quinta-feira, dezembro 03, 2015

Meu desalento e o momento político

Após alguns meses de ausência, eis que volto a este espaço para debulhar algumas garatujas e sensaborias. Ontem, no princípio da noite, após ter ido a uma confraternização, recebi uma atualização no meu celular sobre o pedido deflagrador do impedimento político de Dilma por parte de Eduardo Cunha. Aquela notícia - também comentada por dois ou três circunstantes da mesa - me deixou com uma preocupação imprecisa, um misto de ânsia e afetamento moral. 

Vivemos dias tão estranhos, que nivelamos todas as invirtudes. Misturamos o alto e o pequeno; o dia e a noite e dizemos que não há diferenças nítidas entre eles. O governo de Dilma Rousseff tem sofrido aberrantes ataques. Uma horda de abutres políticos arranca pedaços do já desfalecido organismo tombado e transmite esses vapores venenosos para a sociedade. O corpo sem reação sofre golpes por todos os lados e, por mais que tente se erguer, não dispõe de forças suficientes para tal. Suas investidas são confusas. Associam-se ao incerto, acumpliciam-se com o duvidoso, o que torna a visão potencializadora de melancolia e desespero.

Quando cheguei à noite, conversei com a minha companheira e declarei o meu abatimento. Relatei o meu desalento em viver em um país onde a democracia é só um nome de fachada, pois o que prevalece é a negociata, a mão que entrega o maço de dinheiro por debaixo da mesa. Um país cujo processo de participação popular é quase inexistente, cujo colóquio com as massas é uma realidade virtual; país cujo ethos do colonialismo ainda está fincado em nossa consciência, insinuando-se como mensagem subliminar, impedindo avanços, freando qualquer tentativa de partida. A história tem mostrado que caminhamos cinco anos e retrocedemos trinta.

É triste viver em um país, em que desde a Proclamação da República (1889), seis ou sete golpes da burguesia aconteceram trazendo implicações medonhas para o nosso ralo formato democrático. E a essa altura do campeonato, uma presidenta legitimamente eleita pelo povo (mais de 54 milhões de votos) tem à sua frente um horizonte nebuloso e espectral. E quais são as consequências disso para os trabalhadores?

É triste viver em um país em que as elites detentoras dos meios de comunicação constroem uma cortina de fumaça para que o povo não enxergue, de fato, os bastidores da República: o jogo sujo, de interesses velados e explícitos; o lobbysmo dos mau-caráter, o discurso ambíguo dos moralistas, o fascismo dos interesses anti-humanitários, o atentado contra as minorias, o derretimento dos valores fundamentais expressos na Constituição. 

E o que causa um profundo enfado é saber que o start, o disparo contra a presidente foi dado por uma crápula, uma pulha, um sujeito sem moral, cujo deus a quem serve, no dizer de Cristo, é mamon (o deus dinheiro). Um falsário, um pilantra de quinta categoria, que visualiza apenas o próprios interesses e está pouco preocupado com o destino político e econômico do país. O senhor Cunha faz parte de uma sigla partidária que tem apenas uma ideologia: o poder. Sua existência de inseto se assemelha a de um carrapato, que para existir, gruda-se a algum organismo e chupar-lhe o sangue. O organismo o qual o PMDB parasita é o Estado. O partido do senhor Cunha (juntamente com ele e seus asseclas) atenta contra o Brasil. Nele estão empresários, sujeitos encalhados, decadentes politicamente, analfabetos de toda estirpe, cujo interesse é o poder a consequência dele: o dinheiro do erário. 

Penso que o problema do partido da presidente foi fazer aliança com essa canalha. Negociar com "pirata" é correr o risco de ser traído. O erro do Partido dos Trabalhadores foi escolher o outro lado; fortalecer as elites; entrar em um jogo em que a moralidade é um princípio desconhecido. Fortalecer as hostes do "achacadores" da República. Tivesse dialogado com os movimentos sociais, fortalecido a sua militância de base, buscado a força dos trabalhadores, talvez, não estivesse sendo balançado por ventos tão medonhos. O Governo alimentou um monstro e, hoje, tenta controlá-lo com plumas de ganso. 

Aqueles que acham que pior do que está não fica, podem está enganados. Pensar que tirar Dilma "estabiliza" a casa é ter uma visão "pequena" sobre os fatos. É ser simplista. Dilma com todas as fragilidades, é o melhor que temos "no momento" a favor dos trabalhadores e dos movimentos sociais. Sua fraqueza se materializa em um fato, por conta da opinião pública. Ela apanha por está sendo esmagada pelo abraço de serpente da mídia. Sem força, ela vacila e claudica. Não governando Dilma, quem se colocaria no lugar dela? Em linha sucessória direta de acordo com a Consituição: Temer, Cunha, Renan, Lewandowsky? Em um outro pleito: Aécio? Ora, não sejamos inconsequentes!

