quinta-feira, fevereiro 28, 2013

Uma audição de final de mês


Trabalho em demasia. Sem tempo para ler. Sem tempo para escrever. Final de fevereiro. Para descontrair, resolvi ouvir um disco espetacular. Fazia um bom tempo que eu não o escutava. Disco de 1972, do genial Lou Reed, uma figura icônica da história do rock. Transformer é um dos seus melhores discos. 

domingo, fevereiro 17, 2013

O ser brasileiro e a música de Elomar Figueira Mello

O fato de ser brasileiro gera um misto de descontentamento e alegria. O descontentamento  fica por conta dos tantos absurdos que acontecem todos os dias em nosso país. O Poderes da República completamente apodrecidos. O jeitinho que é um modo de navegação social. As desigualdades sociais que nos passam a ideia de uma sociedade estamental. A tributação pesada que pagamos e não temos os serviços essenciais - segurança, educação, saúde - a contento. As mentiras que são contadas pela mídia. Os programas crassos que são veiculados e que brutaliza a maior parte dos brasileiros. O fisiologismo partidário. A impressão de impunidade. De que trabalhamos para alimentar uma máquina que nos corta, que nos pune, que nos vilipendia.

A mídia trabalha com a ideia de que somos brasileiros em ano de Copa do Mundo. Naqueles momentos em que um esportista ganha alguma medalha nesses campeonatos internacionais. Ou que aumentará o nosso orgulho quando ganharmos um daqueles incipientes Orcars. Ou ainda seremos melhores quando sediarmos as Olímpiadas. Para isso criaram um bordão decadente: "Sou brasileiro; não desisto nunca". Ser brasileiro é mais do quê essas baboseiras construídas pelo discurso da mídia. 

Somos um país bonito. De natureza privilegiada. De praias belíssimas. De ricas florestas. De rios belíssimos. De chapadões largos, imensos. De cerrado vistoso. Dos alagados do Pantanal. Da imensa e prodigiosa Amazônia. No que tange ao mundo artístico, também não é para menos. Fiz essa digressão inicial, pois tenho ouvido com bastante intensidade as músicas de Elomar, um baiano que se mostra como um dos maiores poetas de nossa terra. Tantos brasileiros não o conhecem. Não sabem quem é esse sujeito de uma simplicidade incomum e com um forte senso de profundidade estética. 

Elomar Figueira
Elomar nos prova que para fazer o belo, que para construir uma obra de arte, não é necessário ler intricados manuais. Abeberar-se de fórmulas acadêmicas. A beleza é como o sopro do vento. É preciso ficar quieto e em silêncio para percebê-la. Hoje, pela manhã, ouvi o disco "Xangai canta Elomar" e algo de uma leveza, de uma sublimidade, invadiu o meu coração. Um riso bobo e uma frase ecoou inevitável: "Meu Deus, que coisa mais linda!" 

O compositor baiano Elomar segue a tradição das cantigas medievais. Seu cancioneiro está repleto da tradição dos reis, que saíam pela Idade Média cantando as belezas do mundo. É tradição das canções de amigo. Elomar apropriou-se dessa linguagem e inseriu nela o calor, os modos populares, a fala, a natureza sinuosa do sertão, eivada por uma espiritualidade que nos faz chorar. Após ouvir Xangai cantar Elomar, fico com a firme convicção de que a obra de Elomar é o espírito da obra de João Guimarães Rosa sendo cantado. 

Um riso abobalhado brota no canto dos lábios após ouvir a música "As curvas do rio" (abaixo); e isso me faz me apegar ainda mais àquilo que de mais belo existe em nossa terra. 










quarta-feira, fevereiro 13, 2013

A recordação inevitável da casa dos mortos

"O homem que não tiver um anseio ou uma esperança acaba, no desespero, virando um monstro...".

Terminei há alguns dias a leitura de Recordação da Casa dos Mortos, de Dostoiévski. Certamente esse livro se inscreveu como uma das coisas mais fantásticas que já li. O livro retrata o período em que o escritor ficou preso na fortaleza de Omsk, Sibéria, de 1849 a 1854. O escritor teve a sua pena comutada após ter sido condenado à morte por causa de atividades políticas suspeitas. No momento da execução, as forças imperiais mudaram os intentos. Mandaram-no para a distante e inóspita Sibéria, uma das regiões mais terríveis para se sobreviver no planeta. Curiosa são as palavras das páginas iniciais proferidas pelo escritor: "A melhor definição que posso dar de um homem é a de que se trata de um ser que se habitua a tudo".

