quinta-feira, maio 31, 2018

Dois comentários sobre Ciro Gomes e a candidatura do PT

De uma conversa que tive com o grande Charlles Adriano Campos:

(1)

Acabei de assistir à entrevista do Ciro no Roda Viva. Com todas as críticas que se possa fazer ao Ciro, vejo que ele é uma alternativa viável para que não caiamos de vez no abismo. Não digo que ele seja o salvador, o messias redivivo, capaz de nos levar a uma 'parousia. Todavia, Ciro demonstra sensatez, ideias que beneficiam os mais pobres; ideias capazes de tirar o Brasil da convivência com o absurdo das contradições histórico-sociais que nos fazem um país de otários enxugadores de gelo em um cenário de caos. Penso que o erro estratégico do PT é continuar insistindo em malhar o ferro frio. Dói dizer isso, mas Lula é um ponto fora da curva. As oligarquias do país utilizaram as instituições do Estado - principalmente PF, MPU e Judiciário - para aniquilar aquele que é a maior figura política do país, tendo a grande mídia como um centro propagador de narrativas. O PT precisa ser mais pragmático. Precisa pensar no país. Ter uma visão mais prudente, honesta, sobre a conjuntura política que nos envolve. O problema do PT é de pretensão hegemônica. Ele não quer permitir uma figura maior, capaz de obumbrar suas intenções eleitoreiras. Reunir todos os potenciais partidos de esquerda e montar uma ampla coalizão seria a solução. Ciro reúne as prerrogativas para encabeçar o movimento. Boulos, apesar de um sujeito inteligente, de boa índole, ainda não alcançou as credenciais para ocupar esse posto. Observando por viés altamente crítico de quem tem acompanhado o Partido- e com a mais repleta melancolia adstringente -, sou de acreditar que num eventual segundo turno em que o PT não estivesse, a presunção venceria. Imagine um segundo turno entre Ciro e Bolsonaro, seria bem possível que o PT ficasse neutro, um erro perigoso para quem tem apenas pretensões hegemônicas sem pensar no pacto social brasileiro que está se esfarelando desde o golpe de 2016.

(2) 

Charlles Adriano Campos, existem muitas questões que devem ser consideradas: (1) Lula é a própria alma do PT. É um membro em um organismo. O PT teria enormes dificuldades de viver sem ele. Ao longo dos anos o Partido não constuiu uma outra liderança com a sua densidade. (2) Vejo os principais líderes do Partido falando com uma crença inexpugnável de que Lula está no páreo. Eu não sei de onde vem essa fé. Não percebo qualquer movimento no Judiciário. O STF não votará nada que beneficie o Lula até a eleição. Ele ficará no ostracismo. Essa é a tática do jogo. (3) Lula sumiu dos noticiários dos jornalões. A intenção é fazer com que haja um esquecimento da sua pessoa. As próprias pesquisas realizadas pelo "mainstream" midiático não são comentadas ou anunciadas. A ideia é o esfacelamento da memória. (4) Ao não abrir mão da candidatura do Lula, a intenção do PT, talvez, seja mitificar o seu líder. Produzir um Mandela à brasileira. Criar um constrangimento internacional. (5) O Golpe de 2016 não foi dado para permitir o retorno do PT ao poder. Claro, com Lula haveria possibilidade de diálogo, da costura de alianças. Lula é habilidoso. Mas, os donos do poder sabiam que essa era uma possibilidade substantiva, por isso encamparam essa perseguição ao ex-presidente. (6) A suposta tentativa de gerar constrangimento internacional direcionado aos detratores de Lula, é um cálculo bastante ingênuo. Os algozes do PT não têm pudicícia, decoro; eles não ficam constrangidos. Não estamos lidando com donzelas de convento. Estamos lidando com uma plutocracia parasitária e que não gosta de pobre. (7) Ao ignorar a conjuntura, o PT, o partido com maior penetração social de nossa história, expõe a sociedade a uma ameaça terrível. Qual é o perigo? Que um fascistoide, apedeuta e mentecapto leve as eleições. O PT agarra-se a uma crença nas instituições viciadas, como se vivêssemos na Suécia ou no Canadá. (8) A resolução de criar de criar uma frente ampla para derrubar o Golpe de 2016, deveria ser uma questão de primeira ordem. O país vive uma crise social terrível. As candidaturas atomizadas de esquerda apenas fortalecem a marcha da direita e da extrema direita, que não se deixam levar por ingenuidades e por devaneios.