A tristeza subiu leve por escadas invisíveis e chegou até o meu coração. Acordar todos os dias. Trabalhar. Ver a soma de descontos no seu contra-cheque. Construir discursos. Acreditar em melhores dias. Fazer militância. Defender os seus ideias. Entender que está do lado do oprimido é está do lado certo. Todavia, perceber que as instituições políticas do seu país militam contra o seus sonhos, a saber,  de ver um país mais justo, fraterno e com seguridade social plenos, deixa o sujeito zonzo, como se tivesse levado uma pancada no crânio. É assim que me sinto!


terça-feira, agosto 04, 2015

A prisão de Zé Dirceu é um lance de xadrez para aplicar o xeque-mate

O xadrez político do mês de agosto revela lances premeditados, previsíveis. Não há um córrego intermitente a impelir um regato tímido e morrediço como muitos acham. Há um mar revolto, com águas vermelhas, caóticas, representando hegemonicamente os anseios de boa parcela da população brasileira. A mídia (os jornalões, os revistões e a televisão), os partidos de oposição, o Judiciário, os presidentes do Senado e da Câmara, o alto escalão do empresariado, estudam movimentos para asfixiar o Governo com um xeque-mate. A prisão do Dirceu é uma tentativa de atingir o Lula. O alvo do juiz Sérgio Moro e da mídia é o Lula. Repito: o alvo das investigações é o Lula. Eles movimentam as peças. Sabem que cada lance deve ter uma ciência. Uma vez que se atinja o Lula, desmorona o castelo do Partido dos Trabalhadores. Eles possuem o poder, são uma categoria que manipula o cenário político. Mas sabem que não podem aplicar um golpe sozinho. Por isso, criam um cenário de implosão, de um armagedom de corrupção com suas notícias seletivas e tendenciosas. 

Quem monta o palco para o golpe são as elites, mas quem bate palmas para as ações farsescas da burguesia são os setores conservadores da sociedade.  Marx em seu livro "18 de Brumário de Luís Bonaparte", um estudo que fez sobre o golpe de estado aplicado na França pelo sobrinho de Napoleão - Luís Bonaparte - disse algo fantástico: "Em alguma passagem de suas obras, Hegel comenta que todos os grandes personagens da história mundial são encenados, por assim dizer, duas vezes. Ele se esqueceu de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa". E mais à frente: "Os homens fazem sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se encontram. A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos". 

Ou seja, é possível perceber um certo movimento que se repete - não da mesma forma. Uma ação deliberada, que caminha com passos silenciosos, velozes, para asfixiar os setores progressistas do país. O que vemos hoje é uma declaração de extinção dos valores e direitos fundamentais preconizados na Constituição. A oposição está pouco se lixando com a dita corrupção do PT. Ela sabe que, no fundo, os seus próprios valores não são íntegros, probos, retos e a favor da justiça. O que ele procura é rechaçar de qualquer forma o perigo que o PT representa. Ela quer o Estado de volta. E, atualmente, "o tema corrupção" é aquilo que deslumbra e indigna a sociedade. A corrupção faz parte do "modus faciendi" da sociedade brasileira. O modo de navegação que impele o sujeito médio do país é aquele que faz com que ele busque tirar vantagens do máximo de situações, sem se preocupar com o outro ou com os efeitos de sua ação sobre a coletividade. Chico Buarque ironizou isso em uma de suas músicas, dizendo que "não existe pecado do lado de baixo do equador". Enquanto não se entender isso, continuaremos a apontar dedos, desferindo golpes inocentes em inimigos invisíveis. 

O fato é que o cenário é complicadíssimo para o Governo. A mídia e os outros jogadores citados acima - que fazem parte do mesmo grupo - sabem que é preciso incendiar, jogar combustível, alimentar a indignação alienada da classe média para que a marcha acéfala do dia 16 ganhe corpo e não seja como a última que aconteceu em abril. É preciso arranjar atores, imolar supostas vítimas. José Dirceu é o cordeiro que serviu para a situação. Mas, ainda não parou. Os tentáculos do juiz Moro são insaciáveis. O objetivo é alcançar o Lula. 

E quando isso acontecer, o país enfrentará dias difíceis. Nossa "democracia racionada" correrá perigo e de transformar numa "democracia extinta". O voto de 54 milhões de pessoas serão jogados na latrina da história. E aí, para evocar Marx, teremos tragédia e farsa sendo encenadas. E muitos baterão palmas nesse dia - sem saber por quê.

quinta-feira, julho 30, 2015

Registro crônico VI - o Museu de Direitos Humanos

"Somos aquilo que lembramos... e aquilo que escolhemos esquecer" - Ivan Izquierdo, do documentário Utopia e Bárbarie, de Silvio Tendler
A entrada do Museu. Ao fundo, uma igreja e a imagem de Cristo cheio de cintilações simbólicas
No período da Guerra Fria, que vai do final da Segunda Grande Guerra até a derrocada da União Soviética, os direitos democráticos passaram por uma enorme crise na América Latina. Trabalhadores, estudantes, militantes dos mais variados matizes resistiram de forma heroica a essa ameaça materializada. Ditaduras se multiplicaram por todo continente, orquestradas pela Agência de Inteligência Americana (CIA) a fim de proteger os interesses do capital. O objetivo era romper com o avanço de forças progressistas, com as melhorias sociais e toda sorte de direitos que viessem acabar com os desníveis que existem no continente desde o processo de colonização. 

