segunda-feira, outubro 28, 2019

Algumas percepções sobre "Harry Potter e a pedra filosofal"

Recordo-me quando o fenômeno Harry Potter surgiu. Isso gerou um impressionante movimento de admiração ao personagem criado pela habilidosa J. K. Rowling. Era o ano de 1999 - se não me falha a memória. Nesse período eu frequentava uma igreja protestante. Criou-se, por sua vez, um movimento esdrúxulo de resistência. Segundo os cristãos evangélicos, a obra promovia a feitiçaria. Havia intenções, segundo eles, ocultas no texto da senhora Rowling. 

Harry Potter não era nada inocente. Seu objetivo era promover o ocultismo e desencaminhar os jovens e, principalmente, as crianças para o mundo diabólico da bruxaria. Não lembro se fiz coro com essa tese cinzenta e triste, típica dos cristãos fundamentalistas, que vivem a enxergar feiuras nos mais variados eventos. Todavia, acabei me afastando de uma das maiores criações mitológicas do nosso tempo.

Há uma "magicidade" no pensamento cristão. Nesse sentido, os cristãos não destoam em nada do quadro fantasioso da saga criada pela escritora britânica. 

Farei aqui uma pequena digressão, todavia, em seguida, pretendo explicá-la. Os religiosos criaram uma proposição belicosa contra a obra, pois, segundo eles, ela está cheia de bruxaria e de uma defesa dos poderes ocultos. Ou seja, busca-se criticar o elementos mágicos do livro. Contudo, o que não deixa de ser curioso é que o livro sagrado dos cristãos, também, está cheio de eventos mágicos e extraordinários. A Bíblia está povoada por eventos curiosos que desafiam as leis naturais, todavia, para os cristãos, eles são aceitos como as intervenções naturais do divino na história. Esses eventos não perdem em nada para os acontecimentos espetaculosos da saga Harry Potter. Por exemplo, a Bíblia fala de uma serpente falante em um jardim. Essa mesma serpente foi capaz de ludibriar o primevo casal de humanos, de acordo com o relato mitológico dos judeus. Há ainda a narrativa de uma jumenta que fala. Há a descrição de um dilúvio. De acordo com essa história, todos os animais que existem hoje estiveram dentro de uma arca de madeira. Moisés foi capaz de arrancar água de uma rocha. Os judeus conseguiram atravessar o Mar Vermelho com os pés enxutos. O sol ficou imóvel segundo a narrativa de Josué. Um vale de ossos secos foi transformado, de tal modo que os esqueletos inermes da cena aterradora, voltaram à vida, ganhando nervos, carnes e tecidos. Jonas foi engolido por um grande peixe. No livro de Jó, narra-se uma espécie de meta-história, deixando evidente a disputa em um mundo paralelo pelas atenções dos humanos. É como se a vida material dos seres humanos fosse um mero joguete das decisões que acontecem em um espaço recôndito das esferas espirituais. 

No Novo Testamento, Jesus multiplica pães, caminha por sobre as águas; há uma espécie de eclipse, quando ele morre na cruz. Percebe-se que o evento mágico é algo constante, presente, nos relatos bíblicos. O livro de Apocalipse, por exemplo, descreve de forma apoteótica o drama existente entre as forças do bem e do mal. Ou seja, o livro é uma das criações literárias que mais usam a linguagem mágica e misteriosa na história da humanidade. O livro faz descortinar uma atmosfera cataclísmica do fim da história. Possui, assim, um forte apelo escatológico, como é típico das histórias fantásticas, em que o confronto entre o bem e o mal, sendo que o bem triunfa. Os capítulos finais de Apocalipse trazem uma descrição de como vai ser esse novo mundo pós-escatológico, a chamada Nova Jerusalém. 

