quarta-feira, dezembro 18, 2019

A grandeza de Paulo Freire e a tolice de um imbecil

"Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo". Paulo Freire

Um dos assuntos mais badalados da semana foi a cena caricata de um presidente despreparado, semialfabetizado, tecendo comentários sobre uma figura da educação. No caso em questão, trata-se nada mais nada menos do que Paulo Freire, uma das personalidades brasileiras mais conhecidas no mundo. Bolsonaro, sempre bolsonárico (uma condição ontológica), chamou o autor de A pedagogia do oprimido de "energúmeno". 

Verificando a acepção da palavra citada pelo presidente (talvez, ele nem conheça os matizes da palavra), verificam-se os seguintes significados: "uma pessoa possessa ou possuída por um demônio; alguém que possui um comportamento descontrolado; um desatinado". Ou em uma última acepção: "sujeito sem conhecimento, um imbecil". E, nesse sentido último, nota-se o quanto a palavra utilizada possui uma falta de nexo com a pessoa a quem ela foi dirigida. 

Certa vez, escutei uma história de um professor da Universidade de Brasília bastante emocionante e singela por tudo o que ela evoca e representa. Dizia ele que certa vez fez uma viagem para a China. Não para a China das grandes metrópoles populosas; de trânsito que beira ao cinematográfico por causa da quantidade de veículos. Não a China das cidades luminosas; não a China dos adjetivos pentagruélicos. Ele foi a um vilarejo do interior, lugar em que o antigo ainda continua com suas tradições; com seus riachos; com suas montanhas; a China da vida simples. Ele visitou uma escola rural. As pessoas do lugar ficaram curiosa para saber de onde procedia aquele ocidental. Insinuou timidamente que era do Brasil. 

E, para a sua surpresa, escutou algo que mexeu com o seu instinto de brasilidade. Ele escutou o nome de alguém que não era um jogador de futebol nem uma atriz de novela. Ele escutou a delicada, mas confortadora frase: "Terra de Paulo Freire". Aquilo colocou a certeza dentro dele de que Paulo Freire não era apenas uma figura pública do Brasil. O pernambucano era um cidadão do mundo. Um divulgador de belezas, dono de uma pedagogia construída com a palavra, a palavra que era tão importante para ele. É importante aprender a "dizê-la"; a desvelá-la. Trazê-la de dentro de si para "pronunciar o mundo, modificá-lo"; transformá-lo pelo entendimento da própria condição de si e do outro. 

A história contada pelo professor é especial, porquanto ilustra a grandeza do filósofo e educador brasileiro. Atualmente, há em movimento, no Brasil, uma marcha em defesa da ignorância, do irracionalismo;  uma corrente anti-iluminista; um macartismo à brasileira, encampado por figuras histriônicas e patéticas. Bolsonaro é uma dessas figuras mais proeminentes. No futuro, haverá risadas - talvez, constrangimento ou vergonha. O atual chefe do Executivo Federal será conhecido - ele sim - como o mais "imbecil" e "energúmeno" dos presidentes que governaram o país. Do contrário, Paulo Freire continuará a ser estudado e respeitado pelo mundo a fora - e reverenciado por pessoas que reconhecem o quanto a sua pedagogia é libertadora. 

sábado, dezembro 14, 2019

Ó Captain! My Captain!" Walt Whitman


A profissão docente não é fácil. É repleta de dissabores. Olhando-a apenas no plano físico, da materialidade, há apenas cansaço. Suor. Falas gritadas em muitos momentos. Indignação. Surtos de poder. Mas, existe uma potência invisível que constrói sentidos; que cativa corações e alimenta olhares silenciosos. Onde menos se percebe, há uma árvore frondosa a frutificar; a produzir beleza; a encher os olhos daqueles que observam.

Deve ser, por isso, que Cristo disse que o semeador saiu a semear. Sim. A função do professor é semear os grãos pequenos, mas insistentes do saber. Eles caem nos solos mais distintos, produzindo matas densas de caráter; de gratidão; de aprendizado; da seiva de que a vida se alimenta.

Escrevo essas palavras chochas, pois recebi uma mensagem esta manhã de uma aluna para quem dei aula em 2013 - a Luíza, criatura meiga e observadora. Fiquei imensamente feliz por saber que ela está bem e começará uma outra jornada! Tornou-se mais latente em mim a noção de que nós professores somos semeadores.


As palavras dela: "Oi, professor! Tudo bem?
Não sei se lembra de mim, tive um ano de aula com você no santa rosa, em 2013 e sou irmã mais nova da Maíra Kirovsky

Ontem tive minha colação de grau e finalmente terminei o ensino médio.