Por isso, é fácil de entender o porquê de tantos golpes perpetrados por militares. Se formos analisar a cronologia do continente, os golpes se sucederam numa espécie de efeito cascata: Guatemala e Paraguai (1954), Argentina (1962), Brasil (1964), Peru (1968), Uruguai e Chile (1973), Nicarágua (1979), Bolívia (1982). Em todos esses países, as ditaduras instaladas buscaram solapar os avanços sociais. Nesses locais, onde as fraturas da história ainda estão expostas, onde a colonização e imperialismo impediram que as desigualdades, que a divisão da terra, que as riquezas internas de cada país fossem repartidas, os nervos dos acúmulos negativos da história ainda estão abertos - e bem abertos. 

Em muitos desses países, após o início da redemocratização, foram montadas comissões que têm por finalidade colocar às claras esses anos de obscuridade política. Dezenas de milhares de pessoas morreram nesses países. Outras tantas foram torturadas. E muitos dos torturadores estão por aí, recebendo dinheiro do Estado. É o caso, por exemplo, do Brasil que conseguiu instalar a sua Comissão da Verdade somente em 2012. E mesmo tendo feito isso após tanto tempo, a sociedade ainda não entendeu a sua importância para o fortalecimento da própria identidade nacional, pois um país que não acerta contas com a sua história está fadado a repetir os mesmos desmandos, as mesmas injustiças do passado.

Minha esposa me pegou em um momento de introspecção
No último dia em que estive no Chile, 18/07, fui ao extraordinário Museu de Direitos Humanos (Museu de La Memoria y los Derechos Humanos), construído no primeiro mandato da administração de Michele Bachelett. Embora tenha ficado nele apenas 30 minutos (estava atrasado, pois o voo seria em pouco tempo), foi o suficiente para que eu me enchesse de emoção. O lugar é bastante amplo. Na entrada, escritos numa das paredes adjacentes ao prédio, estão os artigos da Declaração dos Direitos Humanos. No saguão de entrada, há a notícia fato de países em que os direitos humanos são violados e o que tem sido feito para investigar esses abusos. 

O prédio é constituído por três andares. Em cada andar se tem uma amostra de como as tiranias trazem violações e essas mesmas violações produzem uma sociedade em que a injustiça e o medo são agentes constantes, patológicos. Não visitei todos os andares. Fiquei apenas no primeiro. Lá eu pude vê como a Ditadura chilena foi terrível. Existem vários documentos - fotos, jornais, textos produzidos por crianças etc - que foram doados pelos próprios de familiares que ainda hoje choram os seus parentes sumidos. É possível colocar um fone e ouvir vários documentários que mostram imagens de época. As imagens retratam o Chile em setembro de 1973, o ano do golpe de Pinochet. Como os militares tomaram o poder e massacraram de forma impiedosa homens, mulheres e crianças; como o Palácio de la Moneda foi bombardeado - lá estava Salvador Allende, uma das mais representativas lideranças socialistas do continente. 

Numa sala contígua há um espaço reservado à memória de centenas de crianças que foram torturadas e mortas pelos militares. Vários desenhos retratam os sentimentos dessas crianças e como elas são marcadas de forma impiedosa. Mas, foi em um espaço desse mesmo andar que eu não pude conter as lágrimas. Há uma sala com velas simbólicas  - que nunca se apagam. E quando se entra nessa sala, olha-se direto para uma parede enorme com a milhares de fotos de pessoas que foram torturadas e mortas. Quando olhei aquela imagem, algo se contorceu dentro de mim. Não pude deixar de chorar. Ali estavam fisionomias diversas, que acreditavam em um mundo melhor. Seres anônimos. Não cheguei a conhecê-los nem eles a mim. Cada rosto expressava um grito. Um silêncio povoado por protestos. Um gesto de indignação. Um sonho. Um desejo. Um rugido de liberdade. Um brado inquietante por um mundo em que a liberdade não seja apenas uma palavra de dicionário ou um gesto esquecido, abandonado. Mas que se torne em credo, uma força capaz de mobilizar as pessoas para ações verdadeiramente solidárias. 

Pode se ver o bonito prédio ao fundo
Minha esposa se aproximou de mim e me abraçou. Uma torrente enorme inundou a minha alma. Lembrei as palavras de Cristo: "Bem-aventurados aqueles que têm fome e sede justiça, porque serão fartos"; "Bem-aventurados aqueles que choram, porque serão consolados"; "Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus". E pensei nas promessas de Cristo, alguém que morreu por causa da justiça; porque falou em igualdade e irmandade entre os homens. 

Penso que todo mundo deveria ter a oportunidade de visitar aquele museu. É um lugar fantástico. Se um dia voltar ao Chile, quero demorar mais tempo naquele espaço. Quero sentar no chão. Olhar, sentir, solidarizar-me com aqueles sofreram e morreram - e tantos que sofrem e morrem - por causa da justiça. O Chile é país que tem aprendido com a sua história. O simples fato do Governo Federal do país construir um lugar como aquele é um indício de um acerto inexpugnável com o seu passado.  

