domingo, agosto 31, 2014

A naturalização do cotidiano e a política

















Karel Kosik diz em sua Dialética do Concreto algo essencial: "O indivíduo não é apenas aquilo que ele próprio crê nem o que o mundo crê; é também algo mais: é parte de uma conexão em que ele desempenha um papel objetivo, supra-individual, do qual não se dá conta necessariamente". (KOSIK, 1976, p. 62). Com isso, o pensador marxista nos deixa a ideia de que existe uma realidade a qual o homem comum perde o contato em seu cotidiano. Mas o que é essa cotidianidade? 

Na cotidianidade vivem todos os homens. Cotidianidade não é o espaço privado prevalecendo sobre o espaço público. Para ele "a vida de cada dia tem sua própria experiência, a própria sabedoria, o próprio horizonte, as próprias previsões, as repetições, mas também as exceções". Os homens vivem esses fatos e se acostumam a tais eventos, entendendo, que as coisas são aquilo que são. Que não existe uma outra forma de ser. Ou seja, a vida objetiva passa a criar uma instintividade mecânica em relação às coisas e ao mundo. 

O homem, assim, acaba criando um para si, em que considera a realidade como o seu próprio mundo, pois sua visão sobre as coisas se tornam eventos familiares. O sujeito acostumado com o aparente não consegue divisar a existência de outro mundo, de outra forma de ser possível à realidade. A vida calcada no cotidiano e fincada no aparente, sem que tenha uma expectativa da essência, leva o homem a naturalizar determinados acontecimentos. A naturalização dos fatos, leva o sujeito ao comodismo; à incapacidade para fazer julgamentos sobre qual a relação que o seu cotidiano tem com a história.

Um exemplo disso é o hábito que o sujeito moderno tem de colocar o dedo no interruptor de luz e acender ou apagar, sem se dar conta de que por trás de tal ação existe uma cadeia histórica. Ou quando liga a torneira e ver a água jorrando, sem se dar conta do processo que trouxe a água até à sua casa. Sartre menciona esse processo de naturalização tão comum da vida burguesa em seu romance existencialista A Náusea. Os jovens de hoje naturalizaram a consciência de que o mundo é da forma que eles veem; que os celulares são um elemento que acompanha a humanidade desde as mais remotas datas. Não saberiam viver sem os aparelhos, pois acabaram naturalizando a existência desses objetos portadores de fetiche. 

Quando penso estas coisas, me vêm à mente uma afirmação de José Carlos Libâneo em sua famosa Didática. O educador afirma em tom althusseriano que "O sistema educativo, incluindo as escolas, as igrejas, as agências de formação profissional, os meios de comunicação de massa, é um meio privilegiado para o repasse da ideologia dominante". Poderíamos completar afirmando: "para a naturalização do mundo". Em seguida, o educador nos propõe que desconfiemos nas seguintes afirmações:

(1) O Governo sempre faz o que é possível; as pessoas é que não colaboram;
(2) Os professores não têm que se preocupar com política; o que devem fazer é cumprir sua obrigação na escola;
(3) A educação é a mola do sucesso, para subir na vida;
(4) Nossa sociedade é democrática porque dá oportunidades iguais a todos. Se a pessoa não tem bom emprego ou não consegue estudar é porque tem limitações individuais;
(5) As crianças são indisciplinadas e relapsas porque seus pais não lhes dão educação conveniente em casa;
(6) As crianças repetem de ano porque não se esforçam; tudo na vida depende de esforço pessoal;
(7) Bom aluno é aquele que sabe obedecer (LIBÂNEO, 2008, p.20)

As afirmações são aplicadas no contexto do mundo da educação, mas, na vida cotidiana, poderíamos ampliar a lista, sem esquecer que muitas dessas premissas são construídas pelos meios de comunicação de massa e acabam ganhando um grau de verdade inquestionável:

(1) Política não presta; político é tudo corrupto; 
(2) Se passou na televisão é por que é verdade; não há o que se discutir;
(3) A violência é um problema que é resolvido pela presença da polícia;
(4) Os menores são os responsáveis pela violência nas grandes cidades;
(5) O Brasil é um país que não dar certo; nada presta por aqui;
(6) Comunismo, marxismo e socialismo são símbolos de ditaduras; 
(7) Manifestação ou reivindicação social é um movimento orquestrado por "vândalos" e "vagabundos";
(8) Você é capaz de ter sucesso na vida; para isso é só se esforçar que você consegue;
(9) Só é pobre quem quer, pois é só trabalhar;
(10) Deus sempre ajuda aquele que ora;
(11) O mundo sempre foi assim; não tem como mudá-lo; 
(12) "Sou brasileiro e não desisto nunca";
(13) Somos uma democracia racial; 
(14) A desigualdade social é um problema de gestão;
(15) O mundo pode ser "consertado"; para isso, basta eu fazer a minha parte; 

A lista poderia continuar. Esses são apenas algumas frases que me ocorreram. Kosik ainda afirma: "A alienação da cotidianidade reflete-se na consciência, ora como posição acrítica, ora como sentimento do absurdo. Para que o homem possa descobrir a verdade da cotidianidade alienada, deve conseguir dela se desligar, liberá-la da familiaridade, exercer sobre ela uma "violência"".(p.78). Por violência, entenda-se a capacidade de "ver a própria face e conhecer o próprio mundo", destruindo de uma vez por todas a naturalização - a pseudoconcreticidade. 