https://www.facebook.com/charllesadriano.campos/posts/465718127196141?comment_id=465771077190846&notif_id=1527803870301293&notif_t=feedback_reaction_generic
 

terça-feira, maio 29, 2018

A culpa pela crise

A situação de crise pela qual o Brasil passa exige mais que uma reflexão. É necessário fazer um balanço apurado, sensato, acurado dos atores e do contexto em que eles estão metidos. Um governo fraco, ilegítimo, aviltado pela própria condição intrínseca de que dispõe, não consegue sair do atoleiro. 

A greve dos caminhoneiros escancarou um problema sério do pacto social brasileiro. Vivemos em um país frágil, com uma população perdida no próprio transe da exploração. Nossa história prova o quanto somos alienados de todos os processos. O quanto que os mandatários do país foram responsáveis pela criação de determinadas narrativas, impedindo o acesso dos amplos setores de desfavorecidos à dignidade. 

Em momentos como este que vivemos, em que notamos o tensionamento de forças sociais, percebemos o quanto a política de espoliação da coisa pública é nociva para a sociedade. É praxe no Brasil a criminalização do Estado, um perigoso exercício que inverte a verdadeira responsabilidade pelos prejuízos sociais. Um Estado forte é um componente necessário para que a sociedade tenha condições de minimizar os seus principais problemas. 

Em sua jornada pelo senso-comum, o homem médio não questiona as forças atuantes do deus mercado. Este como sempre, é apontado como a solução para os nossos dilemas; que é só deixar nas mãos do mercado, que um milagre acontece. Verdadeiramente, um mercado forte, com toda a sua a potência predatória e um Estado sem freios como o nosso, provoca caos social e situações como a que enfrentamos no presente momento. 

Ao aplicar um golpe na presidenta eleita pela vontade popular (Dilma Rousseff), Temer e seus consortes desejavam a instalação de um projeto que fulminasse de vez com os direitos sociais dos trabalhadores brasileiros, além de precarizar a atuação dos órgãos, instituições e agências estatais. O objetivo era o beneficiamento do mercado. Congelar os gastos do Estado em áreas estratégicas. Fazer uma reforma trabalhista impopular, precarizando ainda mais a situação do trabalhador. Ou seja, criar uma espiral de reformas, cuja finalidade fosse exaurir, extorquir; tornar o trabalho e o trabalhador em meros objetos descartáveis. 

Ainda era intenção da gana neoliberal de Temer, realizar a famigerada reforma previdenciária, que lançaria, por vez, o Brasil numa ambiência medieval. Uma vez realizada nos moldes propostos pelo governo, certamente seria a condenação de boa parte dos brasileiros - principalmente os mais pobres - a uma condição análoga à escravidão. 

Um golpe não é um acontecimento isolado, sem ramificações e implicações políticas e sociais sérias. O arrocho sempre faz com que aquele que está sendo agredido, reclame, reaja de alguma forma. Sem base popular, Temer se ver numa encruzilhada, gerada como consequência do seu modus operandis. Sabe-se que o movimento de criminalização da política gerou efeitos deletérios. O governo não consegue dialogar. Patina em sua própria fraqueza. Sofre de inanição por causa de sua pequenez. No desejo de se ver livre do que afirmam ser "corrupção", determinados grupos "acenam" para os militares. Solicitam uma intervenção militar, o que resultaria numa crise mais séria do que o golpe na democracia acontecido em 2016. 

O pedido por intervenção é um gesto de ignorância dos mais profundos. Em um país como o Brasil, onde o Estado Democrático de Direito é uma miragem, a saída nunca pode ser pela via medonha do militarismo. Existe no imaginário do homem médio a ideia de que os problemas do país devem ser resolvidos pela força, pelo simples fato de nunca ter visto uma solução plausível para os dilemas do país. Como já afirmado, sempre houve a flagrante criminalização da política e do Estado. Nunca há o questionamento: "Qual é a parcela de culpa do deus mercado nisso tudo?" Boa parte dos agentes do mercado atuam com interesses mesquinhos na relação com o Estado. O Estado, como ente que aglutina os interesses da sociedade, é que é a vítima, pois a função dos agentes do mercado é a expropriação do fundo público, resultado dos impostos daqueles que produzem riqueza no país. 

