisquer outras — e não são os monstros apresentados pela extrema-direita fundamentalista e revisionista sob a farsa do “marxismo cultural” — representam um apelo à razão e um alento.

Depois de anos dominada pelo conservadorismo, podemos dizer, pelo menos até agora, que Habemus Papam, com a clareza da fumaça branca saindo, na Praça de São Pedro, em dia de conclave, das veneráveis chaminés do Vaticano.

Um Papa maiúsculo, preparado para fortalecer a Igreja, com o equilíbrio e o exemplo do Evangelho, e a inteligência, o sorriso, a determinação e a energia de um Pastor que merece ser amado e admirado pelo seu rebanho.

terça-feira, dezembro 17, 2013

As viagens de Gulliver - algumas considerações pós-leitura

Consegui, após três meses de jejum, terminar a leitura de um romance. E não se trata de qualquer romance. Consegui concluí a leitura de As viagens de Gulliver. Tratava-se de um projeto antigo, mas que consegui realizá-lo esta semana. O livro está entre aqueles clássicos imortais da literatura universal. Foi escrito por Jonathan Swift em 1726 e revisado em 1735. Swift escreveu uma espécie de relato de viagem, muito comum à época, com a finalidade de realizar uma crítica cáustica à sociedade europeia - principalmente a inglesa.

É um livro leve, de texto agradável e de uma agudeza mordente. Swift narra as diversas viagens realizadas pelo personagem principal, Gulliver, e a visita inevitável a personagens curiosos que personificavam a sociedade do seu tempo. Com o primeiro naufrágio, Gulliver chegou a um lugar chamado Lilliput, cuja significação pode ser "o país tanto de mentes pequenas quanto de corpos pequenos". Os moradores de Lilliput mediam em média 15 cm. E eram marcados pela pequenez moral. Perdiam bastante tempo com fatos insignificantes. Gulliver acaba sendo traído pelos lilliputianos. Assim, o autor traça um retrato do seu país: da mediocridade e da pequenez que assolava a sua terra; da sociedade firmada em convenções, com um rei bobo e suscetível a influências variadas e perniciosas.

Em Lilliput
 Em seguida, visita a ilha de Brobdingnag, país que constitui uma antítese em relação a Lilliput.  Brobdingnag é a terra dos gigantes. É terra dos sujeitos autossuficientes. Pode ser interpretado que esses gigantes eram os realizados financeiramente e que, consequentemente, constituíam-se em  donos da verdade. Gulliver passa bastante tempo entre Brobdingnag. É exibido como uma animal de estimação.

A terceira viagem se dar a Laputa. Laputa era uma ilha voadora, cujos habitantes viviam assoberbados pelo pensamento, imersos nos cálculos matemáticos e na música. Com relação a Laputa, nota-se claramente a crítica feita aos intelectuais frívolos, que se alimentam de questiúnculas a fim de perpetuarem, com a necessidade de se autoafirmarem. Swift se dirige ao racionalismo científico alienado, mas essa reflexão é trans-histórica, pois em todas as épocas encontramos sujeitos enfatuados por causa  do saber, revestidos de perversidade e presunção. O muito conhecimento  ao invés de vestir determinados indivíduos de candura e humildade, pode fazer com estes mesmos sujeitos se tornem arrogantes e de má índole.
Em Laputa

Na sua quarta viagem, Gulliver encontrou os Houyhnhm, uma espécie de cavalos nobres que cultivavam a inteligência, os ideais de verdade e razão. E aqui nota-se que o livro vai assumindo um tom cético e niilista. No país dos Houyhnhm, Gulliver encontra os yahoos, uma metáfora clara dos seres humanos, movidos por instintos primitivos, gananciosos e irracionais. Nesse quarto bloco da história, Swift não constrói sua crítica apenas contra a sociedade inglesa ou francesa, mas à humanidade como um todo. Os yahoos exatificam aquilo que de mais brutal, banal, frívolo e baixo existe no ser humano. As viagens de Gulliver nesse sentido sai do campo da literatura infantil, como é classificado por muitos, para se tornar numa daquelas sátiras à la Luciano de Samósata, o filósofo romano do segundo século.
Entre os Houyhnhms

No último capítulo do livro, encontramos a seguinte passagem, a qual notamos a crítica explícita ao mundo europeu: "Navios são enviados na primeira oportunidade, os nativos são confinados ou destruídos, seus príncipes são torturados para que entreguem seu ouro; uma licença é dada a todos os atos de desumanidade e lúxuria; a terra fica fedendo com o sangue dos seus habitantes e aquela execrável tripulação de açougueiros empregadas em tão pia expedição é uma colônia moderna enviada para catequizar e civilizar um povo idólatra e bárbaro".