sábado, agosto 30, 2014

Marilena Chauí e sua reflexão sobre a classe média

Que lucidez! É justamente essa mesma classe média que, hoje, busca "arrancar" o PT do poder. Como diz a Marilena Chauí, "os programas sociais dos últimos dez anos balançaram a cabeça da classe média", pois ela viu pobre ir para aeroporto - gente que ela via pelo vidro do carro nas periferias, nas favelas; gente que não tinha perspectivas e passou a frequentar a faculdade. Então essa mesma classe média entrou em pânico, pois sentiu que o seu espaço foi invadido. E se existe um medo que terrifica a classe média é o medo da proletarização. Pois ela é patrimonialista, privatista dos espaços públicos. Dentro do seu carro, ela se sente "blindada" do mundo. Ela é funcionalista em essência e acha que a ordem do mundo e da história se auto-regulam. E tudo aquilo que é colocado como contradição e, necessariamente, altera essa ordem, é visto como uma ameaça à estabilidade. Talvez isso explique o desejo sanguinário pela redução da maioridade penal; ou a adoção da pena de morte; e a criminalização aos movimentos sociais. 

Pois ela entende que ordem e a propriedade devem ser defendidos pela repressão. Olhando o cenário eleitoral atual, entende-se claramente o desmazelo da candidatura do Aécio, que não decola (claro, somente os aviões do aeroporto particular da família construído com dinheiro público); e como a Marina é o nome possível capaz de derrotar o Governo do PT, criou-se um entusiasmo em torno do nome dela. O que está em jogo é um projeto de desmantelamento do Estado brasileiro e a destituição de um Governo que tirou mais de 40 milhões da linha pobreza; e trouxe ao debate temas caros à sociedade brasileiro, claro, apesar de ter silenciado em outros em nome da governabilidade. Se fosse outro nome que estivesse no lugar da Marina e fosse capaz de derrotar o PT, esse nome teria apoio. Se um poste ou uma árvore, o poste e árvore seriam eleitos, "pois se vence o PT, então eu quero". O ex-colunista da Veja, Diogo Mainardi, já se posicionou dizendo que é Marina até a posse da candidata. Diante dos fatos, é preciso distinguir os acontecimentos. Daí os conceitos sobre a classe média de abominação ética, porque violenta e conservadora; abominação política, porque fascista; e abominação cognitiva, porque ignorante. Ser classe média não é apenas um dado estatístico, mas também uma condição moral. 

quinta-feira, agosto 28, 2014

Diários de Motocicleta e "o outro lado do rio"

E não haveria ação humana se não houvesse uma realidade objetiva, um mundo como "não eu" do homem, capaz de desafiá-lo; como também não haveria ação human se o homem não fosse um "projeto", um mais além de si, capaz de captar a sua realidade, de conhcê-la para transformá-la. Paulo Freire in Pedagogia do Oprimido.

Há alguns sábados atrás eu assisti, pela terceira vez - talvez -, ao filme Diários de Motocicleta (2004), do brasileiro Walter Salles. Após ter visto o filme e refletido sobre ele, não consigo tirá-lo de minha cabeça. Não consigo me deslindar dos temas profundos e ao mesmo tempo pela beleza plástica das cenas, que têm uma preocupação de mostrar o continente sul-americano. O filme nos conta a história do jovem Ernesto Guevara, que mais tarde seria conhecido como "Che". 

Estudante de Medicina e filho de uma família de classe média argentina, Ernesto decide fazer uma viagem de moto ao lado do seu amigo Alberto Granado, repleta de metáforas políticas e existenciais que definiriam o seu futuro. Aquilo que no início era apenas um intento juvenil aventureiro, aos poucos vai mudando quando os jovens companheiros entram em contato com as mais destacadas e imorais explorações e misérias. Empresas estrangeiras se apropriam das riquezas minerais do continente e, para isso, exploram os trabalhadores que vivem em uma situação de penúria. São expulsos de suas terras. Ficam sem moradia. E são forçados a marcharem errantes de braços dados com a incerteza. Isso se dá, por exemplo, em regiões campesinas do Peru. As injustiças perpetradas contra os indígenas emociona. O drama de famílias que são separadas pela miséria, vai lapidando o olhar do jovem Ernesto. 

Um dos momentos mais bonitos e simbólicos do filme acontece quando Ernesto e Alberto conversam, após terem chegado a um lugar onde se internam pessoas leprosas. O lugar era cuidado por religiosas católicas. Havia o rio que se interpunha entre as pessoas que não tinham lepra e aqueles que eram portadores da enfermidade. O diálogo se dar da seguinte forma:

- Viu o rio? - diz Ernesto.
- Claro. - responde o seu amigo. Ao que Ernesto acrescenta:
- Ele separa os doentes dos sãos.

Mais tarde, quando os habitantes da comunidade ribeirinha resolvem fazer uma festa de despedida para os dois amigos que haviam auxiliado de forma fantástica os doentes do lugar, o jovem argentino diz as seguintes palavras: 

Apesar de nossa insignificância para sermos porta-vozes de vossa causa, acreditamos, e depois desta viagem com mais firmeza ainda, que a divisão da América em nacionalidades vagas e ilusórias, é totalmente fictícia. Constituímos uma única raça mestiça do México até o estreito de Magalhães.E, assim, me despindo de qualquer provincialismo, eu brindo pelo Peru. E pela América unida. 