Quando se fala em direitos humanos, ainda há pessoas que abrem a boca contra essa ideia. Lutar pelos direitos humanos é lutar por um mundo em que ninguém seja punido por pensar diferente, por discordar das regras estabelecidas. Simplesmente, viver o processo de alteridade. E aí eu evoco a Cristo mais uma vez: "Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a lei e os profetas". 

sexta-feira, julho 24, 2015

Registro crônico V

Nos jardins de La Chascona
Hostis cordilheiras, 
céu duro, 
estrangeiros, esta é,
esta é a minha pátria,
aqui nasci e aqui vivem os meus sonhos
Pablo Neruda, in Navegações e Regressos


Como deixei claro na última postagem, tive a privilegiada oportunidade de visitar duas das casas em que viveu Pablo Neruda. A primeira delas fica na mítica cidade de Valparaíso, na costa chilena e se chama La Sebastiana. A residência fica no alto da empertigada cidade, que está assentada em seu trono de pedra, com o seu olhar repleto de cintilações crepusculares, contemplando o infinito mar. Em Valparaíso, como em Santiago, as casas foram transformadas em museus administrados pela Fundação Pablo Neruda. 

Na sexta-feira, dia 17 de julho, tive a chance de visitar a sua casa que fica em Santiago, chamada de La Chascona. Paga-se uma quantia módica de 3000 mil pesos chilenos, o equivalente a quinze reais e se pode visitar todos os cômodos da casa. O passeio dura em média uns trinta minutos. Todas as quinquilharias e artefatos que se ligam diretamente ao poeta ainda estão conservados na sala. A sala, os quartos, parte da biblioteca, a escadaria, o bar; os talheres, pratos, quadros, móveis, ainda estão conservados graças ao excelente trabalho que a Fundação realiza. 

La Chascona foi construída para esconder o caso de amor entre Pablo e Matilde Urrutia. Quando o poeta a conheceu ainda era casado com sua primeira mulher. Pablo e Matilde precisaram de bastante discrição. Buscaram encontrar um lugar afastado e que despertasse o mínimo de curiosidade. Escolheram para isso um terreno longe do centro, próximo onde hoje funcionam o zoológico de Santigo e o Cerro de São Cristovão, uma das vistas mais privilegiadas da cidade. Em La Chascona, Pablo erigiu um espaço que fugia das convencionalidades. Como era propenso a "pequenas extravagâncias e excentricidades", por causa de seu ar de colecionador, mandou trazer mesas de cafés franceses; quadros com aquarelas chinesas; prataria inglesa. A tampa da mesa do bar foi feita a partir de uma peça de navio. A forma dessa mesa busca repetir as ondas do mar, por quem nutria profunda e existencial paixão. Em La Chascona está a medalha que ganhou em 1971, ao receber o Prêmio Nobel de Literatura, dois anos antes de sua morte eivada por contradições.

Quando o Golpe Militar trouxe anos de escuridão para o Chile, em 1973, a casa foi depredada - claro, além das outras. Mudaram o curso de um rio que passa pelas proximidades para inundar a La Chascona. Queriam apagar a memória referente ao poeta. Pablo era um comunista militante. Sua presença no Chile traria problemas para o regime fascista de Pinochet. Graças à persistência e perseverança destemida de Matilde, conseguiu-se preservar a memória do poeta.

Na última quarta-feira, fui ver Neruda - Fugitivo, no Espaço Itaú Cinema, aqui em Brasília. O filme é bonito por mostrar a relação telúrica do poeta com a sua terra. Foi a partir da fuga e de sua viagem pelos Andes, que ele escreveu o seu famoso Canto Geral (que já comprei pela Estante). O livro é um verdadeiro mergulho poético, uma exaltação ao continente americano e sua latinidade. Nesse livro, Neruda descortina a sua visão para as questões sociais. Sua linguagem poética se tonifica, ganha profundidade. Deixa os hermetismos da juventude e busca como um rio cristalino e profundo o mar da justiça e da equidade.  

E após a viagem que fiz, após conhecer um pouco da cultura e o simpático povo chileno, penso que não somente Neruda, mas Salvador Allende e Victor Jara, sejam vozes de uma pujante liberdade, de uma força indômita como o silêncio que se espraia da Cordilheira; da densidade bruta dos minerais que fermentam riquezas e exaltam a orgânica pureza e majestade da natureza. Neruda representa a beleza profunda do povo chileno - sua solidadriedade, sua alegria, seu humor fino; seu desejo pela dignidade, seu mistério intransigente, como as brumas teimosas que escondem a cabeça branca das montanhas, tornando-as apaixonantes.

Lendo algumas poesias do seu livro Navegações e Regressos, encontrei um poema que me deixou boquiaberto pela relação que estabelece com esse espaço entre o silêncio e a palavra; e, após a tempestade, um outro silêncio, pois, em Neruda, passamos a entender que os silêncios têm natureza, gosto, cores, personalidades e uma mística que transfigura o momento em que vivemos e o lança em direção às infinitas significações do existir. 