Ao pensar em meus professores e em como tenho enorme carinho por todos, lembrei de você

Embora nosso tempo tenha sido curto, nunca o esqueci e sempre lembro dele com saudades

Posso dizer que você é um dos melhores professores que já tive em todo o meu período escolar

Ir para a escola nunca foi uma tarefa fácil para mim e o ano em que fui sua aluna foi especialmente difícil

Aulas como a sua me ajudavam a conseguir levantar da cama e ir pra escola

Aulas como a sua me inspiraram a ser melhor

E me inspiram até hoje

Quero que saiba da importância que tem em minha vida (e na de muitas outras pessoas, com certeza)

E quero agradecer por tudo

Obrigado por ter me inspirado a ler, obrigado pelas aulas, obrigado por ter me ajudado a formar o ser humano que sou hoje!

Sempre lembrarei de você com ternura e admiração"

Um grande abraço, Luíza!

segunda-feira, outubro 28, 2019

Algumas percepções sobre "Harry Potter e a pedra filosofal"

Recordo-me quando o fenômeno Harry Potter surgiu. Isso gerou um impressionante movimento de admiração ao personagem criado pela habilidosa J. K. Rowling. Era o ano de 1999 - se não me falha a memória. Nesse período eu frequentava uma igreja protestante. Criou-se, por sua vez, um movimento esdrúxulo de resistência. Segundo os cristãos evangélicos, a obra promovia a feitiçaria. Havia intenções, segundo eles, ocultas no texto da senhora Rowling. 

Harry Potter não era nada inocente. Seu objetivo era promover o ocultismo e desencaminhar os jovens e, principalmente, as crianças para o mundo diabólico da bruxaria. Não lembro se fiz coro com essa tese cinzenta e triste, típica dos cristãos fundamentalistas, que vivem a enxergar feiuras nos mais variados eventos. Todavia, acabei me afastando de uma das maiores criações mitológicas do nosso tempo.

Há uma "magicidade" no pensamento cristão. Nesse sentido, os cristãos não destoam em nada do quadro fantasioso da saga criada pela escritora britânica. 

Farei aqui uma pequena digressão, todavia, em seguida, pretendo explicá-la. Os religiosos criaram uma proposição belicosa contra a obra, pois, segundo eles, ela está cheia de bruxaria e de uma defesa dos poderes ocultos. Ou seja, busca-se criticar o elementos mágicos do livro. Contudo, o que não deixa de ser curioso é que o livro sagrado dos cristãos, também, está cheio de eventos mágicos e extraordinários. A Bíblia está povoada por eventos curiosos que desafiam as leis naturais, todavia, para os cristãos, eles são aceitos como as intervenções naturais do divino na história. Esses eventos não perdem em nada para os acontecimentos espetaculosos da saga Harry Potter. Por exemplo, a Bíblia fala de uma serpente falante em um jardim. Essa mesma serpente foi capaz de ludibriar o primevo casal de humanos, de acordo com o relato mitológico dos judeus. Há ainda a narrativa de uma jumenta que fala. Há a descrição de um dilúvio. De acordo com essa história, todos os animais que existem hoje estiveram dentro de uma arca de madeira. Moisés foi capaz de arrancar água de uma rocha. Os judeus conseguiram atravessar o Mar Vermelho com os pés enxutos. O sol ficou imóvel segundo a narrativa de Josué. Um vale de ossos secos foi transformado, de tal modo que os esqueletos inermes da cena aterradora, voltaram à vida, ganhando nervos, carnes e tecidos. Jonas foi engolido por um grande peixe. No livro de Jó, narra-se uma espécie de meta-história, deixando evidente a disputa em um mundo paralelo pelas atenções dos humanos. É como se a vida material dos seres humanos fosse um mero joguete das decisões que acontecem em um espaço recôndito das esferas espirituais. 

No Novo Testamento, Jesus multiplica pães, caminha por sobre as águas; há uma espécie de eclipse, quando ele morre na cruz. Percebe-se que o evento mágico é algo constante, presente, nos relatos bíblicos. O livro de Apocalipse, por exemplo, descreve de forma apoteótica o drama existente entre as forças do bem e do mal. Ou seja, o livro é uma das criações literárias que mais usam a linguagem mágica e misteriosa na história da humanidade. O livro faz descortinar uma atmosfera cataclísmica do fim da história. Possui, assim, um forte apelo escatológico, como é típico das histórias fantásticas, em que o confronto entre o bem e o mal, sendo que o bem triunfa. Os capítulos finais de Apocalipse trazem uma descrição de como vai ser esse novo mundo pós-escatológico, a chamada Nova Jerusalém. 

