quarta-feira, julho 27, 2022

"Água de barrela" - algumas considerações

 

            “A história continuou e está prosseguindo através de todos nós, pessoas comuns, mas que têm em suas mãos os pedaços miúdos da vida”.

Eliana Alves Cruz

           

            Cheguei ao romance “Água de barrela”, de Eliana Alves Cruz, após entrar em contato com uma lista de duzentos livros por ocasião do bicentenário da Independência do Brasil. A lista está disponível no site da Folha de São Paulo. Foi construída a partir de uma votação de obras que versam sobre o país, um verdadeiro mergulho cultural naquilo que foi produzido de melhor em literatura, sociologia, história etc ao longo desse tempo. A lista que traz “Quarto de Despejo”, de Conceição Evaristo, em primeiro lugar é bastante interessante. Eliana, negra como Conceição Evaristo, escreveu uma obra de fôlego. Formada em jornalismo, a escritora foi premiada pela da Fundação Cultural Palmares, no ano de 2015, por causa da escrita do livro. Seu livro possui  uma escrita fácil, direta, objetiva, sem embaraços, como deve proceder o bom jornalismo investigativo.

            À medida que avançava na leitura, não deixei de estabelecer um paralelo com a minha história. Os fatos narrados por Eliana se comunicam com a história de milhões de brasileiros, oriundos de um processo de formação que, necessariamente, passa pela África. Nascido em Pernambuco, carrego comigo algumas reminiscências de parentes distantes e que conservam de maneira rala suas fisionomias em minha memória. Recordo-me, por exemplo, de minha bisavó, mãe do meu avô materno. Conhecia-a pela alcunha matriarcal de “Mãe Lúzia”. Ela era negra. Vivia em uma casinha acanhada. Quando eu era criança, ela já era bem idosa. Diziam os familiares que os seus pais haviam sido escravos. Sempre cresci com esse registro que funciona como um eco em minha existência. Gostaria de ter conversado com ela. Escutado as suas histórias. Certamente, ela as possuía em grande número. Mas, à época, eu era muito pequeno. Essa intuição só me chegou quando eu já estava mais velho.

            Mais tarde, tencionei escrever uma pequena narrativa com crônicas da história de minha família. Todavia, desisti da tarefa. As pessoas com as quais eu poderia contar, já não se encontram mais disponíveis. Meus dois avôs já não se encontram nesse plano. Quem sabe mais tarde, um pouco mais velho, eu volte a realizar esse exercício investigativo.

            Enquanto lia o livro de Eliana, veio-me essa impressão. A obra é fruto de uma densa pesquisa da escritora ao longo de mais de seis anos. Ela esteve em vários locais da Bahia, região onde viveram seus ancestrais; e outras regiões do país. Leu documentos. Colheu depoimentos orais. Organizou de forma criteriosa as informações e alinhavou um período de mais de trezentos anos de história. E, nesse sentido, é importante falar na construção de uma “história preta”. O livro constrói o relevante trabalho de contar a história das personagens a partir da perspectiva daqueles que foram arrancados do continente africano e vieram para o Brasil, colocando diante do leitor a escravidão de homens e mulheres arrancados do continente africano, a grande “diáspora” da Modernidade.

            Eliana procura mostrar a história de seus ancestrais – marcadamente – com figuras femininas. São retratos de mulheres fortes. Nesse sentido, não há ufanismos na obra. Há muita crueza e honestidade na escrita. Todavia, é importante ressaltar que as mulheres foram uma força necessária e relevante na formação do país. A história singularmente começa com a comemoração do aniversário de cem anos de Damiana, já no final do século XX. Ela está cansada. Seu corpo se mostra frágil. Os olhos já não distinguem com tanta nitidez as cores do mundo. Ela verifica mudança que se dá em sua família; como ela, a família, havia “embranquecido” após sucessivas gerações. Ela nascida no ano da Abolição, via como aquele episódio era representativo. É justamente nesse ponto, que Eliana constrói de forma habilidosa os caminhos para a sua narrativa – a começar pelo título. 

Eliana Alves Cruz

            Barrela é um alvejante caseiro usado – ainda hoje em certas regiões do país – para embranquecer tecidos. Ele é feito com cinza de madeira, ou seja, um elemento escuro, misturado a outros componentes químicos. Como algo escuro pode embranquecer? Reside nesse elemento simbólico uma imagem da própria formação do Brasil. A família de Damiana é um cadinho daquilo que é o próprio país. O povo brasileiro é, em últimas palavras, o elemento contemplado na obra de Eliana. Ao contar a história da família, ela descreve a história de todos nós.

            Um importante aspecto do livro é não deixar de tratar sobre alguns importantes eventos como, por exemplo, “A Guerra do Paraguai”, a “Lei do Ventre Livre”, a “Abolição” etc e como elas impactaram diretamente ou indiretamente a vida dos negros. Um exemplo, diz respeito ao episódio da Guerra do Paraguai. Pouco se fala de como os negros foram enviados para o conflito para que os filhos dos senhores da terra não morressem em combate. Muitos negros foram com a promessa de que, se voltassem, conseguiriam uma carta de alforria. Muitos dessas figuras morreram combatendo por um país que não era o seu; por uma terra que não os reconheciam como cidadãos – ou, minimamente, humanos.