É partindo da observação, dessa adaptabilidade ao funesto, que Dostoiévski faz a sua análise quase clínica. Ele cria uma narrativa que funde realismo e ficção. Esculpe uma personagem estranha chamada Alieksandr Pietróvitch. Descreve com enorme imparcialidade a rotina da cadeia. Fala sobre os animais. Dos oficiais. De como os presos eram dados a extravagâncias, mesmo vivendo em um ambiente de privações e severidades. De como aconteciam as punições, ou seja, as penas de até 4 mil chibatadas. As humilhações a que os prisioneiros eram submetidas. A comida terrível, coalhada de barata. A vocação artística de muito dos prisioneiros. A maldade de um certo major que acaba na bancarrota. O trabalho forçado. As planícies imensas da Sibéria. O frio fulminante. O banho na sauna coletiva. As palavras de Dostoiévski no que tange a esse evento são fantásticas:

"Ao transpormos a entrada, puxando a porta que dava para o banheiro, até pensei que estava entrando nas caldeiras do inferno. Imagine-se uma sala com doze metros de largura e outros tantos de comprimento onde se acham no mínimo oitenta pessoas reunidas, pois ali estava pouco menos da metade do presídio, que contava com duzentos detentos. Um vapor espesso, gafeira, lama, e um tal aperto que uma pessoa nem arranjava lugar para pôr o pé" (p. 134).

E é justamente nesse cenário de "caldeiras do inferno" que estão aglutinados os "mortos". Quem era condenado a viver naquele espaço experimentava a não-vida; a inapetência completa pelas coisas do existir. Os prisioneiros eram levados para aquele lugar para serem humilhados. A menor falta de estabilidade psicológica, destroçava o indivíduo. Voltava-se dali com a impressão de que se esteve Hades. 

Dostoiévski tece a partir desse quadro melancólico uma das mais belas narrativas de todos os tempos. Ele traceja os perfis psicológicos de certos sujeitos que lhe chamaram a atenção de forma destacada. Costura ações. Descreve aquilo que a cadeia fez com cada um daqueles homens. É ali que ele encontra um combustível denso para a literatura. Suas personagens são tipos escuros, que ora vivem nas sombras, ora querem vir à luz. Talvez tenha sido ali que ele tenha encontrado uma matéria densa para os seus romances posteriores.
Sibéria. O que tem de linda, tem de terrível

Isso me faz lembrar do filme Memórias do Cárcere, de Nelson Pereira dos Santos, baseado no livro homônimo de Graciliano Ramos, livro este tão brilhante e genial quanto o do Dostoiévski - também revelador da experiência infausta da masmorra do presídio. Nas cenas finais do filme, Carlos Vereza, que fazia o papel diz Graciliano, diz quando estava para sair da cadeia: "Obrigado! Os senhores me deram uma matéria formidável para um livro!" O burocrata da Casa de Correção, aturdido, diz em desespero: "A culpa é desses cavalos que mandam gente que sabe ler para cá!"

Dostoiévski fez anotações escrupulosas e em 1861, publicou esse livro que é um divisor de águas em sua obra. Recordação da Casa dos mortos do ponto onde estar é uma fundamental para se entender os livros da fase madura do escritor russo - O idiota, Os demônios, Crime e Castigo e Os irmãos Karamazovi. O livro possui um estilo leve, corrediço, mas de uma densidade provocante, com a montagem de quadros psicológicos grandiosos. Na prisão de Omsk, estava um substrato, uma representação, um quadro amostral da escória da Rússia. E  daí surge a frase inicial que coloquei como epígrafe desses devaneios: em meio à selvageria e à barbárie é preciso ter esperança, ter uma planície luminosa de esperança dentro de si para não submergir ante o caos contingente. Dostoiévski esteve na casa dos mortos e saiu de lá com uma matéria humana formidável para escrever grandes livros. 