Trata-se de um dos momentos mais bonitos do filme. É quando a opção, a escolha do jovem aventureiro se enquadra. É noite e Ernesto deixa a comemoração e sai para ver o grande rio. O amigo Alberto o segue. E aqui encontramos a decisão ontológica necessária. Fuser, como era chamado pelo amigo Alberto, pergunta: 

- Sabe onde está o barco? O amigo responde:
- Não, não estou vendo.
- Vou comemorar meu aniversário do outro lado. - completa o jovem Che.

Esta fala completa a sua percepção. E aqui notamos o compromisso histórico assumido em favor dos injustiçados, dos doentes, dos que não são. Florestan Fernandes costumava dizer que só existem duas posições em política: ou se está ao lado dos oprimidos ou se está ao lado dos opressores. A via do meio é a via da omissão histórica; é a via do pequeno burguês metido em seu medo crônico, em seu conservadorismo tacanho e reacionário. 

A escolha subjetiva se faz a partir de uma relação dialética com a realidade. Não se pode pensar em objetividade sem subjetividade. Os homens necessariamente, no dizer de Paulo Freire, atuam correspondentemente por meio da "relação dialética subjetividade-objetividade". O meu olhar se faz a partir da relação que tenho com o mundo objetivo. A reflexão libertadora acontece quando percebo a minha práxis, a minha prática, sobre a história a fim de que a minha ação seja capaz de romper a barreira entre opressor e oprimido. Ou como dizia Marx: "O critério de verdade é a prática". 

Quem não experimentou, visualizou ou testemunhou a contradição existente na sociedade, jamais sairá do subjetivismo e do objetivismo, como dizia Paulo Freire. O primeiro é a "objetividade dicotomizada da subjetividade"; e o mesmo fenômeno se dá com o subjetivismo. Ora, quem faz uso do objetivismo e do subjetivismo cai em um simplismo ingênuo, incapaz de reconhecer a contradição posta na história. Dizer que "o rio separa os doentes dos sãos" é identificar a "rachadura" que existe no mundo social. E mais tarde dizer: "vou comemorar meu aniversário do outro lado", é tomar uma decisão ontológica baseado na dialogicidade entre o objetivo e o subjetivo.

Quando penso nisso, entendo o porquê de muita gente ter raiva do socialismo, do marxismo ou do comunismo. Pois, estes sistemas entendem que existem leis que regem a materialidade. Que a realidade não é construída apenas com subjetivismos inconsequentes e apressados ou com objetivismos pragmáticos, apenas.

E, ao final do filme, encontramos a maravilhosa música do uruguaio Jorge Drexler, que tenho escutado como nunca nas últimas semanas. Há algumas semanas atrás corri doze quilômetros ouvindo repetidamente essa música. Chorei diversas vezes. E, assim, vamos treinando o nosso olhar e lançando os remos no lago. Abaixo a bela música - Al otro lado del rio.


quarta-feira, agosto 27, 2014

Marina, Collor, o discurso de 'uma nova política" e a conjuntura

O vídeo abaixo é emblemático. Veja-o antes de continuar (se for do seu interesse). No bojo de seu discurso, há uma ressonância, uma aproximação com o discurso da candidata Marina Silva. Em 1989, em certo momento da disputa eleitoral, fortalecido pelo apoio midiático (leia-se Rede Globo), Collor dizia que não havia nem esquerda nem direita. Sua forma de fazer política era nova e mudaria necessariamente o país. Traria o progresso. Colocaria o Brasil em patamares novos. Enxugaria a máquina administrativa, iniciando um processo de doutrinarização neoliberal. Criaria empregos, construiria um país mais digno e solidário. Um discurso verdadeiramente leniente a determinados setores. A classe média comprou a ideia, pois via em Lula, ou seja, na possibilidade de contradição, um resultado nefasto. O conservadorismo, o moralismo, o reacionarismo, a incapacidade de pensar dialeticamente, levou o Brasil a enfrentar um dos momentos mais críticos de sua história recente. Não sei se sou o único, mas visualizo este mesmo discurso, esta mesma conjuntura impregnada na pretensa humildade de Marina Silva. Política no Brasil é feita, acima de tudo, com "marketing".
O discurso fragmentário de determinadas figuras ilude os eleitores. O "sistema de perito", conceito de Anthony Giddens, cria uma pretensão de legitimidade na fala de determinados sujeitos, sem que avaliemos os resultados de tal discurso. Marina Silva se aproveita de um momento iniciado o ano passado, nas manifestações de junho, aquele movimento inorgânico que desejava a extinção da política; em que muita gente tomou paulada por estar com "uma camisa vermelha", mostra o quanto os brasileiros não entenderam ainda que "política se faz com mais política". Aqueles que foram às ruas, possivelmente, sejam os que, hoje, elegem a Marina. São os descontentes, que embarcaram numa aventura. A tentativa de eliminação do conceito de política é um grande equívoco. Mesmo quando digo que não gosto de política, este já é um comportamento político. A política é uma relação com o poder. Ela pervade a vida social dos homens. Desprezar a política é desprezar uma dimensão inerente ao ser humano.

Herbert José de Souza, o Betinho, como era mais conhecido, escreveu um livrinho importante chamado "Como se faz uma análise de conjuntura" (Editora Vozes, 26a. edição, 2005). Ele diz que para se fazer uma análise de conjuntura são necessárias algumas categorias: "Acontecimentos, cenários, atores, relação de forças e articulação (relação) entre estrutura e conjuntura".