Ora, faço essa pequena divagação para tentar justificar o fato de ter ficado tanto tempo distante dos livros do bruxinho famoso. Acabei assumindo uma perspectiva preconceituosa contra os textos de J. K. Rowling, cuja tecitura, hoje, para mim, são de uma genialidade incrível. Impressiona a qualidade da escrita da inglesa de 54 anos. Quando começou a escrever a saga, lá pela metade dos anos noventa, Rowling saíra da casa dos vinte anos e entrara na casa dos trinta. Ela era uma jovem desempregada com uma filha pequena para criar. O texto foi recusado por uma dezena de editores. Havia desconfiança sobre a estrutura da história. Não se sabia se a saga de Harry Potter, Hermione Granger e Ronald Weasley adquiriria algum interesse no grande público. Todavia, ao ser lançado, o livro teve um sucesso imediato. A inglesa trabalhou durante aproximados oito anos, escrevendo sete obras até o ano de 2007 - A pedra filosofal, A câmara secreta, O prisoneiro de Azkhaban, O cálice de fogo, A ordem da fênix, O enigma do Príncipe e As relíquias da morte

Terminei a leitura de Harry Potter e a pedra filosofal. Fiquei com uma forte impressão positiva. O texto possui uma linguagem simples, direta, menos prolixa que a de J. R. R. Tolkien. A linguagem rowlingiana está mais próxima dos escritos singelos de C.S. Lewis, outro inglês que certamente a influenciou. Vale mencionar que Tolkien criou as histórias da Terra Média, tendo em O senhor dos anéis a principal referência. Já Lewis criou Nárnia e as sete de narrativas sobre esse mundo mágico e carregado de eventos simbólicos. 

No texto de Rowling também há importantes questões a serem trabalhadas como, por exemplo, a honra, a responsabilidade ética; a condição do herói perante o desconhecido; a crítica aos totalitarismos e os separatismos, já que a luta do vilão - Lord Voldemort - é para eliminar todos aqueles que não são bruxos de sangue puro; a amizade como um dom. A capacidade de não se deixar vencer pelo mal. O triunfo da verdade. 

O fato é que fiquei "enfeitiçado" pela linguagem simples de uma literatura que aviva a fantasia e nos convida ao prazer. Em outro momento, quero escrever um pouco mais sobre a personagem Harry Potter, para quem há uma quantidade de enorme de questões a serem tratadas. Vamos à Câmara Secreta

segunda-feira, outubro 21, 2019

O neoliberalismo é uma bomba prestes a explodir - o caso chileno

Vista de Santiago. Ao fundo, a Cordilheira dos Andes 
Estive no Chile em julho de 2015. Tenho boas lembranças de lá. Passei cinco dias na capital do país, Santiago. Além de Santiago, tive a oportunidade de ir à moderna - e com aspecto de balneário - Viña del Mar. Foi de lá que guardei as primeiras imagens do Oceano Pacífico. Pude sentir as suas frias águas. Depois, desloquei-me com a minha esposa à vizinha Valparaiso, que se espalha, derrama-se, por uma colina e passa a impressão de que está tentando fugir das águas do grande Oceano. Valparaiso é uma cidade evocativa. Suas ruas abrigam belas páginas da história do país. Nela podemos encontrar uma das residências do maior ícone literário do país, o poeta Pablo Neruda. Há um um dos principais portos da América Latina. No passado, já foi um dos mais importantes do mundo. 

O Chile passou a impressão de que possuía um modelo que funcionava. Para o observador comum, trata-se de um país bonito e aparentemente organizado. A modernidade chegou à cidade de Santiago. Há prédios enormes e espelhados. Os engarrafamentos são atordoantes ao final do dia. As ruas ficam repletas de estudantes e pessoas de todas as idades que caminham em meio aos carros. Os ônibus longos passam liberando nuvens de um fumaça escura. O metrô possui inúmeras linhas segmentadas por cores e atravessa toda a cidade. Tive a oportunidade de ir a vários locais utilizando esse meio de transporte. Os chilenos são simpáticos e dão mostras de que trabalham bastante. Há uma quantidade grande de bancos espalhados pela capital. As construções públicas misturam a estética latino-americana ao rigor da modernidade de qualquer grande cidade do mundo. 

Certa vez, escutei o ex-jornalista da Rede Globo Alexandre Garcia incensar, com babosos elogios, a economia chilena e os avanços sociais do país (sic.). Já tive a oportunidade de conversar com algumas pessoas que defenderam o modelo do Chile para que fosse adotado pelo Brasil. O que paira no senso-comum é a noção de que o Chile é uma ilha, uma espécie de oásis  na desigual e caótica América Latina. O país estaria bem à frente dos outros países do continente. As pessoas por lá seriam mais felizes e haveria uma forte promoção de bem-estar no país que consolidou a racionalidade econômica de mercado em toda a sociedade. 

O atual governo brasileiro, do alto de sua inabilidade administrativa e de sua sanha privatista, possui um entusiasta do modelo chileno. O banqueiro especulador e, depois, ministro da fazenda Paulo Guedes, um dos "cérebros" pavimentadores da lógica econômica do bolsonarismo, foi um dos articuladores do modelo chileno. No final dos anos 70 e início dos anos 80, durante a Ditadura de Pinochet, Guedes e outros economistas neoliberais da chamada Escola de Chicago fizeram do país um laboratório para as investidas privatistas, que desarticularam toda a política social do estado chileno, entregando-a aos especuladores do mercado. Ou seja, o mesmo que o bolsonarismo pretende aplicar no Brasil, se não houver uma reação popular por parte dos trabalhadores. No entanto, acontece que a bomba social não estoura de imediato. Passam-se anos até que os dejetos dessa política deletéria sejam produzidos. 