terça-feira, fevereiro 12, 2013

Uma pensata... um devaneio... uma constatação

Assisti a este documentário há pouco. Uma verdadeira aula sobre o mistério inextricável do surgimento do universo, da vida e o destino de todas as coisas. Ao final do documentário, resta-nos uma sensação de humildade. Uma percepção de que somos aquilo que Carl Sagan afirmou: "A consciência do cosmos". Pois a nossa condição de seres pensantes, dá-nos o privilégio para que entendamos que as mesmas moléculas que estavam nos milésimos iniciais do surgimento do universo, estão em nosso corpo e, quando dia um desaparecermos desse lindo planeta, por conta dos processos entrópicos subjacentes ao cosmos, restará o universo, que poderá também chegar ao fim. Isso é belo. É lindo! E nos dá uma missão fantástica. É preciso olhar para cima e nos espantarmos com esse halo tênue e terrível que nos envolve nesse grande mistério que é o nosso destino. O nosso destino depende do universo. Não somos maiores do que ele. Somos a poeira das estrelas. O resultado inevitável da dialética do caos primordial. Ou como dizia Pascal: "Caniços pensantes!" 

Esse é um tema que sempre suscitou em mim uma sensação maravilhosa de espanto e curiosidade. Talvez, estes devam ser os efeitos causados por aquilo que é grande, maior do que a gente. Pascal tem uma outra célebre frase que explica esse pasmo: "O silêncio desses espaços infinitos me apavora". Existimos contingentemente.  Somos matéria, mas também somos uma consciência que pensa; que sabe que está consciente. Um ser complexo e ao mesmo tempo frágil em sua constituição material. O espírito de vida que habita em nós murcha com o tempo e voltamos a nos integrar aos elementos orgânicos da matéria. Os poemas sagrados dos judeus afirmam: "Tu és [homem] pó; e ao pó voltarás". Essa percepção nos torna suscetíveis a pensamentos errantes e devaneios enormes. Emula fascínio e pessimismo. Esse fato direcionará as minhas próximas leituras: A teia da vida (Fritjof Kapra); Do sentimento trágico da vida (Miguel Unamuno); Pensamentos (Pascal). 

Abaixo, o maravilhoso documentário do History Channel:




sexta-feira, fevereiro 08, 2013

Um conto de Clarice e um vídeo sobre um conto de Clarice

Clarice Lispector, uma das maiores escritoras da literatura brasileira, escreveu um conto chamado Felicidade Clandestina, retratando a paixão de uma menina por uma livro de Monteiro Lobato. É um textos mais belos de sua produção literária. Um dos trechos mais marcantes do conto reside na parte final. Clarice desvela com belas palavras a paixão da menina pelo livro conseguido. Li este conto no dia de hoje com os meus alunos. A Secretaria de Cultura da Prefeitura do Recife fez um belo curta-metragem sobre o conto de Clarice. O vídeo é muito bonito. A atriz que faz o papel da Clarice (uma interpretação livre do conto) é muito bonita. Uma criança que enche os olhos de delicadeza. Abaixo, o conto da Clarice e o vídeo:

Felicidade clandestina - Clarice Lispector

Clarice Lispector
O Primeiro Beijo
São Paulo, Ed. Ática, 1996

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato.

Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria.

Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama do "dia seguinte" com ela ia se repetir com meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era a descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que eu não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.

Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.


sábado, fevereiro 02, 2013

Devaneios, Jim Morrison e o navio de cristal

"Os dias são luminosos e cheios de dor". Jim Morrison

O The Doors foi um banda que representou uma época. Jim Morrison, essa figura icônica, foi o profeta de uma geração; aquele que percorreu pelas estradas dos sentidos. Uma personalidade maldita; um poeta rebelde que renunciou às convenções e experimentou uma espécie de romantismo byroniano. Viveu a maldição de flertar com o infinito e ser tragado pelo abismo. É como se ele dissesse: "Alguns nascem para mergulharem na massa; já, outros, nascem para se esconderem na noite imensa da existência".

É no simbolismo de sua poesia repleta de sentidos abismais que me perco. Já ouvi esta música Crystal Ship muitas vezes no dia de hoje. A voz bela, erótica, veludosa, melancólica, de Jim Morrison, embala-me como se eu estivesse caminhando numa auto-estrada e minhas pernas tivessem controle sobre o meu corpo. 

Ou como diz Fernando Pessoa em versos que deveriam ser musicados:

Ó naus felizes, que do mar vago
Volveis enfim ao silêncio do porto
Depois de tanto noturno mal - 
Meu coração é um morto lago,
E à margem triste do lago morto
Sonha um castelo medieval...




Abaixo, alguém falando (eu mesmo, quando estive na casa da minha avó - Pernambuco - 13/01/2013) saudosisticamente... uma espécie de devaneio inevitável. O meu corpo não aparece. Apenas a voz.