Tempestade com silêncio

Troveja sobre os pinheiros
A nuvem espessa debulhou suas uvas,
caiu a água de todo o céu vago,
o vento dispersou sua transparência
encheram-se as árvores de anéis,
de colares, de lágrimas errantes.

Gota a gota
a chuva se reúne
outra vez na terra.

Um só trovão voa
sobre o mar e os pinheiros,
um movimento surdo:
um trovão opaco, escuro,
são os móveis do céu
arrastados.

De nuvem em nuvem caem 
os pianos da altura,
os armários azuis,
as cadeiras e as camas cristalinas.

Tudo o vento arrasta.
Canta e conta a chuva.

As letras de água caem,
rompendo as vogais
contra os tetos. Tudo
foi crônica perdida,
sonata dispersa gota a gota:
o coração da água e sua escritura.

Terminou a tormenta.
Mas o silêncio é outro. 

terça-feira, julho 21, 2015

Registro Crônico IV

No quintal da casa de Pablo Neruda
Valparaíso, en cambio, abre sus puertas al infinito mar, a los gritos de las calles, a los ojos de los ninõs. 
Pablo Neruda

Um dos momentos mais especiais da viagem que realizei ao Chile foi a chance de visitar duas importantes cidades - Viña del Mar, a cidade jardim, e a velha e mítica Valparaíso, lugar que como diz Neruda na ode que escreveu para a cidade é um "puerto loco/ qué cabeza/ con cerros/ desgreñada". Viña del Mar é a moça jovem, formosa, povoada por prédios modernos e recantos para os ricos; lugar de flores, de praias convidativas durante o verão. Valparaíso, por sua vez, é uma senhora "louca", com suas encostas vestidas por casas; suas ladeiras íngremes escondem segredos e proporcionam uma visão indelével para "o infinito mar". 

A visita foi bastante prazerosa - e repleta de ensinamentos. A começar pelo divertido e competente guia: um senhor chileno que havia lido praticamente toda a obra em prosa de Machado de Assis; conhecia as literaturas inglesa, estadunidense e francesa; que conhecia o cinema produzido nas décadas de 30, 40 e 50 e citava com uma desenvoltura impressionável os nomes dos principais atores e atrizes que brilharam àquela época. Havia viajado por boa parte dos países da América do Sul e vivera quatro anos no Rio de Janeiro. Sabia falar francês e inglês, além de arranhar o português. Conversamos bastante. Seu nome era Alejandro. 

Conseguia narrar a história dos prédios públicos, dos espaços importantes e simbólicos, ligando-os à história social, militar e política do Chile. Acredito que o passeio tenha se tornado, em parte, repleto de encantos por sua presença. 

O Pacífico em Viña del Mar
Em Viña del Mar visitamos o famoso relógio de flores, que fica a poucos minutos da entrada da cidade. Fomos ao cassino, à praia e foi de lá que avistei o imenso Pacífico. Suas águas geladas a esconder mistérios. Os pássaros a voarem, os pelicanos com seus papos enfunados a delimitarem as superfícies pedregosas. Fiquei olhando a imensidão de um verde que oscilava para o escuro. Sua água gelada, influenciada pelas correntes glaciais vindas do extremo Sul do Planeta. 

Como afirmei acima, Viña del Mar é uma moça de corpo jovem a exalar as fragrâncias de mocidade moderna. Já Valparaíso, a cidade ao lado, é mais velha. Ao se chegar a Valparaíso é possível enxergar de longe as casas humildes e como dizia Neruda: "Valparaíso... en los cerros se derrama la pobretería como una escada". Sim! Debaixo é possível enxergar construções mais suburbanas. Valparaíso é uma cidade que foi se empoleirando pelas encostas para enxergar a distância do imenso mar. 

Ela é a porta de entrada para a vida econômica do Chile. Seu porto possui uma importância fundamental para o país. No passado, foi um dos locais por onde mais passavam riquezas no hemisfério sul. Os navios que vinham do Oriente ou do oeste americano, tinham que passar por lá para chegar ao Atlântico, passando pelo Estreito de Magalhães. É possível que o biólogo inglês Charles Darwin tenha passado por lá. Com a construção do Canal do Panamá, na primeira metade do século XX, sua importância foi empalidecendo. Todavia, ainda é o local por onde entram as mercadorias que abastecem todo Chile. Além desse aspecto econômico, Valparaíso é uma das primeiras cidades a serem fundadas no Chile. Estima-se que ela tenha surgido na década de 50 do século XVI. Suas lojas podem ser notadas próximas aos prédios antigos. Outra curiosidade sobre a cidade é o fato de o Legislativo do Chile funcionar lá, desde a Ditadura de Pinochet. O sádico ditador buscou descentralizar o poder, construindo a sede da casa que faz as leis no litoral do país. Por ser uma cidade muito importante para o país, a presença de militares é bastante satisfatória. É comum encontrar estátuas de militares pelas praças.
O porto de Valparaíso e suas casas esparramadas pelos cerros

Em Valparaíso tive a oportunidade de visitar uma das casas de Pablo Neruda. O poeta tinha cinco casas no território chileno. Quatro foram transformadas em museus e uma foi doada ao Partido Comunista do Chile. Fica em um local privilegiado. A casa tem uma vista privilegiada para o mar, para o porto e o restante da cidade que se derrama pelos cerros. Sobre isso, vou escrever depois.