O que acontece é que começaram a chegar notícias de insatisfações por parte dos chilenos. Desde sexta-feira passada, que o país enfrenta ondas pesadas de protestos. O país não é um oásis como se pensava; é um grande deserto para boa parte das pessoas. Não há a satisfação de uma social democracia no país, mas padrões neoliberais aplicados em todos os setores da vida. 50% da população vive com menos que um salário mínimo. Os serviços públicos são quase inexistentes.  As universidades são públicas, mas quem quiser frequentá-las, precisa pagar mensalidade. Ser público não significa ser gratuito, como acontece no Brasil. Não há um SUS como no Brasil, pois a saúde também é paga. O fato de ser paga não garante que é de qualidade como, infelizmente, reza o senso comum no Brasil. Os planos de saúde são caríssimos no país. Ficar doente ou precisar de uma intervenção mais cara, significa ficar por muito tempo endividado. Há como que uma proibição de se ficar doente. Os direitos trabalhistas foram "destruídos". Não existe uma proteção aos trabalhadores. 

Os patrões se veem cada vez mais empoderados, porquanto a legislação não favorece a parte mais fraca da relação. Os sindicados são "inofensivos". A legislação permite a existência de milhares de sindicatos. Por exemplo, é possível que para uma categoria existam de 30 a 50 sindicatos. Os patrões negociam com aqueles que estejam rendidos aos interesses dos próprios patrões. Não há poder de barganha. As aposentadorias não fazem parte de um fundo público, como no Brasil que possui uma autarquia pública (INSS) para gerenciar essas aposentadorias e pensões. Na verdade, o que existe no Chile é uma entidade do mercado que gerencia os valores descontados dos trabalhadores e se utiliza disso para aplicar no mercado por meio de especulações. Geralmente, quem está a serviço da administração desses fundos, é donos das entidades do setor financeiro - bancos etc. Então o que se dá é que o dinheiro dos trabalhadores é utilizado pelo mercado para gerar mais dinheiro para o rentismo. Quando se aposentam, os trabalhadores se veem numa condição de penúria. O número de suicídios entre os idosos é recorde na América Latina. 

Pintado esse quadro, é possível intuir o porquê dos manifestos existentes no Chile. O que acontece é que isso próprio de experiências neoliberais, que ao invés de produzir bem-estar e riqueza social para o povo, produz riquezas para um grupo de apaniguados gananciosos; que aplicam receitas empobrecedoras e geradoras de miséria para boa parte de uma sociedade. A lógica do capital sob o signo do neoliberalismo é produzir ganhos incalculáveis para uma porcentagem pequena do setor financeiro. O neoliberalismo produz a depauperação do trabalhador, deixando-o desprotegido e, se possível, na informalidade. Sua especialidade é a ampliação das desigualdades sociais e, com isso, os conflitos tornam-se inevitáveis. É como vemos no Chile, no Equador e, logo mais, no Brasil. 

Alguns dados fora tirados daqui

terça-feira, agosto 13, 2019

40 anos

"Parece que foi ontem; parece que chovia". 

Acordar com quarenta anos e ter uma leve sensação de que nada mudou. Os dias com a sua poeira macia de acontecimentos, continuam a trazer a rotina. Olho-me no espelho e noto uma escrita vívida, às vezes, torta em cada extensão do pergaminho da minha face.  As coisas parecem estar todas conservadas em seus lugares. Nada é novo - apesar da aparente feição de novidade. 

Há quarenta anos, conta a minha mãe e a história, que eu nasci. Aportei no mundo. Nasci em um casebre. Uma joça feita de barro. Mal dimensionada. Improvisada como são as coisas feitas pela escassez e pela necessidade. Não havia enxovais. Minha mãe era uma jovem de 19 anos. Inexperiente. Humilde. Amedrontada pela novidade que a colocava numa posição vulnerável. Havia falta de empatia por parte de alguns familiares. Incompreensão. Fui agasalhado nas modestas fronhas de que dispunha. Nasci às 11h15min. de uma quinta-feira.

Quarenta anos se passaram a passos largos. Caminho para adiante, mas, vez ou outra, volto o meu olhar para trás. Percebo paisagens variadas. Elas chegam como "flashes"; ou como a explosão leve de fogos de artifício numa noite escura. Vejo a silhueta de eventos. Alguns, consigo identificar. Pareço olhar pela janela, atento a uma liturgia solene e imprevisível. O que virá pela frente?