Trata-se assim de uma crise que possui enraizamento sistêmico. Não se trata apenas de uma greve com feições pontuais. Não é evento desgarrado de outros acontecimentos. O simples fato de o governo insistir em manter a política de preços da Petrobras, sacrificando impostos necessários à manutenção financeira de áreas estratégicas, para, simplesmente, não contrariar os interesses dos acionistas da empresa é uma comprovação do quanto o mercado precede os interesses da sociedade. 


sexta-feira, maio 25, 2018

Uma resposta


Escrevi isso em um grupo de WhatsApp:

Markim, a Petrobrás é uma sociedade de economia mista. O que isso significa? Que é uma empresa de capital bipartido. Ou seja, você pode comprar ações da Petrobrás; qualquer pessoa pode se tornar um acionista. Todavia, o governo é o acionista majoritário. É diferente, por exemplo, de uma Caixa Econômica que possui capital 100% público. A política adotada nos anos do PT, desatrelava a Petrobrás da flutuação do dólar. O governo ditava as regras do jogo. Com isso, a Petrobrás não tinha os lucros que os acionistas exigiam. Era uma forma de o governo segurar os preços do mercado interno. 

Só que existe um problema: isso é uma ofensa para os adeptos do neoliberalismo. O estado, segundo eles, não deve interferir na economia. Uma empresa do porte da Petrobrás, com o potencial que possui, não pode ficar refém das decisões governamentais. Esquecem os pulhas - ou pelo menos não consideram por má-fé - o artigo 173 da CF: "Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei". A empresa é pública, logo ela possui uma relevante função social. Se você for se inteirar sobre o que o governo Temer está fazendo a Petrobrás, gera uma profunda indignação. 

O governo está vendendo refinarias e as empresas satélites da Petrobrás. Adivinha quem compra? As gigantes europeias ou estadunidenses. Peguemos, por exemplo, a Statoil, uma petroleira estatal norueguesa. Jamais que o governo norueguês permitirá que seja feito com a Statoil o que o governo brasileiro faz com a Petrobrás. A Statoil comprou parte dos campos do pré-sal. Por que esse interesse? Porque para se fazer um país forte como a Noruega, as estatais são essenciais. Estado norueguês regula boa parte da sua economia. Aqui, queremos colocar em prática modelos que faliram a Grécia, a Islândia e tudo mais.  Boa parte dos prejuízos da Petrobrás são resultado da desconfiança dos investidores por causa da devassa irresponsável da Operação Lava Jato, e não do modelo anteriormente aplicado nos governos petistas.

 A Petrobrás é a maior empresa pública do país. Foi criada por Getúlio Vargas para ter uma função estratégica na economia, hoje ela está sendo fatiada; preocupa-se em ser apenas mais uma empresa para satisfazer a lascívia dos neoliberaloides. Outra: o brasileiro no geral não sabe das coisas. Alimenta-se diariamente do que a mídia corporativa com suas informações viciadas noticia. 44% dos brasileiros não leem; a leitura dos brasileiros, quando realizada, oscila da autoajuda aos temas pouco problematizadores. O brasileiro faz piada com tudo e pouco politiza qualquer debate. Entende que política é um tema desnecessário. Afinal, foi vendida a ideia de que político não presta e herdamos de Sérgio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro, como diz Jessé de Souza, que tudo que se refere ao estado é ruim. Quando o brasileiro toma partido, aproxima-se dos extremos, dos radicalismos, vide os defensores do Bolsonaro. É claro que num cenário desses, o senso-comum vai prevalecer.

terça-feira, maio 22, 2018

Sobre uma classe média marrenta e burra

Hoje é comum encontrar um médico com pressa de chegar em casa para assistir ao Big Brother Brasil, um engenheiro prostrado em sua sala vendo programas de auditório de domingo, ou advogados e professores ansiosos para o lançamento do próximo Vingadores, filme de maior bilheteria da indústria cultural.

