"Como é gostoso a gente viver"
Xangai
Existem
pessoas que nascem para serem modelos; para serem aquelas que inspiram.
Admiramos as suas histórias. Suas atitudes. A trajetória trilhada. As decisões que
fermentaram uma vida inteira. São pessoas que deveriam viver por séculos e mais
séculos. Todavia, a vida impõe um limite. A inexorabilidade da entropia alcança
todos os corpos do universo. Todos os seres sólidos desmancham no ar. A vida
biológica possui uma face cataclísmica. É
finita. Murchamos à medida que o tempo passa. Um dia somos matéria consciente;
no outro, já não mais.
Conheci
a dona Delfina, avó de minha esposa, no ano de 2004. Viajei à sua casa no mês
de março daquele ano, enquanto namorava a minha esposa, a Liana. Colhi as
primeiras impressões. Fui espectador silenciosamente atento. Observei-a.
Guardei os efeitos do riso fácil e da fala sincera. Minha esposa fez a
provocante pergunta a ela naquela ocasião:
- “Vó, o que achou dele? – reportando-se a
mim.
Ela
respondeu algo mais ou menos assim, entremeado por um riso ensolarado.
-
“Sim!”
-
“Gostei dele! Está aprovado!”
Tudo
aquilo era uma brincadeira, mas eu sabia que havia um fundo de verdade naquela
fala marcada pelo dialeto franco, direto, simples do interior goiano.
Voltei
à casa dela, em Pontalina, cidade onde morava, durante várias vezes até o ano
de 2018. Em todas as ocasiões em que lá fui, voltei com uma reverente admiração
por aquela mulher que criou os filhos sozinha; que nunca esmoreceu; que sempre
foi ativa; que criava animais no fundo do largo quintal de que era dona; que
cozinhava com o sabor de um imemorial tempero, aprendido no fogão das fazendas;
que cuidava das plantas do quintal; que fazia planos; que viajava para os mais
variados lugares; que possuía uma vontade firme e sabia muito bem o que queria.
Dona
Delfina era bastante querida nas circunvizinhanças de Pontalina. Sua casa era
um espaço em que sempre havia alguém realizando uma visita. As conversas se
estendiam. Ampliavam-se sobre os mais variados assuntos. Algumas dessas pessoas
eram da Igreja Presbiteriana. Ela frequentou essa igreja durante dezenas de
anos. Sua fé e esperança eram imensas. Sempre crédula. Sempre afirmativa. Sempre
temente ao seu Deus. Reverente aos princípios que aprendeu.
Sua
vontade de viver a dominava por completo, mas o seu corpo sofria. Possuía uma
outra lógica. Não acompanhava a sua vontade. Havia a limitação imposta pela
inexorabilidade do definhamento físico imposto pela idade. O seu coração
funcionava de forma descompassada. À proporção que o tempo passou, as crises
cardiorrespiratórias se intensificaram. Recorrentes foram as pioras nos últimos
quatro anos. Em alguns momentos, a família depreendeu que a crise do momento
era a última. Mas, ela sempre se recuperou. Conseguiu ultrapassar a barreira da
fragilidade física. Grande era a sua vontade de viver. Imensos eram os seus
planos. Gigante era a sua fé.
Diz
Mario Quintana em uma daquelas frases deliciosas, que deixam a respiração
suspensa, fazendo girar os pensamentos: “Morrer, que me importa? (...) O diabo
é deixar de viver”. A vida está tão cheia de belezas. Tantas são as cores. As
faces com as quais encontramos. As vozes que escutamos. As paisagens coloridas.
Os sabores variados. As impressões colhidas em cada partida e em cada chegada.
Sinceramente, a vida humana não se define apenas biologicamente. Há pessoas, em
vida, que não conservam a vida em si. Permanecemos humanos e, portanto, cheios
de vida, enquanto a alegria e a beleza esperança estiveram em nós. Quando são
perdidas a alegria e esperança, transformamo-nos num casulo seco, de que a
cigarra já saiu.
Guimarães
Rosa disse a célebre frase no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras:
“As pessoas não morrem, ficam encantadas... a gente morre é para provar que
viveu”. Penso que nem todos fiquem encantados. Há aqueles que se desencantam,
que perdem o brilho e a luz do bem-viver. Mas, há aqueles, que mesmo morrendo,
transmutam-se. Passam a viver num espaço encantado no interior da memória. Deixam
o mundo físico; passam a morar no interior de cada lembrança. O timbre da voz
continua preso em nossa memória. A curvatura do corpo é presença. O sorriso é
uma arte. Tenho essa reminiscência com algumas pessoas muito queridas que já se
foram e agora vivem encantados. Penso
isso sobre três dos meus avós. Eles já não são presença física. Mas a ausência
se torna presença imaterial no interior da memória. Vivem hoje encantados. Fica
no intervalo ralo de cada pensamento aquilo que foi colhido, a marca
definidora, aquilo que representa a pessoa. É assim que quando lembro de cada
um dos meus avós, sempre os vejo com feições singularizadas.
Da
mesma forma se dá com a Dona Delfina: ela se foi, mas vive encantada no espaço
da memória. O trabalho do tempo, aliado com os processos da natureza,
conduziram-na ao fim. Fazemos parte desse processo também. Todavia, esse mesmo
tempo esculpiu uma imagem que não se apagará, enquanto todos aqueles que
conviveram com ela, tornarem essa imagem em algo inquebrantável. É assim que
nos encantamos. Passamos a viver dentro do outro.
Ao
vê-la no caixão, fiquei observando a languidez de seu corpo. O quanto emagrecera
nos últimos meses. A escrita do tempo estava em cada página do seu frágil
organismo. Em seu rosto, contudo, havia o traço da bondade e da fibra que a
alimentaram durante os seus noventa anos de vida. O trabalho incansável do
tempo levou a Dona Delfina, mas, seres como ela, mesmo não vivendo por dezenas
de séculos, encantam-se e passam a viver no espaço sagrado dos grandes afetos
que temos dentro de nós.
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