Cheguei a um ponto delicado, repleto de significados. O tempo corre.  Tento segurá-lo. Ele está sempre um passo à minha frente. Resigno-me. Aprendo que o tempo esculpe o próximo minuto em silêncio; sem alardes; sem tagarelice. Quando dou por mim, a vida está pronta para atestar a sua obra. Aceitamos a marcha incontinenti das horas. Já não há tempo para perder tempo. Os próximo lances devem ser estudados. Quarenta anos se passaram tão rapidamente que parece que não deu tempo de trocar de roupa. 

Ainda tenho coisas para realizar. Como dizia Raul Seixas: "Eu que não me sento, no meu apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar". Na corda tênue de cada manhã, equilibro-me para não cair. Dou gargalhadas dos meus desatinos. Impaciento-me com a ignorância alheia. Às vezes, sou sério. Há certas variações que são inevitáveis. Acontecem como leis capitais. Mas esta é a minha maneira de ser. 

sexta-feira, julho 26, 2019

Um lista com os filmes que me marcaram

Já havia pensado em algumas ocasiões sobre a possibilidade de construir uma lista com filmes que são essenciais para mim. Classifico esta lista como aquela que se fixou em minha existência. Misturou-se com aquilo que eu sou. O cinema é, como diria Orson Welles, "um fluxo contínuo de sonhos". É um faz de conta que nos arrebata. 

Desde 2012, que sigo o portal Melhores Filmes (MF). Acredito que seja a página que melhor organiza a categoria cinema. Outros sites como, por exemplo, o Adoro Cinema são insuportáveis. A lista que eles construíram (MF) com os melhores filmes de todos os tempos é, simplesmente, imbatível. Analisando as várias listas que os membros do site fizeram - há aquelas que são boas e, outras, deixa para lá! - resolvi fazer uma também. Elegi 30 filmes que são fundamentais para mim. Importa ressaltar que toda lista possui uma estrutura de referências com muitas idiossincrasias. Portanto, prescinde dizer que é algo eminentemente pessoal. Alguns desses filmes podem aparecer em ordem, outros, nem tanto. Segue a lista

1° - O sétimo selo - Ingmar Bergman (1957);
2° - Solaris - Andrei Tarkovsky (1972);
3° - Os imperdoáveis - Clint Eastwood (1992);
4° - Sociedade dos poetas mortos - Peter Weir (19890;
5° - Doze homens e uma sentença - Sidney Lumet (1957);
6° - 2001 - uma odisseia no espaço - Stanley Kubrick (1968);
7° - Festim Diabólico - Alfred Hitchcock (1948);
8° - Ladrões de Bicicleta - Vittorio de Sica (1948);
9° - A vida de Brian - Terry Jones (1979);
10° - Um sonho de liberdade - Frank Darabont (1994);
11° - Dogville - Lars von Trier (2003);
12° - Stalker - Andrei Tarkovsky (1979);
13° - A festa de Babette - Gabriel Axel (1987);
14° - A grande beleza (2013);
15° - Balzac e a costureirinha chinesa - Dai Sijie (2002);
16° - Marty - Delbert Mann (1955);
17° - Tempo de Violência - Quentin Tarentino (1994);
18° - O caminho para casa - Zhang Yimou (1999);
19° - O mágico de Oz - Victor Fleming (1939);
20° - Quo Vadis - Mervyn Leroy (1951);
21° - Andrei Rublev - Andrei Tarkovsky (1966);
22° - O pianista - Roman Polanski (2002);
23° - Noivo Neurótico, Noiva Nervosa - Woody Allen (1977);
24° - O poderoso chefão - Francis Ford Coppola (1972);
25° - As bruxas de Salem - Nicholas Hytner (1996);
26° - Gênio Indomável - Gus van Sant (1997);
27° - 8 e meio - Federico Fellini (1963);
28° - Barry Lyndon - Stanley Kubrick (1975);
29° - Ensaio de Orquestra - Federico Fellini (1978);
30° - Tempos Modernos - Charles Chaplin (1936);

Importa dizer que a lista está em construção. 




domingo, junho 23, 2019

Reflexões esparsas sobre a leitura de "Deus - uma história humana", de Reza Aslan II

Fiquei quase dois meses lendo o livro "Deus - uma história humana", de Reza Aslan. A demora se deu (1) pelo fato de que li nas brechas de tempo que encontrei em meus dias povoados por muito trabalho; (2) pelo fato de que o livro de Aslan é de uma densidade estonteante. Bebi cada frase como um naufrago que bebe água doce pela primeira vez. Posso afirmar que é um dos livros mais importantes sobre a ideia de deus que já li. À medida que realizava a leitura, fiz alguns comentários sobre as partes que mais me chamaram a atenção, utilizando também algumas compreensões que já possuía sobre o tema. Abaixo, a segunda reflexão. 