Enquanto voltava para Santiago, que está situada a pouco mais de cento e dez quilômetros de Valparaíso, atravessava os vales frios e pedregosos e tinha a minha visão mesclada pela névoa que escondia a cabeça gelada da Cordilheira e  avistava as vinícolas, pensava nos elementos míticos que tornam Valparaíso uma cidade repleta de encantos e mistérios. Pensei como é importante conhecer e refletir sobre o feitiço que as novidades que se abrem para cada um nós no mundo. E aí pensei em Neruda e o tecido fino e transparente de sua poesia. E entendi aquilo que ele afirma sobre Valparaíso, dizendo que ela tem 'uma estrela' e que essa estrela 'possui um pulso magnético que nos atrai'. 

segunda-feira, julho 20, 2015

Registro Crônico III

Santiago e seu inseparável cobertor de gases ao fundo
Na terça-feira, dia 14 de julho, por volta de meia noite e meia, cheguei à cidade de Santiago. Enquanto o motorista, um senhor de pouco mais de sessenta anos, conduzia-me para o lugar onde eu ficaria, tentei recolher de forma superficial, no meio do tecido escuro da noite, as primeiras impressões da cidade. Enxerguei alguns prédios com feições clássicas na distância. Tentei dialogar com o motorista, fazendo uma exaltação à cidade. Recolhi da fala simples e amistosa uma lição.

- Não existem cidades feias. Existem cidades distintas! - externou peremptório. 

Fiquei pensando sobre aquela fala. A maior parte dos nossos juízos tentam se adequar àquilo que estabelecemos como certo, belo ou coerente. Temos uma grande dificuldade em aceitar o novo, o diferente e suas possibilidades convidativas. O problema não está necessariamente na coisa, mas naquele que julga afoita ou relaxadamente a coisa. Perguntou ainda de onde eu era. Disse que era do Brasil, ao que ele mencionou personagens e lugares - São Paulo, Rio de Janeiro, Romário etc.

A "distinção" de Santiago se define pela sua história. Ela está situada em um vale. Pablo Neruda, um dos maiores poetas do século XX - chileno - em um dos seus livros afirma construindo uma imagem dramaticamente bela: "Santiago es una ciudad prisionera, cercada por sus muros de nieve". De fato, Santiago geograficamente está presa, cercada por muros altos, a Cordilheira dos Andes, que ora a admira, ora a arrosta com seu hálito gelado. Ainda seguindo essa imagem de Neruda, podemos dizer que ela está sitiada por um exército de pedras, que a espreita vinte quatro horas por dia. É justamente esse fenômeno que torna Santiago uma das cidades mais cinzentas das Américas. Os gases produzidos pelas fábricas e pelos automóveis ficam retidos, criam uma espécie de cobertor cinza que cobre a cidade com uma gaze de monóxido de carbono. 

Em frente ao Palacio de la Moneda
Quando deixei Buenos Aires, fiquei com uma impressão singular. Mas, ao chegar à capital chilena, a afirmação do motorista me salvou dos juízos apressados. Buenos Aires é uma cidade de avenidas amplas; de prédios com aspectos modernos e europeizados. Santiago, pelo contrário, mostrou-se com um aspecto mais antigo. Sua arquitetura fornida por belos prédios, por igrejas suntuosas; por avenidas apinhadas por carros e pessoas nas calçadas estreitas. Nos momentos mais movimentados do dia, as rodovias ficam paradas. O trânsito é intenso e torna Santiago uma cidade complicada para se locomover de carro. 

O que funciona muito bem é o seu metropolitano. As primeiras estações foram construídas nos anos 70. E, de lá para cá, eles não deixaram de ampliar esse eficiente serviço. Existem pelos menos cinco linhas de metrô. Olhando o mapa, fica-se com a ideia de que estamos diante de um cipoal de cores (cada linha possui uma cor - vermelha, azul, verde, roxa etc). Nas estações, os trens passam de dois em dois minutos. É possível se locomover por toda a cidade andando de metrô. 

A cidade é repleta de museus (escreverei sobre eles em outro momento) e praças. Uma das mais famosas é a Plaza das Armas. É um lugar amplo, povoado por artistas de rua e construções belas. Próximo dali fica o Palacio de la Moneda, sede do governo chileno. É um lugar histórico. Foi construído primeiramente para ser a casa da moeda do Chile. Por isso, não tem o nome "de palácio do governo". Durante o golpe militar, ocorrido em 1973, foi bombardeado pelos militares, a mando de Augusto Pinochet, um dos algozes mais terríveis da ditadura daquela país. A intenção dos militares golpistas era fazer com que o governo socialista e popular de Salvador Allende viesse abaixo. Como aconteceu no restante dos países da América Latina, que sofreram golpes, esses arranjos totalitários foram orquestrados pelo governo americano. 