(1) Acontecimentos - é importante se distinguir fato de acontecimento. Fato é aquilo que se dá de forma banal. Por exemplo, o beijo de uma casal pode ser um fato comum, mas o beijo de Judas foi um acontecimento, pois teve consequências políticas. Na análise de conjuntura é importante distinguir os acontecimentos, conquanto são eles que determinam os efeitos e consequências sobre a vida de milhões de pessoas. A importância da análise dos acontecimentos é fundamental para indicar a percepção que uma sociedade ou grupo social, ou classe tem da realidade e si mesmos.

(2) Cenários - a trama social acontece em determinado contexto, em determinados espaços, que podem ser considerados como cenários. Identificar cenário é importante para perceber onde se trava a luta. Quando um determinado governo ou grupo consegue esfacelar um movimento contrário, mudando o cenário do embate, certamente ele levará vantagens sobre o movimento. Quando o governo desloca o conflito das ruas para o gabinete ele, inevitavelmente, levará vantagem, pois mudou o cenário e, ali, é o seu local estratégico de ação.

(3) Atores - o ator é alguém que representa, que encarna um papel dentro de uma trama. Um determinado indivíduo será um ator quando ele representara algo para a sociedade. Ele encarna um projeto, uma ideia, uma reivindicação, uma promessa. Um partido político, uma classe social, uma categoria, um sindicato, uma corporação, pode ser um ator social.

(4) Relação de forças - há um tensionamento constante na sociedade em decorrência do jogo de interesse de uma classe social, de um grupo diferente. Essas relações podem ser de coexistência, de cooperação, de confronto e estarão sempre revelando uma relação de força, de domínio, de igualdade ou subordinação.

(5) Relação entre estrutura e conjuntura - "A questão aqui é que acontecimentos, a ação desenvolvida pelos atores sociais, gerando uma situação, definindo uma conjuntura, não se dão no vazio: eles têm relação com a história, com o passado, com as relações sociais, econômicas e políticas estabelecidas ao longo de um processo mais longo. Uma greve geral que marca uma conjuntura é um acontecimento novo que pode provocar mudanças mais profundas, mas ela não cai do céu, ela é o resultado de um processo mais longo e está situada numa determinada estrutura industrial que define suas características básicas, seus alcances e seus limites. Um quadro de seca no Nordeste pode marcar uma conjuntura social grave, mas ela deve ser relacionada com a estrutura fundiária que, de alguma maneira, interfere na forma como a seca atinge as populações, a quem atinge e como". Por exemplo, a falta de água em São Paulo não é um problema apenas de falta de chuva. Está relacionada com a ausência de investimentos. Ou seja, a conjuntura está posta e pode ser entendida a partir da relação dos acontecimentos, dos atores e das forças. Betinho ainda diz: " É fundamental perceber o conjunto de forças e problemas que estão por detrás dos acontecimentos. Tão importante quanto apreender o sentido de um acontecimento é perceber quais as forças, os movimentos, as contradições, as condições que o geraram".

Assim, a história é feita por um fluxo em que as coisas objetivas refletem sobre as subjetivas. Esse novo jeito de fazer política da Marina é, no fundo, um discurso que serve politicamente a determinados grupos. Muitos daqueles que vão votar nela estão sendo induzidos por um movimento criado para "destituir", para alijar, para "derrubar o PT" custe o que custar. Perguntar com honestidade o porquê desse comportamento induzido, levará o oponente inevitavelmente a dizer (o discurso é de reificação): "mensalão", "corrupção", "comunismo", "me cansei do PT e da Dilma". Todavia, essas questões são menores do que o bom momento pelo qual o Brasil passa. Há meses atrás minha esposa esteve na Espanha e me contou que lá, idosos fazem trabalhos informais nas ruas para ganhar moedas para comprar o pão de cada dia. Acredito que não estejamos numa situação pior, apesar do caminho longo que precisamos percorrer. O Brasil é um país com muitos problemas. Talvez, os clamores que acontecem hoje venham a se resolver daqui a duzentos ou trezentos anos. Não sejamos ingênuos. A história anda aos saltos. Ela carrega no presente os elementos do passado. E o futuro estabelece uma aglutinação entre passado e presente, criando uma nova realidade, tendo elementos de todos os movimentos. A história não mente. Não esqueçamos de olhar que tipo de atriz é a Marina a essa altura do campeonato. Analisemos os fatos e cheguemos a uma conclusão sobre a presente conjuntura.

domingo, agosto 17, 2014

Uma pensata matinal sobre o antipetismo, o antiesquerdismo etc...