A teoria da mente é uma importante ferramenta para explicar a origem da religião. "Minha percepção dos estados internos de outros seres humanos baseia-se no meu próprio estado interno". É o eu-consciente que consegue diferenciar o eu do tu. Esse fenômeno se dá com relação às coisas inanimadas e animadas. Qualquer coisa que medianamente possua qualquer relação com os meus atributos, receberá da minha parte uma afirmação: "Esse ser se parece comigo!" 

Para os primeiros humanos da nossa espécie, quando os recursos eram necessariamente conquistados por meio de estratégias que deveriam resultar em boas caças, havia uma maior suscetibilidade para impressões extraordinárias. Por exemplo, caso um indivíduo, no momento da caça, encontrasse esculpido em uma árvore um rosto, uma feição minimamente parecida com o ser humano, aquilo poderia deflagrar uma relação de admiração. E, caso fosse bem sucedido na caça, é possível que começasse a levar oferendas para aquele suposto ente. As religiões, no geral, são fenômenos neurológicos. São o resultado da nossa capacidade de moldar os nossos desejos e transferi-los a um ser que se parece comigo, todavia, com poderes absolutos, soberanos. No fundo, a religião é um fenômeno em que o ser humano projeta num ser onipotente aquilo que não encontra em si.

As religiões, assim, tornam-se hegemônicas a partir do momento que são adotadas por um número extraordinário de pessoas, ela se torna inquestionável e, portanto, criará uma percepção totalizante. É, por isso, que há tantas pessoas que acreditam no cristianismo, no islamismo, no judaísmo, no hinduísmo etc.

A teoria da mente explica, por exemplo, certas falas: "Deus falou comigo".  A religião lida com fatos que subvertem a ordem lógica do universo. O milagre é uma categoria que não encontra plausibilidade em um universo regido por leis lógicas. Por exemplo, um objeto nunca vai cair para cima. A percepção é sempre individual. Por que deus falaria com uns em detrimento dos outros? Aquilo que adoramos é o que nos controla. Todas as forças, a consciência psíquica, a organização do mundo e as ações mais triviais passam a ter uma relação com o extraordinário. Entenda-se "extraordinário" como uma linguagem capaz de ressignificar o eu em relação àquilo que existe fora do sujeito. Não se escuta deus. Escuta-se o desejo, que é força, energia canalizada da emoção, da confiança, da certeza inquebratável. No mundo do religioso, a emoção precisa se transformar em racionalidade. 

(Continua...)

segunda-feira, maio 13, 2019

Reflexões esparsas sobre a leitura de "Deus - uma história humana", de Reza Aslan I

Existe no ser humano um dispositivo de crença. Uma capacidade para se maravilhar com o mistério. Milhares e milhares de anos de evolução permitiram que o ser humano tomasse consciência de si e do outro. Permitiu-lhe acumular informações e ter noções sobre o passado, sobre o presente e sobre o futuro. Essa noção sobre eventos psicológicos e como esses se alteram ao longo do tempo, criou certas condições para que a noção do sagrado se efetivasse. É muito comum imaginarmos que a religião sempre existiu; que ela sempre esteve presente na história.

Dizem os estudiosos, que até 150 mil anos atrás, por exemplo, não havia indícios claros de enterros. Foi no Paleolítico, que os seres humanos começaram a enterrar os seus parentes. Essa prática indica como passou a existir essa necessidade por uma questão de respeito ao ente querido. Às vezes, em posição fetal voltado para o nascente; ou simplesmente, numa posição que definisse a crença.

A grande questão é que existem situações para as quais os seres humanos não possuem respostas. Essa “ignorância” promove inquietação e um premente desejo de resposta. O que acontecerá após a morte? Quem criou esse mundo imenso, suas leis e contradições? Qual o destino de todos após a morte? O mistério intriga. Induz o sujeito a determinadas reflexões e, acima de tudo, a uma resposta que seja totalizante; que seja capaz de satisfazer as inquietações mais febris. Isso ecoa na clássica frase de Ludwig Feuerbach: “apenas um ser que compreende em si o homem todo pode satisfazer o homem todo”. A consciência do sagrado suaviza as inquietações do homem em um universo em que as contradições existem por toda a parte. Deus é uma resposta conveniente para uma inquietação inconveniente.

O medo e a insegurança sobre o próprio destino força o sujeito à crença. Geralmente, ao se falar em nomes como deus, inferno ou diabo, o sujeito teme, persigna-se, pois, em sua alma, existe o temor inconsciente do próprio destino. Como tergiversar ou prevaricar sobre alguém que pode decidir o seu destino pela eternidade?

A religião surgiu inicialmente como “um esquema” capaz de responder por completo as inquietações do ser humano sobre ele mesmo e sua relação com o mundo e com a natureza. O animismo foi a primeira tentativa de explicar o mundo: o sol, os rios, a lua, as pedras, as árvores, a chuva etc passam a ser elementos que ganham poderes diante dos homens. Seria preciso realizar certos rituais para aplacar a vontade de certos elementos. Por exemplo, se em determinado momento houvesse uma seca ou o excesso de chuva, influenciando o destino e a vida dos homens, certamente, havia sobre isso uma percepção de desconfiança. Aquilo para a qual não existe uma resposta imediata, transforma-se em tabu, em evento sagrado.