            O livro é importante documento por revelar uma dimensão da história do Brasil que ainda permanece oculta: a história de milhões de negros e negras que foram forçados a saírem da África para serem escravizados em uma terra distante; em um país em que eram tratados como animais e eram forçados a esquecer o próprio passado. A história estudada na escola ignora a narrativa a partir daquele que foi opresso, a saber, o próprio negro. Eliana reaviva essa história tão ignorada, tão mal contada.

 

terça-feira, julho 26, 2022

As possibilidades da língua

Enquanto lia o romance “Água de barrela”, de Eliana Alvez Cruz. Encontrei uma palavra até então desconhecida para mim – “minete”. Achei-a diferente. Conta-nos a narradora que havia um certo personagem denominado “Nego Arigofe”. Pela descrição feita sobre essa exótica figura, faz lembrar um daqueles apimentados personagens criados por Jorge Amado. De acordo com a narração, “Arigofe” “tinha a fama de praticar o melhor ‘minete’ de Salvador e quiçá da Bahia".

            Eliana insere um aposto explicativo para que o leitor saiba o significado desse termo francófilo – “sexo oral em mulheres” (p.270). Achei curiosa a palavra e fui à cata de novas explicações. Encontrei o termo latim “cunilíngua” – que eu já conhecia. E, por fim, encontrei uma deliciosa crônica do jornalista Sérgio Rodrigues alargando ainda mais as possibilidades da língua (ops! desculpe o trocadilho). O texto traz mais do que uma explicação – insere elementos eruditos, extraídos de um acontecimento ocorrido em Portugal. Vale a pena a leitura. O título já diz muito sobre o texto. Abaixo, o texto da Folha

 O minete e a língua

Estávamos na vila medieval de Óbidos, em Portugal, terra da ginja, para participar de um festival literário. Na roda formada por homens e mulheres de nacionalidades lusófonas diversas, o escritor angolano José Eduardo Agualusa resolveu pegar no pé de uma lacuna vocabular brasileira.

“No Brasil não existe minete”, declarou, para espanto e indignação da ala feminina do grupo. Embora conste que em certas regiões do país a palavra não seja desconhecida, Agualusa tinha lá sua razão, como comprova o fato de que poucos leitores desta coluna saberão o que vem a ser o tal minete.

A confusão proposital entre a palavra, que de fato não existe para a maioria dos nascidos aqui, com a coisa, que tem existência vibrante para muita gente, era parte da piada. Uma piada que exigia resposta rápida do único brasileiro presente, ou seja, eu. 

Estava em jogo nada menos que a dignidade nacional, ainda que em sua versão simbólica de jogo de salão.

Para que a história faça sentido será preciso explicar logo o que é minete, um substantivo que, naquele momento, eu mesmo acabava de conhecer. Chega de preliminares: minete é sexo oral em mulheres. O contraponto feminino do boquete. 

Em português brasileiro, um silêncio, uma lacuna que a gozação de Agualusa diante da plateia escandalizada tornava constrangedora. Quando não uma lacuna, no máximo um daqueles substantivos informais feitos na marra com o particípio —no caso, do verbo “chupar”. Mas isso não livraria nossa 
cara coletiva naquela hora.

Por que, afinal, não temos um substantivo bom e honesto para nomear ato tão relevante? Logo nós, com nossa fama —não inteiramente justa, mas insuflada por décadas de campanhas turísticas oficiais— de povo liberadão e de sexualidade à flor da pele.

Não será verdade que a exuberância vocabular sempre acompanha o peso cultural das coisas, como sugerem os incontáveis nomes que a cachaça acumula país afora? Se for verdade, o que essa fenda pudica em nosso vocabulário revela? Em resumo: custava tanto assim termos importado “minete”?

Seria uma mentira cômica dizer que, sendo um povo erudito, “cunnilingus” resolve a questão para nós. Além de ser pedante, feioso e de uso raro, o termo latino tem sonoridade que pode provocar certos 
mal-entendidos anatômicos.

Tudo ao contrário de “minete”, um vocábulo simpático e tão popular em Portugal quanto na África lusófona. Vem do francês “minet”, ou mais provavelmente de seu feminino, “minette”. Quer dizer gatinho ou gatinha e tem sentido lúbrico por associação óbvia com a lambeção apreciada pelos bichanos.  

Caros compatriotas: naquele momento difícil, eu precisava de uma iluminação divina, nada menos que isso, e tenho o prazer de relatar que ela veio. Ponderei à pequena audiência lusófona multinacional que nem sempre a ausência de uma palavra traduz desinteresse ou falta de apreço.

Às vezes é o contrário: por respeitar demais alguma coisa, por nos sabermos pequenos e indignos diante de sua grandeza, nos recusamos a reduzi-la a um nome. “Vejam o caso de Deus. YHWH, o impronunciável tetragrama hebraico, é um exemplo.” Não sei se colou. Fez o pessoal rir, e isso bastava”.

 

P.S. O humorista Gregório Duvivier escreveu na Folha uma coluna, ano passado, tratando também sobre o "minete".