"Os homens usam o dinheiro e com ele fazem as transações mais complicadas, sem ao menos saber, nem ser obrigados a saber, o que é dinheiro. Por isso a 'praxis' utilitária imediata e o senso comum a ela correspondente colocam o homem em condições de orientar-se no mundo, de familiarizar-se com as coisas e manejá-las, mas não proporcionam a compreensão das coisas e da realidade" (Karel Kosik, in "Dialética do Concreto"). Vejo a maior parte dos argumentos contra o PT como um problema de foco. Estamos acostumados a enxergar somente a aparência dos fenômenos, sem ir a fundo na consecução que proporcionou a existência desse mesmo fenômeno. Nós somos resultado de um processo caudaloso de eventos que, consequentemente, determinam uma forma de ver e estar no mundo. E isso forma a nossa ontologia - o que somos, quais as nossas preferências, o porquê de gostar de determinada música, o porquê de pertencer a determinada religião ou gostar de determinada comida. Definitivamente, eu não existo desgarrado dos fatos sociais. Se sou capaz de enxergar um poema onde outra pessoa ver apenas um fato banal, isso é qualidade do olhar proporcionado pela história. Ou seja, é necessário sair da leitura enviesada e que somente enxerga  a aparência (a pseudoconcreticidade), para uma leitura da essência. 

Assim, penso que as opiniões contrárias ao PT sejam resultado justamente daqueles que apenas olham para "a casca dos fatos", sem contudo atentar para a essência das coisas. E quando falo sobre essência, refiro-me à história. Contra a história não há argumentos, pois ela está pautada na materialidade. É necessário sair da caverna das aparências e enxergar na luz os fenômenos que formam a realidade. É necessário ser humilde para reconhecer a nossa ignorância sobre determinados assuntos.  Apenas para ilustrar: sou pernambucano e vivi a minha infância à luz de candeeiro. Hoje, muita gente do sertão e do agreste pernambucanos tem energia graças ao programa Luz para todos do governo Lula-Dilma. Quem se apressa em falar sem conhecimento, acaba falando o desnecessário, fazendo consequentemente que seu argumento caia no lugar comum. A melhor forma de entender o PT ou o PSDB é estudando os nossos quinhentos anos de história. Quem nunca viajou ao interior pobre do Brasil (Nordeste, Norte) - não me refiro às capitais, às praias; quem nunca passou necessidade, quem tem o seu emprego e tem as suas necessidades de pequeno burguês supridas, não tem direito a falar mal do PT.

quinta-feira, agosto 14, 2014

Um mistério chamado Machado de Assis

Terminei a leitura de Papéis Avulsos (1882), de Machado de Assis. E ficou posta em mim uma admiração indefinida. Ler contos como O alienista, Teoria do medalhão, O empréstimo, A sereníssima república e O espelho, deixou-me por dias absorto com a elegância e o controle da narrativa por parte da pena do escritor. Machado foi um literato cuja limpidez e pureza do texto impressionam. O escritor carioca, com certeza, foi uma das mentes mais brilhantes que já produziram literatura. Pensando na grandiosidade de Machado, resolvi reler a sua obra em prosa - ou pelo menos aqueles livros que li há muito tempo e a memória não coou os fatos e tudo se diluiu pelas frestas do esquecimento. Após terminar Papéis Avulsos, comecei a leitura de Ressurreição. Este livro é a primeira obra em prosa do escritor. É um livro cujo estilo ainda está preso no artificialismo romântico. Machado parece fazer um ensaio estilístico para a produção de suas grandes obras.

E essa mesma tendência vai se dá nos próximos dois romances - A mão e a luva (1874) e Helena (1876). São livros que mostram a mulher idealizada. Uma expectativa irreal sobre o ser humano. É um texto que exalta as senhoras de belos vestidos e falas grandiloquentes; os salões; os teatros; e o todo charme burguês. As personagens parecem bonecos programados que reproduzem falas técnicas em excesso e vivem de infelicidade em infelicidade até encontrar o bendito amor.  Em dados momentos, a coisa chega a provocar riso. Mas, ao fundo, enchergamos a sociedade com os seus caprichos e sua hipocrisia ocultada pelo pó, pelas falas artificiais e pelo luxo fútil. 

Machado parece ser um mistério. Como um garoto suburbano, de origem humilde, gago, mulato, de aspecto frágil, epilético, chega se tornar um monstro capaz de produzir livros como Memórias Póstumas de Brás Cubas, Quincas Borba ou Memorial de Aires? E maior mistério se dá a partir do final da década de 70 do século XIX. É neste marco cronológico que notamos o crescimento exponencial à estatura de um colosso. Se Machado tivesse ficado apenas a produzir livros com o sabor daqueles produzidos na primeira fase, hoje ele seria um escritor menor. Em 1881, Machado lançou Memórias Póstumas. Acredito que este seja um dos livros mais densos em ironias, sarcasmos, erudição e vocacionado para uma análise profunda da sociedade brasileira. O livro possui uma escrita singela. Acompanhamos o seu fluxo e parecemos ouvir o marulhar das águas de um rio, dado à grandeza e transparência do texto. Machado decanta as palavras. Esmerila. É uma artesão preocupado com a fluência e com perspicácia do foco narrativo. Fala de coisas profundas com uma linguagem imaculadamente simples e pura. Como que em dez anos, alguém consegue mudar de forma tão profunda?

Há quem diga que mudança se deu por causa de Carolina, sua esposa. Eles casaram em 1869 e ficaram juntos até 1904, ano em que ela morreu. Carolina Augusta Xavier de Novais era portuguesa e bastante culta. Segundo alguns historiadores, ela foi responsável por apresentar a literatura inglesa para Machado. Foi por intermédio dela que ele teve acesso ao texto de Sterne e nomes importantes que foram definitivos, como Swift; nomes responsáveis pelo amadurecimento da segunda fase literária do escritor.