Crê é uma decisão que o homem realiza todas as vezes que ele se vê diante de algo maior do que ele. A fé possui uma perspectiva de susto, de mistério, de entrega, de confissão dos desejos mais íntimos. Essa relação profunda é existencialmente capaz de promover uma transformação psicológica. A religião precisa de uma linguagem; a fé precisa de uma narrativa; de elementos que sejam capazes de subsumir numa totalidade. Dentro dessa narrativa cabem todas as coisas. A religião deu ao homem os primeiros mitos fundadores. Viver em mundo em que não fosse possível explicá-lo seria, para o homem, caótico e desagregador. A narrativa criadora organiza o caos. Cria muros contra os inimigos inquietos do irracionalismo. Ordena o universo; põe limites; espalha âncoras pelo oceano imenso das perguntas inquietantes, que deslocam o ser e o coloca “sobre a face do abismo”.

Na Bíblia, o livro judaico-cristão que busca organizar o caos e cria uma narrativa tida como sagrada no mundo ocidental, sugere que Paulo disse: “Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas”. (2 Co 5.17). Essa referência ao texto de Paulo serve para ilustrar o quanto a relação com o numinoso envolve uma profunda catarse psicológica. Se a religião é linguagem, deus é semântica. As narrativas institucionalizadas (e institucionalizadoras) e, portanto, hegemônicas, criam condições inquestionáveis. Sedimenta certas seguranças. A afirmação de Paulo sugere pelo menos quatro importantes questões: (1) “está em Cristo”, sugere está subsumido numa realidade encapsuladora. “Está em Cristo” é pertencer a uma estrutura que possui efeitos psicológicos, que possui um conjunto de regras, leis; em que há uma linguagem conexa, que absorve o sujeito. É um processo de entrega. (2) “é nova criação”, indica uma transformação da consciência de si, do outro e do mundo. Não significa que haja um ser transcendente, superior, sensível e que interfira na história. O homem é capaz de intervir na história, modificar a natureza e a si mesmo. (3) “As coisas antigas passaram” – o “antigas” aqui significa meramente que o próprio sujeito ao estabelecer contato com “a linguagem transformadora” instaura uma delimitação cronológico-existencial. É o desejo, associado ao dispositivo de crença e credibilidade que confere a mudança. Os marcos são sempre psicológicos e existenciais. (4) “...surgiram coisas novas” – ‘nova’ é a percepção do marco, do limite, da delimitação estabelecida pela vontade daquele que entrou em contato com a “narrativa transformadora”. Denomina-se de “novo” o referencial estabelecido pelo encontro. A transformação é induzida pela própria disposição mental daquele que diz ter experimentado uma experiência nova, transformadora.

Reinaldo José Lopes em “Deus – como ele nasceu”, afirma: “Por mais que as pessoas acreditem estar na presença de Deus numa igreja, numa sinagoga ou numa mesquita, qualquer sensação especial que venham a sentir em contextos religiosos não passa do resultado de mensageiros químicos e impulsos elétricos pulando de um neurônio para outro em algum canto da cabeça delas”.

(Continua...)

segunda-feira, maio 06, 2019

"Mas e os outros?"



Sim. A pergunta do Armandinho faz todo sentido num mundo em que "o outro" é coisa, é objeto, é obstáculo a ser atropelado; que não cabe no campo do respeito, da consideração. Todas às vezes que estiver numa situação que envolver apenas o meu bem-estar, devo questionar: "Mas e os outros?"

domingo, abril 28, 2019

Dona Delfina ou há pessoas que se tornam encantadas

"Como é gostoso a gente viver"
Xangai             

   Existem pessoas que nascem para serem modelos; para serem aquelas que inspiram. Admiramos as suas histórias. Suas atitudes. A trajetória trilhada. As decisões que fermentaram uma vida inteira. São pessoas que deveriam viver por séculos e mais séculos. Todavia, a vida impõe um limite. A inexorabilidade da entropia alcança todos os corpos do universo. Todos os seres sólidos desmancham no ar. A vida biológica possui uma face cataclísmica.  É finita. Murchamos à medida que o tempo passa. Um dia somos matéria consciente; no outro, já não mais.

                Conheci a dona Delfina, avó de minha esposa, no ano de 2004. Viajei à sua casa no mês de março daquele ano, enquanto namorava a minha esposa, a Liana. Colhi as primeiras impressões. Fui espectador silenciosamente atento. Observei-a. Guardei os efeitos do riso fácil e da fala sincera. Minha esposa fez a provocante pergunta a ela naquela ocasião:

                 - “Vó, o que achou dele? – reportando-se a mim. 
                 Ela respondeu algo mais ou menos assim, entremeado por um riso ensolarado.
                - “Sim!”
                - “Gostei dele! Está aprovado!”