As viagens de Gulliver, dessa forma, tecem uma contundente crítica ao processo colonial e imperialista da sociedade inglesa - e extensível às demais nações europeias, que pilharam os continentes asiático, africano e americano. Há uma citação explícita ao nome de Fernando Cortez, espanhol que foi responsável pelo massacre às civilizações encontradas no México. Cortez subjugou o México em menos de dois anos. A crítica ferrenha à sociedade arrogante e irracional, fundada na moral capitalista, e em pleno auge da Revolução Industrial é clara.
Jonathan Swift

Tendo desenvolvido uma ojeriza aos yahoos (metafóra dos "seres humanos"), Gulliver passou a viver de acordo com as filosofias dos Houyhnhms. Aqui nota-se uma referência à razão iluminista, que tinha o objetivo de reformar a sociedade europeia por meio da razão e fundar uma época baseada na liberdade, igualdade e fraternidade. O resultado nós conhecemos. Assim, a crítica realizada contra os yahoos continua viva, permanente.

P.S. Segundo informação extra-oficial (li isso em algum lugar), As viagens de Gulliver era um dos livros prediletos de George Orwell, que o teria lido mais de onze vezes. 

terça-feira, dezembro 10, 2013

Mosaicos

Minhas férias começam oficialmente na sexta-feira. Mas, já começo a sentir os seus eflúvios soprando suavemente nos vales mais interiores de mim mesmo. Foi um ano cheio. Trabalhei muito. Excessivamente. Ainda estou vivo. O blog - esse espaço para minhas garatujas descompromissadas - anda às moscas. Voltarei a ler. Livros não faltam. Existe uma montanha me esperando: biografias (Tolstói, Malcom X, Hobsbawn, Marx etc); romances (Mario Vargas-Llosa, Swift - que já estou lendo -, José Lins do Rego, Brontë, etc); poesia (João Cabral de Melo Neto); história (Hobsbawn, Darcy Ribeiro, Boris Fausto) etc. Não sei se dará tempo de ler tudo isso. Sinto-me como uma criança numa loja de brinquedos. É muito estímulo, muitas possibilidades. 

Para tirar as teias de aranha deste espaço, resolvi colar um comentário que fiz lá no Facebook no dia de ontem, sobre uma reportagem que li sobre o resultado que o Brasil alcançou na prova do Pisa.

"Este texto assusta! E serve como ecplicação para uma série de problemas com os quais convivemos. O Brasil é um país firmado na desigualdade. E essa desigualdade acaba provocando consequências drásticas no processo formador de nossas escolas. Se por uma lado temos uma escola pública deficitária, com alunos pouco interessados ou mais preocupados com o percentual mínimo para passar de ano, temos por outro lado os filhos da classe média, que sofrem com os mesmos problemas de nossa educação deficitária - só que em escolas privadas(sic). Os mais privilegiados financeiramente buscam garantir por meio de mensalidades estratosféricas, em uma suposta instituição privada "decente", a vaga do filho nos estabelecimentos superiores públicos de educação, quando este terminar a educação básica. Todavia, tal fato não é uma garantia eficaz, pois temos um gargalo sócio-histórico que gera consequências alarmantes. E tais problemas vão desde o processo de formação dos professores, às avaliações que são aplicadas nas escolas. A profissão docente, no Brasil, tornou-se proletarizada; multiplicam-se as instituições de ensino que formam pessimamente os professores; a relação do professor com o aluno ainda é desarmoniosa; quando esta não está fundada na indiferença, está fundada no medo do aluno (cliente) "mandar" no professor (empregado, pois aquele paga o salário deste); ou mesmo de nossos currículos baseados no decoreba e que desestimulam o conhecimento historicamente produzido pela sociedade; ou ainda, problemas sociais sérios que acabam criando a evasão escolar, gerando como consequência uma horda de sujeitos que não entenderam a relevância histórico-cultural da escola. Assim, entendo que quando as políticas públicas são ineficazes no que tange à educação, o Estado se torna responsável por consagrar as desigualdades sociais. Ou seja, o Estado se torna criminoso, porquanto acaba jogando de forma acintosa os mais pobres na ignorância da inoperança histórica. A escola ainda é, para os mais pobres, a única forma de se conseguir a emancipação social. Como dizia Gramsci, é lá que deve atuar a figura do intelectual orgânico, capaz de fazer convergir forças para tornar pública e explícita uma "práxis" contra-hegemônica.

O texto abaixo serve para que reflitamos um pouco. Serve para mostrar o quanto a burguesia brasileira sempre tenta/tentou imitar os modelos estrangeiros. Todavia, essa empresa nunca foi bem-sucedida, pois a sociedade desigual baseada no modelo defendido por ela cria um processo de equidistância e retro-alimentação, colocando-nos numa roda-viva histórica.

O Brasil foi o país que mais evoluiu desde 2003 - período do governo do PT -, mas é preciso caminhar com compromisso e responsabilidade".