O fato é que cada página que leio de Machado de Assis, mais me fica a certeza de que ele é um daqueles escritores que cada minuto com ele nos enriquece para que tenhamos uma visão mais apurada do ser humano. Ele era uma espécie de Dostoiévsky carregado de ironias. Há tesouros inesgotáveis em seus escritos. Os seus contos à la Maupassant, não perdem em nada para os grandes contistas da literatura universal. Ele conseguiu dominar o gênero e produziu livros de leitura obrigatória como Papéis Avulsos, Histórias sem data, Páginas recolhidas e Relíquias de casa velha.

sábado, agosto 09, 2014

Uma reflexão de aniversário

João Pessoa - PB - janeiro de 2013
"E, ao final de nossa longa exploração, chegaremos finalmente ao lugar de onde partimos e o conheceremos então pela primeira vez". T.S. Eliot.

Há alguns dias, vi pela décima vez, o filme Sociedade dos poetas mortos, uma das produções mais encantadoras que conheço sobre o verdadeiro sentido da vida. E existe aquela cena em que o professor leva os alunos até o pátio da escola e mostra aqueles que haviam estudado em tempos passados. O professor pede para que os alunos olhem aquelas fisionomias cristalizadas pelo tempo. Aqueles sorrisos despreocupados e saudáveis como se a vida seguisse um fluxo contínuo e que nunca teria fim; como se nunca fôssemos deixar de viver esse ritmo, essa energia luminosa. Ao dar continuidade à sua lição, ele pede para que os alunos se aproximem da fotografia para ouvir o cada um daqueles seres que "fermentavam narcisos", naquele momento, estariam a dizer. Eles obedecem e escutam um sussurro sendo pronunciado pelo professor: "Carpe diem, meninos! Tornem as suas vidas extraordinárias!"

E é pensando justamente nessa afirmação que completo mais um ano de vida. Chego aos trinta e cinco anos e analiso a longa trilha por onde caminhei. As marcas da poeira ainda estão em meus pés. Tantas paisagens já ficaram presas na memória; e tantas outras já se descolaram, sendo abandonadas pelo artifício falho da mente. Carpe diem é um termo latino que significa "colha o fruto". Ou seja, colha as coisas que estão maduras. Não desperdice aquilo que se mostra. E diante de afirmação tão bela e trágica, surge a indagação: "O que é essencial?" Sim! O que é essencial na vida? Com qual matéria ou assunto eu devo gastar o meu tempo? Quais frutos eu devo colher? 

Nada como o dia do aniversário para pensar nessas coisas. Não tenho todo o tempo do mundo. É curiosa a percepção de que tudo passou muito rapidamente. Recordo-me de que ontem eu era uma criança, que corria descalça; que jogava bola com os colegas; que tomava banho em riachos; que subia em pés de manga e quando achava um fruto maduro, devorava as carnes amarelas até que o caldo escorresse pelos cotovelos; era uma criança que tentava jogar com as ordens e comandos dados pela minha mãe. E com a minha carapinha e roupas ordinárias seguia para a escola, com os livros debaixo do braço. Tudo passou tão rápido! E é como se houvesse uma fumaça se mexendo lá no fundo dos cômodos do tempo.

Não tenho todo o tempo, pois não poderei visitar todos os lugares que quero. Não poderei abraçar a todas as pessoas. Beber todos os vinhos. Experimentar todas as culinárias. Ouvir todas as músicas. Ler todos os livros. Acumular tudo o quero. Ter o tempo que quero. É essa angústia diante do finito, que acometeu Fausto, alongado pela reflexão de Goethe. Vendo-se incapaz de aprender, de conhecer, de aprofundar-se além dos limites daquilo que é capaz o ser humano, Fausto resolve fazer um pacto com o demônio. Essa metáfora representa justamente a inquietação que gravita no interior do homem. Somos pequenos, mas dentro de nós existe a consciência da eternidade e isso nos aniquila. A poetisa Adélia Prado diz assim: "Meu Deus, me dá cinco anos, me cura de ser grande...". Queremos viver, pois existe um gesto de grandiosidade, uma vontade de continuidade, uma força impulsiva que nos lança de encontro aos nossos limites. 

Num dia como esse eu paro para pensar, para refletir, para ficar em silêncio, para ficar sozinho. E "a solidão", como diz o Henri Nouwen, "é a fornalha da transformação". Sei que daqui para frente o meu corpo passará por mudanças profundas. Mas é justamente nesse "instrumento" que a minha consciência e a minha percepção do mundo permanecerão vivas. Por isso, nesta data, quero fazer um pacto comigo mesmo: quero ser mais humano. Quero ler mais poesia. Quero viajar mais. Quero repelir o tédio e rir das responsabilidades. Quero ouvir mais MPB e continuar a amar a música clássica. Ouvir mais as missas de Bach e Palestrina; as sonatas de Beethoven e Brahms; os concertos para piano de Mozart. Quero conversar mais com a minha esposa, fazendo ecoar aquela frase de Nietzsche: "todos os casais que pretendem casar deveriam fazer a seguinte pergunta: 'terei eu prazer em conversar com essa pessoa o resto de minha vida?'" 