Os Andes, simplesmente
Um aspecto positivo da cidade é a educação do povo. São prestativos e simpáticos. Não se olvidam em ajudar, em oferecer préstimos quando solicitados. É possível enxergar o quão diferentes são fisicamente dos argentinos, revelando o quanto a presença indígena foi importante para a formação do país. Não encontrei tantos leitores quanto em Buenos Aires, embora no metrô tenha visto pessoas lendo. Há ainda em algumas estações, bibliotecas públicas. Quem quiser é só se cadastrar e pegar os livros. O preço dos livros segue a mesma tendência argentina. Namorei vários. Trouxe apenas dois - Confieso que he vivido e Odas Elementales, ambos de Pablo Neruda. 

Fui a três ou quatro livrarias chilenas. E sempre que visitava, como se deu também na Argentina, tentava perceber a presença de escritores brasileiros. Na Argentina, não tive muito sucesso. Vi apenas dois - Jorge Amado e Paulo Coelho. No Chile, o acintoso Paulo Coelho ainda se fazia presente, todavia, a coisa ganhou contornos mais favoráveis quando enxerguei Chico Buarque (O irmão alemão), Jorge Amado (Tenda dos milagres) e Erico Veríssimo (O tempo e o vento). 

Uma experiência que me deixou bastante satisfeito foi a possibilidade visitar a Cordilheira. Não me recordo a última vez que vi algo tão desconcertante e belo como a imagem de uma montanha gelada. Apesar de Santiago está cercado por montanhas, a cinza brumosa cria o efeito de uma cortina e acaba privando a possibilidade de se avistar o cume branco. O caminho até o cimo da montanha é amedrontador. É serpenteante, coleante pelo corpo da montanha; a subida vai se construindo pouco a pouco. As curvas do caminho são desafiadoras. Ao olhar para os abismos, ficamos com uma noção de imprevisibilidade. Mas à medida que subia, lembrava de uma afirmação de Nietzsche. O filósofo alemão disse certa vez, que há sujeitos que têm a oportunidade de subir o monte e contemplar o vale profundo com toda a sua constelação de belezas, mas desistem em saber que lá, também, há um vulcão que pode entrar em atividade. Não havia vulcão lá no alto, mas havia um perigo em cada curva como um aviso medonho que se desenhava em cada cotovelo da estrada. Apesar do medo, à medida que se sobe, a beleza se irradia como a luminosidade embasbacante. 

No próximo post, vou escrever sobre duas importantes cidades chilenas - Viña del Mar e Valparaiso. 

domingo, julho 19, 2015

Leonardo Padura no Roda Viva

Entrevista com um dos escritores latino-americanos mais expressivos e famosos da atualidade - Leonardo Padura. Ele escreveu uma infinidade de livros. É um mestre do romance policial. Escreveu ainda um dos livros mais sensacionais o qual eu já tive a oportunidade de ler - O homem que amava cachorros, romance este que narra a fuga de Trotski da União Soviética, até a sua morte a mando de Stalin, na cidade do México. Um livro imprescindível a todo amante de uma boa narrativa. Nesta entrevista, Padura fala de seus romances, sobre O homem que amava cachorros e sobre Cuba. O sujeito é muito sensato e coerente. Ponto alto da entrevista é a sua resposta à jornalista da Revista Veja, após esta ter feito uma pergunta indigente, típica do jornalismo mambembe, subserviente, pelego e que está a serviço dos interesses das elites caducas deste país. 


quinta-feira, julho 16, 2015

Registro Crônico II

Livraria El Ateneo
Os argentinos à semelhança de muitos brasileiros nutrem uma relação prazerosa com a leitura. Estando em terras portenhas não deixei de perceber a relação que eles têm com os livros. Em praças públicas, em transportes coletivos, os argentinos lêem. Pude perceber uma quantidade satisfatória de livrarias. Não tive tempo, nos dois dias em que fiquei na cidade, de fazer uma investigação mais satisfatória nesse sentido. Havia outras ocupações. Mas, sempre que podia eu tentava visualizar uma loja de livros. Na verdade, ficava à cata delas. 

Os argentinos são respeitados por serem um povo culto. O número de intelectuais e escritores que colocaram o nome entre os mestres da literatura universal é bastante expressivo: Borges, Cortázar, Sabato, Bioy Casares, Juan José Saer, Manuel Puig; e, outros que ainda estão vivos como, por exemplo, Ricardo Piglia e César Aira. Com uma constelação tão grandiosa de nomes respeitáveis, é importante dizer que antes de ser escritor, era-se um leitor. Onde há bons leitores, existe a possibilidade de bons escritores. 

Caminhando pela Avenida Mayo, que liga o Centro à Casa Rosada, pude perceber alguns sebos. Visitei apenas um deles. Eu e minha esposa estávamos apressaados. Pude perceber sua impaciência. Esse estado de espírito acabou por lançar por terra minha relação promíscua com os livros da loja. Perscrutei apenas a sessão de literatura latino-americana, enquanto estava por lá. Acabei por comprar um exemplar – Anatomía Humana, de Carlos Chernov. 

