domingo, abril 28, 2019

Dona Delfina ou há pessoas que se tornam encantadas

"Como é gostoso a gente viver"
Xangai             

   Existem pessoas que nascem para serem modelos; para serem aquelas que inspiram. Admiramos as suas histórias. Suas atitudes. A trajetória trilhada. As decisões que fermentaram uma vida inteira. São pessoas que deveriam viver por séculos e mais séculos. Todavia, a vida impõe um limite. A inexorabilidade da entropia alcança todos os corpos do universo. Todos os seres sólidos desmancham no ar. A vida biológica possui uma face cataclísmica.  É finita. Murchamos à medida que o tempo passa. Um dia somos matéria consciente; no outro, já não mais.

                Conheci a dona Delfina, avó de minha esposa, no ano de 2004. Viajei à sua casa no mês de março daquele ano, enquanto namorava a minha esposa, a Liana. Colhi as primeiras impressões. Fui espectador silenciosamente atento. Observei-a. Guardei os efeitos do riso fácil e da fala sincera. Minha esposa fez a provocante pergunta a ela naquela ocasião:

                 - “Vó, o que achou dele? – reportando-se a mim. 
                 Ela respondeu algo mais ou menos assim, entremeado por um riso ensolarado.
                - “Sim!”
                - “Gostei dele! Está aprovado!”

                Tudo aquilo era uma brincadeira, mas eu sabia que havia um fundo de verdade naquela fala marcada pelo dialeto franco, direto, simples do interior goiano. 

                Voltei à casa dela, em Pontalina, cidade onde morava, durante várias vezes até o ano de 2018. Em todas as ocasiões em que lá fui, voltei com uma reverente admiração por aquela mulher que criou os filhos sozinha; que nunca esmoreceu; que sempre foi ativa; que criava animais no fundo do largo quintal de que era dona; que cozinhava com o sabor de um imemorial tempero, aprendido no fogão das fazendas; que cuidava das plantas do quintal; que fazia planos; que viajava para os mais variados lugares; que possuía uma vontade firme e sabia muito bem o que queria. 

                Dona Delfina era bastante querida nas circunvizinhanças de Pontalina. Sua casa era um espaço em que sempre havia alguém realizando uma visita. As conversas se estendiam. Ampliavam-se sobre os mais variados assuntos. Algumas dessas pessoas eram da Igreja Presbiteriana. Ela frequentou essa igreja durante dezenas de anos. Sua fé e esperança eram imensas. Sempre crédula. Sempre afirmativa. Sempre temente ao seu Deus. Reverente aos princípios que aprendeu. 

                Sua vontade de viver a dominava por completo, mas o seu corpo sofria. Possuía uma outra lógica. Não acompanhava a sua vontade. Havia a limitação imposta pela inexorabilidade do definhamento físico imposto pela idade. O seu coração funcionava de forma descompassada. À proporção que o tempo passou, as crises cardiorrespiratórias se intensificaram. Recorrentes foram as pioras nos últimos quatro anos. Em alguns momentos, a família depreendeu que a crise do momento era a última. Mas, ela sempre se recuperou. Conseguiu ultrapassar a barreira da fragilidade física. Grande era a sua vontade de viver. Imensos eram os seus planos. Gigante era a sua fé. 

                Diz Mario Quintana em uma daquelas frases deliciosas, que deixam a respiração suspensa, fazendo girar os pensamentos: “Morrer, que me importa? (...) O diabo é deixar de viver”. A vida está tão cheia de belezas. Tantas são as cores. As faces com as quais encontramos. As vozes que escutamos. As paisagens coloridas. Os sabores variados. As impressões colhidas em cada partida e em cada chegada. Sinceramente, a vida humana não se define apenas biologicamente. Há pessoas, em vida, que não conservam a vida em si. Permanecemos humanos e, portanto, cheios de vida, enquanto a alegria e a beleza esperança estiveram em nós. Quando são perdidas a alegria e esperança, transformamo-nos num casulo seco, de que a cigarra já saiu. 

                Guimarães Rosa disse a célebre frase no seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras: “As pessoas não morrem, ficam encantadas... a gente morre é para provar que viveu”. Penso que nem todos fiquem encantados. Há aqueles que se desencantam, que perdem o brilho e a luz do bem-viver. Mas, há aqueles, que mesmo morrendo, transmutam-se. Passam a viver num espaço encantado no interior da memória. Deixam o mundo físico; passam a morar no interior de cada lembrança. O timbre da voz continua preso em nossa memória. A curvatura do corpo é presença. O sorriso é uma arte. Tenho essa reminiscência com algumas pessoas muito queridas que já se foram e agora vivem encantados.  Penso isso sobre três dos meus avós. Eles já não são presença física. Mas a ausência se torna presença imaterial no interior da memória. Vivem hoje encantados. Fica no intervalo ralo de cada pensamento aquilo que foi colhido, a marca definidora, aquilo que representa a pessoa. É assim que quando lembro de cada um dos meus avós, sempre os vejo com feições singularizadas. 

                Da mesma forma se dá com a Dona Delfina: ela se foi, mas vive encantada no espaço da memória. O trabalho do tempo, aliado com os processos da natureza, conduziram-na ao fim. Fazemos parte desse processo também. Todavia, esse mesmo tempo esculpiu uma imagem que não se apagará, enquanto todos aqueles que conviveram com ela, tornarem essa imagem em algo inquebrantável. É assim que nos encantamos. Passamos a viver dentro do outro. 

                Ao vê-la no caixão, fiquei observando a languidez de seu corpo. O quanto emagrecera nos últimos meses. A escrita do tempo estava em cada página do seu frágil organismo. Em seu rosto, contudo, havia o traço da bondade e da fibra que a alimentaram durante os seus noventa anos de vida. O trabalho incansável do tempo levou a Dona Delfina, mas, seres como ela, mesmo não vivendo por dezenas de séculos, encantam-se e passam a viver no espaço sagrado dos grandes afetos que temos dentro de nós.

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