Quero ver mais filmes; observar mais os pequenos detalhes das mudanças perpetradas na natureza. Rir a cada nova manhã e agradecer a cada pôr-do-sol. Brincar com o "Jesus menino", como o fez Fernando Pessoa. O Jesus que se cansou da seriedade da eternidade; que veio morar com os homens; brincar nas poças de água; que dorme dentro da minha alma e, às vezes, acorda de noite e brinca com os meus sonhos. Quero todos os dias ouvir a voz da minha mãe e dos meus parentes. Quero visitar sempre que puder o meu lugar de nascimento. Perceber as árvores; o vento com suas fragrâncias curtidas e trazidas de longe; embriagar-me com o cheiro de terra molhada quando das primeiras chuvas. Gastar tempo com as coisas "inúteis", que como diz o Manuel de Barros têm o poder de fazer "milagrar violetas". Quero fazer de cada reencontro uma primeira vez e cada despedida um réquiem de beleza. Quero ouvir mais e falar menos. Fugir da ditadura que diz que para que eu vença é necessário calar o outro "no grito". Quero serenar diante do caos e ouvir o som das cachoeiras nos dias de tempestade. Quero me entusiasmar com o silêncio e fazer da solidão uma poesia que ensina. Quero ver o mar mais vezes. Quero caminhar mais vezes só por caminhar - com as mãos no bolso. Quero correr mais vezes. Correr como o Forrest Gump, que quando quis correr, correu; e quando quis parar, parou. Quero fugir das agendas fixas; dos almoços contabilizados; do amor com hora marcada; do encontro com agendamento e cadastro para ser analisado. Em suma: quero ser singelo como aquele lírio que nem mesmo Salomão foi capaz de se vestir como ele (Mt. 6. 28,29)

Vi uma das últimas entrevistas feitas pelo Ariano Suassuna, que faleceu mês passado. Uma das afirmações feitas por ele me deixou gravitando por dias em cima de mares de reflexões. Disse ele: "É muito bom viver! É um privilégio ter passado por esse universo". É e assim que devo olhar sempre, mesmo não sabendo quais são as trilhas, as planícies e montanhas que encontrarei em minha caminhada finita. Mas o quanto eu puder, quero levar comigo a lembrança daquilo que fui e vivi; e o agradecimento por aquilo que terei tempo de ser. As nossas buscas sempre terminam no lugar onde começamos a procurar.

sexta-feira, agosto 08, 2014

"Deus existe para tranquilizar a saudade" - Rubem Alves.

Lendo a crônica "Deus existe?", de Rubem Alves, que faz parte do livro "Transparências da eternidade", encontrei algumas afirmações que me deixou cheio reflexões. É uma daquelas afirmações poéticas e singelas que eram tão típicas do Rubem. Deus é uma incógnita - ("Que seria de nós sem o socorro daquilo que não existe?" - Paul Valéry). Há aqueles que afirmam com a boca cheia que a Sua existência é indubitável. Falam com o coração cheio de certeza. Batem no peito em um gesto embriagado de convicção. Mas penso que Deus seja uma daquelas intuições misteriosas, uma tentativa de reposta para aquilo que nos inquieta; para aquilo que é maior que nós e para as quais não temos respostas.

Desconfio daquelas pessoas que abrem a boca e, num gesto de certeza, de convicção inquebrantável, afirmam: "Deus existe! Eu tenho convicção sobre isso". Deus é um sorriso de criança que às vezes brota em nosso coração. É a capacidade de nos mantermos humanos em meio a tanto caos, em meio a tanta ignorância. Dizia o velho Nietzsche que "as certezas são piores que mentiras". Respeito mais aquele que tem uma fé duvidosa e não segura de si, do que aquele que é capaz de morrer por sua convicção. Este pode se tornar em um inimigo da humanidade por causa de sua crença. 

É por causa disso que algumas pessoas matam e morrem. Para esse tipo de indivíduo, as minhas certezas somente respeitam o outro, quando o outro, coaduna com as minhas certezas. Em matéria de crença, poucas são aquelas pessoas que sabem conviver com o diferente, que sabem respeitar a crença do outro. Quem chega a isso, já caminhou bastante em direção ao amadurecimento.

Fico a pensar sobre a existência de Deus e me recordo de uma afirmação de Rubem Alves: "Se os jardins existem, Deus tem que existir". Essa concepção sobre Deus é aquela em que vejo repousar a liberdade. Hoje, na escola onde trabalho, vi uma apresentação de crianças cantando a canção Benke, de Milton Nascimento, e não pude me conter. Aquilo foi muito bonito. Fiquei a pensar na singeleza da vida; nos pedaços pequenos de alegria e beleza que existem nos mosaicos dos dias que passam. E ouvindo as crianças cantando aquela música, pensei: "Deus tem que existir, pois esse momento existe". Fujo dos dogmatismos; rechaço as convicções e me lanço completamente no caminho incerto da dúvida. E o Rubem diz assim: 

(...)A beleza é entidade volátil - toca a pele e rápido se vai.

Pois isso a que nos referimos pelo nome de Deus é assim mesmo: um grande, enorme Vazio, que contém toda a beleza do universo. Se o vaso não fosse vazio, nele não se plantariam flores. Se o copo não fosse vazio, com ele não se beberia água. Se a boca não fosse vazia, com ela não se comeria o fruto. Se o útero não fosse vazio, nele não cresceria a vida. Se o céu não fosse vazio, nele não voariam os pássaros, nem as nuvens, nem as pipas...