Uma pesquisa divulgada em 2016 mostra que 44% dos brasileiros não leem, e que 30% nunca compraram um livro. Portugueses já estão criticando a enxurrada de brasileiros que estão desembarcando em terras lusitanas, dizendo que os recém-chegados, em muitas situações, se “acham melhores do que as outras pessoas, ‘apesar de terem baixíssima cultura e civilidade’”, segundo o jornalista Sidney Rezende.

Curiosamente foi o PT que criou essa “nova classe média”, um grupo que saiu da classe D para a classe C devido ao aumento, exclusivo, do poder de compra. Lógico que o poder de compra leva a um acesso maior aos bens culturais produzidos e herdados historicamente. O número de brasileiros que frequenta a faculdade aumentou consideravelmente nos anos 2000. Mas por que o brasileiro continua inculto?

O pensamento estruturalista de Clifford Geertz e Raymond Williams entende “cultura” como redes de significações nas quais está suspensa a humanidade, ou como um sistema significante do qual uma ordem social é comunicada, reproduzida, experienciada e explorada. Mas, e aqui concordo com Terry Eagleton, “a cultura não é alguma vaga fantasia de satisfação, mas um conjunto de potenciais produzidos pela história e que trabalham subversivamente dentro dela”.[1] A neófita classe média parece desprezar o contato com esses sinais herdados historicamente.

Sim! Ao sair da classe D, faz questão de negar o que acha inferior, mas não consegue absorver os elementos mais “sofisticados”. Vê o pobre como inculto, ignorante, mas será que é tão diferente assim? Talvez o poder de compra a tenha contaminado, espiritualmente falando. Contudo, não podemos negar que ela corre atrás de cultura, pois busca estudar, se especializar, viajar etc., mas é uma cultura para ter trabalho e lazer, que jamais permitirá a inversão desse processo: o trabalho e o lazer para se ter cultura.

Adquire o conhecimento útil, apenas o que serve para o trabalho e, assim, obter poder de compra. Estuda, faz faculdade para ter um bom emprego e só. Cultura para trabalho e não trabalho para cultura. Essa classe média enche suas redes sociais com fotos de viagens, geralmente com legendas ligadas a diversão e ao lazer. Não pretende apreender a cultura dos lugares que visita, o “conjunto de potenciais produzidos pela história”, como disse Eagleton. É uma cultura que está para o lazer e a diversão e que jamais conceberá o lazer e a diversão para a cultura.

É uma classe que avilta tanto a cultura que coloca o dinheiro acima de qualquer manifestação interpretativa do real. Talvez por isso os professores são tão menosprezados atualmente, pois com o salário que recebem, não podem ser tão confiáveis assim. Confiam mais em comediantes, atletas e youtubers endinheirados que na fala de um especialista assalariado.

Não estou dizendo que a pessoa não pode ir ao cinema ou consumir o que quiser apenas para se divertir, mas que os instrumentos disponíveis por ela, em muitos casos, para interpretar o que vê, não estão tão distante dos das crianças que só têm “como atração o bar e o candomblé pra se tomar a bênção”.

O mercado se aproveitou dessa “cultura” de classe média e intensificou uma indústria cultural que vende o que a mantém mentalmente na posição que está (enojando a produção cultural dos debaixo, e invejando a vida material dos de cima). Na produção excessiva de séries e filmes, uma ideologia que foca na liberdade de consumo é venerada, provocando risos, lágrimas e catarse. Além de cultuar a tecnologia, um dos principais alvos do seu exagero consumista.

A classe média critica o modo de vida da “ralé” (termo usado pelo sociólogo Jessé Souza), sua religião, sua música, a humilha na atividade laboriosa, esbanja sua soberba e superioridade, mas é inculta, não lê, e se contenta com análises superficiais da política, da economia e da sociedade que vive.

Como disse Terry Eagleton, a cultura produz elementos que podem ser usados contra ela mesma, isto é, subversivos. No entanto, essa classe que está mais preocupada em gastar em objetos que não passam de símbolos que esnobam uma superioridade alienada e alienante, não é capaz de criticar o que consome, apenas reproduz uma condição social e mental que seja supostamente útil para diferenciá-la das classes desprivilegiadas.