Ora, faço essa pequena divagação para tentar justificar o fato de ter ficado tanto tempo distante dos livros do bruxinho famoso. Acabei assumindo uma perspectiva preconceituosa contra os textos de J. K. Rowling, cuja tecitura, hoje, para mim, são de uma genialidade incrível. Impressiona a qualidade da escrita da inglesa de 54 anos. Quando começou a escrever a saga, lá pela metade dos anos noventa, Rowling saíra da casa dos vinte anos e entrara na casa dos trinta. Ela era uma jovem desempregada com uma filha pequena para criar. O texto foi recusado por uma dezena de editores. Havia desconfiança sobre a estrutura da história. Não se sabia se a saga de Harry Potter, Hermione Granger e Ronald Weasley adquiriria algum interesse no grande público. Todavia, ao ser lançado, o livro teve um sucesso imediato. A inglesa trabalhou durante aproximados oito anos, escrevendo sete obras até o ano de 2007 - A pedra filosofal, A câmara secreta, O prisoneiro de Azkhaban, O cálice de fogo, A ordem da fênix, O enigma do Príncipe e As relíquias da morte

Terminei a leitura de Harry Potter e a pedra filosofal. Fiquei com uma forte impressão positiva. O texto possui uma linguagem simples, direta, menos prolixa que a de J. R. R. Tolkien. A linguagem rowlingiana está mais próxima dos escritos singelos de C.S. Lewis, outro inglês que certamente a influenciou. Vale mencionar que Tolkien criou as histórias da Terra Média, tendo em O senhor dos anéis a principal referência. Já Lewis criou Nárnia e as sete de narrativas sobre esse mundo mágico e carregado de eventos simbólicos. 

No texto de Rowling também há importantes questões a serem trabalhadas como, por exemplo, a honra, a responsabilidade ética; a condição do herói perante o desconhecido; a crítica aos totalitarismos e os separatismos, já que a luta do vilão - Lord Voldemort - é para eliminar todos aqueles que não são bruxos de sangue puro; a amizade como um dom. A capacidade de não se deixar vencer pelo mal. O triunfo da verdade. 

O fato é que fiquei "enfeitiçado" pela linguagem simples de uma literatura que aviva a fantasia e nos convida ao prazer. Em outro momento, quero escrever um pouco mais sobre a personagem Harry Potter, para quem há uma quantidade de enorme de questões a serem tratadas. Vamos à Câmara Secreta

segunda-feira, outubro 21, 2019

O neoliberalismo é uma bomba prestes a explodir - o caso chileno

Vista de Santiago. Ao fundo, a Cordilheira dos Andes 
Estive no Chile em julho de 2015. Tenho boas lembranças de lá. Passei cinco dias na capital do país, Santiago. Além de Santiago, tive a oportunidade de ir à moderna - e com aspecto de balneário - Viña del Mar. Foi de lá que guardei as primeiras imagens do Oceano Pacífico. Pude sentir as suas frias águas. Depois, desloquei-me com a minha esposa à vizinha Valparaiso, que se espalha, derrama-se, por uma colina e passa a impressão de que está tentando fugir das águas do grande Oceano. Valparaiso é uma cidade evocativa. Suas ruas abrigam belas páginas da história do país. Nela podemos encontrar uma das residências do maior ícone literário do país, o poeta Pablo Neruda. Há um um dos principais portos da América Latina. No passado, já foi um dos mais importantes do mundo. 

O Chile passou a impressão de que possuía um modelo que funcionava. Para o observador comum, trata-se de um país bonito e aparentemente organizado. A modernidade chegou à cidade de Santiago. Há prédios enormes e espelhados. Os engarrafamentos são atordoantes ao final do dia. As ruas ficam repletas de estudantes e pessoas de todas as idades que caminham em meio aos carros. Os ônibus longos passam liberando nuvens de um fumaça escura. O metrô possui inúmeras linhas segmentadas por cores e atravessa toda a cidade. Tive a oportunidade de ir a vários locais utilizando esse meio de transporte. Os chilenos são simpáticos e dão mostras de que trabalham bastante. Há uma quantidade grande de bancos espalhados pela capital. As construções públicas misturam a estética latino-americana ao rigor da modernidade de qualquer grande cidade do mundo. 

Certa vez, escutei o ex-jornalista da Rede Globo Alexandre Garcia incensar, com babosos elogios, a economia chilena e os avanços sociais do país (sic.). Já tive a oportunidade de conversar com algumas pessoas que defenderam o modelo do Chile para que fosse adotado pelo Brasil. O que paira no senso-comum é a noção de que o Chile é uma ilha, uma espécie de oásis  na desigual e caótica América Latina. O país estaria bem à frente dos outros países do continente. As pessoas por lá seriam mais felizes e haveria uma forte promoção de bem-estar no país que consolidou a racionalidade econômica de mercado em toda a sociedade. 