                Tudo aquilo era uma brincadeira, mas eu sabia que havia um fundo de verdade naquela fala marcada pelo dialeto franco, direto, simples do interior goiano. 

                Voltei à casa dela, em Pontalina, cidade onde morava, durante várias vezes até o ano de 2018. Em todas as ocasiões em que lá fui, voltei com uma reverente admiração por aquela mulher que criou os filhos sozinha; que nunca esmoreceu; que sempre foi ativa; que criava animais no fundo do largo quintal de que era dona; que cozinhava com o sabor de um imemorial tempero, aprendido no fogão das fazendas; que cuidava das plantas do quintal; que fazia planos; que viajava para os mais variados lugares; que possuía uma vontade firme e sabia muito bem o que queria. 

                Dona Delfina era bastante querida nas circunvizinhanças de Pontalina. Sua casa era um espaço em que sempre havia alguém realizando uma visita. As conversas se estendiam. Ampliavam-se sobre os mais variados assuntos. Algumas dessas pessoas eram da Igreja Presbiteriana. Ela frequentou essa igreja durante dezenas de anos. Sua fé e esperança eram imensas. Sempre crédula. Sempre afirmativa. Sempre temente ao seu Deus. Reverente aos princípios que aprendeu. 

                Sua vontade de viver a dominava por completo, mas o seu corpo sofria. Possuía uma outra lógica. Não acompanhava a sua vontade. Havia a limitação imposta pela inexorabilidade do definhamento físico imposto pela idade. O seu coração funcionava de forma descompassada. À proporção que o tempo passou, as crises cardiorrespiratórias se intensificaram. Recorrentes foram as pioras nos últimos quatro anos. Em alguns momentos, a família depreendeu que a crise do momento era a última. Mas, ela sempre se recuperou. Conseguiu ultrapassar a barreira da fragilidade física. Grande era a sua vontade de viver. Imensos eram os seus planos. Gigante era a sua fé. 

                Diz Mario Quintana em uma daquelas frases deliciosas, que deixam a respiração suspensa, fazendo girar os pensamentos: “Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver”. A vida está tão cheia de belezas. Tantas são as cores. As faces com as quais encontramos. As vozes que escutamos. As paisagens coloridas. Os sabores variados. As impressões colhidas em cada partida e em cada chegada. Sinceramente, a vida humana não se define apenas biologicamente. Há pessoas, em vida, que não conservam a vida em si. Permanecemos humanos e, portanto, cheios de vida, enquanto a alegria e a beleza esperança estiveram em nós. Quando são perdidas a alegria e esperança, transformamo-nos num casulo seco, de que a cigarra já saiu. 

                Guimarães Rosa disse a célebre frase no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras: “As pessoas não morrem, ficam encantadas... a gente morre é para provar que viveu”. Penso que nem todos fiquem encantados. Há aqueles que se desencantam, que perdem o brilho e a luz do bem-viver. Mas, há aqueles, que mesmo morrendo, transmutam-se. Passam a viver num espaço encantado no interior da memória. Deixam o mundo físico; passam a morar no interior de cada lembrança. O timbre da voz continua preso em nossa memória. A curvatura do corpo é presença. O sorriso é uma arte. Tenho essa reminiscência com algumas pessoas muito queridas que já se foram e agora vivem encantados.  Penso isso sobre três dos meus avós. Eles já não são presença física. Mas a ausência se torna presença imaterial no interior da memória. Vivem hoje encantados. Fica no intervalo ralo de cada pensamento aquilo que foi colhido, a marca definidora, aquilo que representa a pessoa. É assim que quando lembro de cada um dos meus avós, sempre os vejo com feições singularizadas. 

                Da mesma forma se dá com a Dona Delfina: ela se foi, mas vive encantada no espaço da memória. O trabalho do tempo, aliado com os processos da natureza, conduziram-na ao fim. Fazemos parte desse processo também. Todavia, esse mesmo tempo esculpiu uma imagem que não se apagará, enquanto todos aqueles que conviveram com ela, tornarem essa imagem em algo inquebrantável. É assim que nos encantamos. Passamos a viver dentro do outro. 

                Ao vê-la no caixão, fiquei observando a languidez de seu corpo. O quanto emagrecera nos últimos meses. A escrita do tempo estava em cada página do seu frágil organismo. Em seu rosto, contudo, havia o traço da bondade e da fibra que a alimentaram durante os seus noventa anos de vida. O trabalho incansável do tempo levou a Dona Delfina, mas, seres como ela, mesmo não vivendo por dezenas de séculos, encantam-se e passam a viver no espaço sagrado dos grandes afetos que temos dentro de nós.