A partir da década de 1960, cultura passou a significar a afirmação de uma identidade, seja ela nacional, sexual, regional etc. A comercialização dessas identidades pela indústria cultural trouxe uma tolerância de fachada, consumidora apenas, que na prática, na troca simbólica do dia a dia, não mudou muita coisa. Essa classe média, principal consumidora dessa indústria, representa muito bem isso. Além disso, essa “cultura das identidades”, representada e apropriada pelas séries da Netflix e pelos filmes de Hollywood, desprezou as contradições da classe trabalhadora, ajudando a construir, na mentalidade dessa classe média, um ódio ao pobre maior que ao gay, ao negro, à mulher etc.

Contudo, quando esse grupo pensa em mudança, não almeja ir para frente, mas voltar a um passado de quando não era classe média, quando o que chama de “ordem” vigorava, quando aqueles que veneram (ricos empresários e poderosos “dignos”, como militares e alguns políticos entreguistas) eram “justos”, quando era menos arriscado consumir, embora a cultura fosse reprimida…

A ascensão social gerada pelo governo Lula produziu uma classe acéfala que presa mais pela condição de consumidor que a de cidadão. Que adquire cultura o suficiente para o trabalho, mas que não trabalha para adquirir cultura. Que gasta em cultura para adquirir prazer e não em prazer para adquirir cultura. Desta maneira, a arrogância encontra diversos hospedeiros que vomitam soberba e proliferam o ódio de classe.


*Raphael Silva Fagundes é doutorando do Programa de Pós-Graduação em História Política da Uerj e professor da rede municipal do Rio de Janeiro e de Itaguaí.

sábado, maio 19, 2018

Algumas palavras sobre "A verdade vencerá - o povo sabe por que me condenam", de Luiz Inácio Lula da Silva

Acabei a leitura do livro "A verdade vencerá - o povo sabe por que me condenam", editado pela Boitempo. O livro é resultado de horas de entrevistas de quatro pessoas (Ivana Jinkings, Gilberto Maringoni, Juca Kfouri e Maria Inês Nassif) que dialogam francamente com Luiz Inácio Lula da Silva, uma das figuras mais importantes da história política brasileira. 

Vale mencionar os quatro textos escritos na parte inicial do livro, com destaque para a crônica política de Luis Fernando Veríssimo e o artigo preciso escrito pelo habilidoso Luis Felipe Miguel, professor da Universidade de Brasília. 

Após a leitura do livro, restou-me a impressão (ainda mais forte) de que Lula é uma figura sui generis. Seus inimigos podem não gostar de sua pessoa, mas, devem, no mínimo, respeitar a sua trajetória política e histórica. A entrevista se mostra uma verdadeira aula de como acontece o jogo político. Não há um esquematismo sistemático típico dos intelectuais herméticos. Lula discorre com simplicidade o mundo grande, graúdo, das negociações políticas; dos conchavos, das traições; de como se deve respeitar o seu mais terrível algoz. 

Demonstra uma finesse no tratamento com os adversários. "O conselho que eu dou é não entrar na política. Porque a arte da política é você conversar com os contrários". Talvez, esse respeito não seja dispensado a ele. Afinal, seus algozes são implacáveis. Lula é um exímio construtor de frases. Suas verbalizações conseguem gerar empatia. Isso é um dos seus trunfos, o que o torna popular, querido por boa parcela da população mais pobre, gerando medo nos seus adversários. 

A entrevista toca em temas políticos sensíveis como, por exemplo, a traição de companheiros de partido, como é o caso de Antônio Pallocci. Busca problematizar o que gerou o impedimento de Dilma. A dificuldade que Dilma possuía para dialogar; o fiasco das decisões tomadas por Dilma logo após a vitória eleitoral em 2014. Aquilo que foi possível realizar quando era presidente e os sonhos que alimenta em relação ao país.

Lula se afirma inocente em todas as perguntas e direciona à Lava Jato, a responsabilidade pela criação de provas forjadas para incriminá-lo. Há uma noção muita clara de quem são os responsáveis pela perseguição orquestrada contra a sua pessoa. Lula fala ainda sobre a imagem que o país passou a ter internacionalmente após o seu governo. Os principais líderes do mundo passaram a respeitar o Brasil pela capacidade que Lula tinha de negociar. Senti falta de temas relativos à América Latina. Todavia, torna-se compreensível a ausência desses temas pelo fato de, no momento da entrevista, fevereiro de 2018, a condenação pelo TRF4 e a iminência de sua prisão, serem os temas do momento.