O atual governo brasileiro, do alto de sua inabilidade administrativa e de sua sanha privatista, possui um entusiasta do modelo chileno. O banqueiro especulador e, depois, ministro da fazenda Paulo Guedes, um dos "cérebros" pavimentadores da lógica econômica do bolsonarismo, foi um dos articuladores do modelo chileno. No final dos anos 70 e início dos anos 80, durante a Ditadura de Pinochet, Guedes e outros economistas neoliberais da chamada Escola de Chicago fizeram do país um laboratório para as investidas privatistas, que desarticularam toda a política social do estado chileno, entregando-a aos especuladores do mercado. Ou seja, o mesmo que o bolsonarismo pretende aplicar no Brasil, se não houver uma reação popular por parte dos trabalhadores. No entanto, acontece que a bomba social não estoura de imediato. Passam-se anos até que os dejetos dessa política deletéria sejam produzidos. 

O que acontece é que começaram a chegar notícias de insatisfações por parte dos chilenos. Desde sexta-feira passada, que o país enfrenta ondas pesadas de protestos. O país não é um oásis como se pensava; é um grande deserto para boa parte das pessoas. Não há a satisfação de uma social democracia no país, mas padrões neoliberais aplicados em todos os setores da vida. 50% da população vive com menos que um salário mínimo. Os serviços públicos são quase inexistentes.  As universidades são públicas, mas quem quiser frequentá-las, precisa pagar mensalidade. Ser público não significa ser gratuito, como acontece no Brasil. Não há um SUS como no Brasil, pois a saúde também é paga. O fato de ser paga não garante que é de qualidade como, infelizmente, reza o senso comum no Brasil. Os planos de saúde são caríssimos no país. Ficar doente ou precisar de uma intervenção mais cara, significa ficar por muito tempo endividado. Há como que uma proibição de se ficar doente. Os direitos trabalhistas foram "destruídos". Não existe uma proteção aos trabalhadores. 

Os patrões se veem cada vez mais empoderados, porquanto a legislação não favorece a parte mais fraca da relação. Os sindicados são "inofensivos". A legislação permite a existência de milhares de sindicatos. Por exemplo, é possível que para uma categoria existam de 30 a 50 sindicatos. Os patrões negociam com aqueles que estejam rendidos aos interesses dos próprios patrões. Não há poder de barganha. As aposentadorias não fazem parte de um fundo público, como no Brasil que possui uma autarquia pública (INSS) para gerenciar essas aposentadorias e pensões. Na verdade, o que existe no Chile é uma entidade do mercado que gerencia os valores descontados dos trabalhadores e se utiliza disso para aplicar no mercado por meio de especulações. Geralmente, quem está a serviço da administração desses fundos, é donos das entidades do setor financeiro - bancos etc. Então o que se dá é que o dinheiro dos trabalhadores é utilizado pelo mercado para gerar mais dinheiro para o rentismo. Quando se aposentam, os trabalhadores se veem numa condição de penúria. O número de suicídios entre os idosos é recorde na América Latina. 

Pintado esse quadro, é possível intuir o porquê dos manifestos existentes no Chile. O que acontece é que isso próprio de experiências neoliberais, que ao invés de produzir bem-estar e riqueza social para o povo, produz riquezas para um grupo de apaniguados gananciosos; que aplicam receitas empobrecedoras e geradoras de miséria para boa parte de uma sociedade. A lógica do capital sob o signo do neoliberalismo é produzir ganhos incalculáveis para uma porcentagem pequena do setor financeiro. O neoliberalismo produz a depauperação do trabalhador, deixando-o desprotegido e, se possível, na informalidade. Sua especialidade é a ampliação das desigualdades sociais e, com isso, os conflitos tornam-se inevitáveis. É como vemos no Chile, no Equador e, logo mais, no Brasil. 

Alguns dados fora tirados daqui