E assim, me atrevendo a usar a ontologia de Riobaldo, eu posso dizer que Deus tem de existir. Tem beleza demais no universo, a beleza não pode ser perdida. E Deus é esse Vazio sem fim, gamela infinita, que pelo universo vai colhendo e ajuntando toda a beleza que há, garantindo que nada se perderá, dizendo que tudo o que se amou e se perdeu haverá de voltar, se repetirá de novo. Deus existe para tranquilizar a saudade. (...)

Alves, Rubem. Transparências da eternidade. Editora Verus. Campinas, 2002. 

sexta-feira, agosto 01, 2014

"Max Cavalera - my bloody roots", uma autobiografia

Quando estive em Gramado, no mês de junho, comprei a autobiografia de Max Cavalera, ex-vocalista do Sepultura, e atual líder do Soulfly e Cavalera Conspiracy. Adquiri o livro e li-o com um devotado interesse. É estranho - e parece está longe de minha personalidade - mas gosto do Sepultura e tudo aquilo em que o Max colocou as mãos a fim de construir um projeto musical - até mesmo o Nailbomb. A única coisa que não escutei - e nem ganhei intimidade - foi o Soulfly. Como já deixei claro, algumas pessoas indagam: "como você consegue ouvir o Sepultura?" Respondo: "Sei lá!".

Não escuto qualquer Sepultura. Escuto o Sepultura de Max Cavalera. Aquele que encerrou com o Roots, em 1996. O atual Sepultura é um cover de uma banda que um dia foi uma das maiores bandas de rock da década de 1990. 

Lendo o livro Max Cavalera - my bloody roots (Ed. Agir), eu pude perceber o lado bastante humano do vocalista, originário de Belo Horizonte. Max viveu única e exclusivamente, em toda sua vida, da música. Começou o Sepultura com o seu irmão Igor Cavalera. Mais tarde entrariam Paulo e Andreas. A banda aos poucos foi adquirindo respeito e fama no cenário local; e chegou a ter um relativo respeito em shows feitos no Nordeste e em São Paulo. Gravou o primeiro disco em 1985 (Bestial Devastation), pela Cogumelo Records, algo que se repetiria com os próximos dois álbuns - Morbid Visions (1986), que tem a excelente Troops of Doom e Schizophrenia (1987), que mostra uma banda que viria se tornar um fenômeno mundial. É curioso perceber que a cada novo disco, a banda conseguia se superar fazendo tecnicamente um melhor que o outro.

A partir do quarto disco (Beneath the Remains - 1989), o Sepultura começou a gravar com a poderosa Roadrunner. Beneath the Remains é o disco que notabilizou a banda. A música Inner Self é a música mais poderosa do disco. O disco possui uma pegada à la Metallica - talvez aí residisse o dedo do Andreas, que era um fã inveterado do grupo americano. Em 1991, seria produzido o Arise, ao meu modo de ver, o melhor disco do grupo mineiro. Arise mostra o amadurecimento vocal de Max e a força do riffs poderosos e primitivos.  

Três anos após Arise, sairia o álbum mais bem produzido da banda, o Chaos A.D. Se não estou enganado e li de forma equivocada no livro, o produtor de Nervemind, do Nirvana, foi o sujeito escalado pela Roadrunner para gravar Chaos A.D. A qualidade do som é notável.  Em 1996, sairia, talvez, a obra-prima da banda - Roots - gravado junto aos Chavantes, de Mato Grosso. O disco é sensacional! Para gravar o disco, a banda teve que ir para o meio da floresta. O resultado mostra o quanto a criatividade de Max e dos músicos do grupo estava em alta. Músicas como a bela, lírica(sic.) Jasco ou Itsari são delicadas, ao mesmo tempo em que trazem consigo a força milenar da tradição espiritual dos índios. Ou ainda as pesadas Attitude, Straighthate ou Ambush, que são viscerais.

É possível notar até aí o engajamento político da banda, que falava sobre guerras por territórios, por conflitos (Territory); ou sobre a ganância de sujeitos que queimam e destroem a Amazônia (Ambush). Após o disco e, no auge da carreira dos músicos, Max veio a saí do grupo por causa de desentendimentos com os outros integrantes. Segundo Max, os outros membros estavam insatisfeitos com a visibilidade que ele, Max, tinha. Os outros três músicos alegavam que Glória - esposa de Max e empresária da banda - estava privilegiando o marido. 

Acredito que a partir desse ponto, começa outro Sepultura, um Sepultura caricaturesco com Derick Green. Quem escuta o Sepultura de Max logo percebe a diferença. Eu nem sei quais foram e quantos são os discos da banda lançados após a saída de Max. Não tenho coragem para ouvir. Andreas ainda continua um grande guitarrista e Paulo consegue realizar o trabalho como sempre fez.

O que mais me chamou a atenção no livro foi o quanto a morte do pai marcou a vida do músico. Parece-me que ele passou boa parte da vida procurando por algo que se foi quando o pai morreu. Tornou-se um viciado em medicamentos, vício este, que segundo ele, teve fim em 2009 quando ele esteve internado em uma clínica. Outro ponto curioso é a sua fé em Deus. Ele fala em Deus em boa parte do livro. 

Max atualmente mora no Arizona, Estados Unidos, e segue com vários projetos. É uma lenda do rock mundial. Segundo ele, foi possível ir tão longe por causa de sua família. Na parte final do livro existe uma linda reflexão dele sobre o valor dos filhos e da família. Para ele, de que vale a vida se você não para para ser e viver com gente; se você não para a fim de amar os seus.