Fui ler na Amazon alguns comentários, tentando entender a percepção de algumas pessoas sobre o livro. Assustei-me com as afirmações. Certamente, o ódio leva as pessoas a perderem a o bom-senso. Aqueles que se dizem liberais no Brasil - entre estes estão os principais perseguidores de Lula - não sabem o que é liberalismo. Lula se mostra mais liberal do que aqueles que assim se autointitulam. Aquela máxima: "Posso não concordar com o que você diz, mas devo defender até a morte o direito de você dizer" não é consdierada. Há xingamentos. Falta de trato. Ausência de respeito à trajetória política. Insinuações de que Lula é ladrão - este um dos argumentos mais baixos e rasteiros que se possa imaginar. 

Aqueles que isso insinuam, não entenderam o livro, não entenderam a aula dada por Lula. Pelo menos cinquenta anos de história política é despejada em sua entrevista, reforçada pelas mais de duzentas referências a personagens e a acontecimentos.

Se Lula fosse uma personagem do mainstream político como os tantos que existem no Brasil, ele não sofreria a perseguição diuturna de que é alvo. Essa perseguição é resultado de um preconceito por tudo aquilo que ele representa - pela sua origem, pela sua militância, pelo fato de ser uma das personagens mais respeitadas no mundo inteiro, por ter realizado um realizado um governo de que os mais pobres têm saudades, por possuir 33 títulos de doutor honoris causa; por ter fundado um partido que possui densidade política e penetração social. 

As elites brasileiras, com os seus braços de poder na mídia, no judiciário, no sistema financeiro e nos vários setores de decisões do estado, sempre se utilizaram de manobras para impedir qualquer tipo de mudança. A condenação de Lula passa por isso. Lula foi condenado e está sendo perseguido pelo fato de ser Lula. Se não tivesse essa capacidade política de mobilização que possui, seu processo prescreveria e ela ainda concorreria cinicamente às eleições com a certeza de que venceria. Não seria molestado pela opinião pública. Não haveria essa estrutura de ódio construída contra a sua pessoa. 

A crítica que percebemos nas falas do ex-presidente se assentam na credulidade exacerbada que possui nas instituições do Estado. Uma crença de que a própria sociedade que incrimina é aquela que vai inocentá-lo. Lula se esquece de dois fatos: (1) O estado moderno é uma instância do poder da burguesia, das elites que comandam o estrato social. Ela se mune construindo um muro por meio das leis e interpretações que as personagens que possuem poder de mando orquestram. Os poderes constituídos (Executivo, Judiciário e Legislativo) são instâncias que tomam decisões políticas, que criam realidades jurídicas incompatíveis com o ideal daquilo que é democracia. A expectativa de democracia no estado burguês vive de conveniências. Os golpes e a capacidade de manipulação das decisões conduzem o processo político, incriminando determinados movimentos ou permitindo a sua existência enquanto esse não oferecer resistência às estruturas de classe da sociedade capitalista. (2) Lula se esquece de que o povo, essa entidade cooptável, manipulável, precisa de uma preparação, de educação política para entender determinados processos. E foi justamente isso que o seu governo não fez. O PT não foi capaz de mobilizar os vários movimentos da sociedade civil para debater determinados temas, que são fundamentais para gerar mudanças nesse país. Se esse fato tivesse acontecido, talvez, a Dilma estivesse terminando o seu segundo mandato e Lula assumisse a presidência, pela terceira vez, permitindo ao Partido a quinta vitória. O PT permitiu que a astúcia de seus opositores fosse maior do que a capacidade de mobilização de sua militância. 

No geral, o livro é muito bom! Vale a leitura. É preciso ler com tranquilidade para perceber a sensibilidade de cada palavra enunciada por Lula. É essa sensibilidade intrínseca que torna o livro valioso. Talvez a verdade triunfe daqui a cinquenta ou cem anos, como hoje se olha pra trás e se entende as dificuldades enfrentadas por Getúlio Vargas, JK ou João Goulart. Daqui a algumas décadas, os livros mostrarão o quanto o Brasil perdeu a chance de avançar socialmente por ter "criminalizado" a figura que tinha condições de realizar isso.