Se os argentinos estão bem de livrarias, não estão tão bem com os preços. Assustei-me com os valores. Ás vezes, penso que os brasileiros depreciam o seu país em excesso. Se há uma crise ela ainda não é colapsante como querem nos fazer crer. Ainda estamos em uma situação confortável. Um real, hoje, é equivalente a três pesos. É uma relação 1/0,35. Ou seja, se eu tenho um real, compro apenas 35 centavos de peso. O dinheiro argentino está desvalorizado e a inflação tem solapado o poder de compra. Os livros estão numa esteira terrível. Alguns pockets (Leonardo Padura, Piglia, Borges etc) que olhei no Aeroporto de Ezeiza custavam em média 160 pesos – ou mais de cinqüenta reais. Observe: estou a falar de edições de bolso. 

O choque veio quando fui à Livraria El Ateneo, uma das mais famosas e visitadas da Argentina. Não somente por causa de seu tamanho, mas também pelo lugar que ocupa. O prédio onde está a livraria foi um teatro no passado. Aquelas galerias indicando o lugar do público permaneceram. Só que agora as galerias são povoadas por livros. Um verdadeiro deleite para os olhos. Encontrei lá algumas preciosidades. Quis comprar. Fui detido pela monta absurda. Explico: encontrei alguns livros. Peguei um Sabato (como não!), um livro de Mario Vargas Llosa, um estudo sobre a obra de Ghershwin e uma biografia de Mozart. Fui ao caixa. Pedi para efetuarem a soma. O estapafúrdio valor apareceu como uma mureta de contenção – quase novecentos pesos, ou seja, quase trezentos reais por quatro livros, que no Brasil custariam no máximo uns cento e vinte reais. Senti-me besta! Pensei imediatamente: “Se os argentinos lêem tanto assim com a prática de preços absurdos, eles, verdadeiramente, são heróis; amantes incansáveis do saber”. 

Ao final, abortei a intenção. Trouxe apenas dois livros – o Sabato (que deve ser uma sensação lê-lo em sua própria língua) e o estudo sobre a música de Gershwin. Tudo isso pela bagatela de Ar$ 450,00 (quatrocentos e cinqüenta pesos), cerca de R$ 150,00 – claro, sem o IOF da transação bancária. Alguém poderia inquirir: “Mas o livros não seriam grossos?, ao que responda: “Não!” Eram edições de pouco mais de duzentas páginas.

Algumas coisas não possuem respostas imediatas: nós temos livros mais baratos e não lemos tanto; eles têm livros mais caros e leem mais que a gente.

Aeroporto de Ezeiza, Buenos Aires – 13 de julho de 2015.

quarta-feira, julho 15, 2015

Registro Crônico I

Faculdade de Direito, Bairro da Recoleta
Fiz a minha primeira viagem internacional. Não foi para tão longe – Laos, Sibéria, Austrália, Alaska... Minha esposa e eu rumamos para terras argentinas e chilenas. Ela foi à frente. Saiu daqui no dia cinco; eu, dia dez, pela madrugada. Fiquei no aeroporto Internacional de Brasília até por volta de duas e vinte da madrugada. Viajei pela Aerolíneas Argentinas. A primeira impressão que ficou do avião da companhia foi curiosa. O avião, um modelo da Embraer, fez-me pensar em multilateralidade, já que os dois países fazem parte do Mercosul e a Embraer é uma empresa brasileira. 

O voo foi tranquilo. Dormi a maior parte do tempo. Cheguei ao Aeroporto de Ezeiza por volta das cinco e meia da manhã. Passei pela imigração (Polícia Federal Argentina). Peguei as malas. Fui ao Banco de La Nacion comprar os famosos pesos argentinos e me aboletei para o hotel em um ônibus bastante confortável. A cabeça parecia ter um buraco enorme por causa da noite mal dormida. No dia anterior eu acordara cinco e meia da manhã; trabalhara o dia todo. Não descasara um só instante. Havia uma confusão interna por causa da novidade. Um sorvedouro nervoso a engolir e dissipar minha capacidade de concentração. 

Enquanto organizava as primeiras imagens das terras argentinas, olhando pelos vidros embaçados do ônibus, eu parecia ter um pedaço enorme de chumbo sobre as minhas pálpebras. A cabeça estava um desvario. Todavia, a escuridão às sete horas de uma fria manhã, deixou-me com uma visão positiva de Buenos Aires. Árvores desnudas e retorcidas pareciam dar "um boas vindas" espectral, com feições fantasmagóricas. O trânsito não possui muita relação com o trânsito de Brasília. Na Capital brasileira, assumi uma visão bastante crítica do modo de condução do brasiliense, pois esta é uma extensão do individualismo pequeno-burguês da cidade. O processo de desumanização chegou às ruas das capitais brasileiras. Em Brasília, lugar conhecido pela frieza das pessoas, o privatismo da vida do sujeito médio ganha dimensões eloquentes quando se sai aos espaços públicos. Estes espaços são encurtados para que prevaleça a moral individualista do sujeito, que entende que o espaço público existe para sua satisfação pessoal. 

Avenida Mayo, próximo à Casa Rosada
Pois ao olhar para as ruas ocupadas por carros velozes, percebi a existência de uma cultura muito diferente daquela do brasileiro. Aqui parece que buzinar, parar fora da faixa (ou ocupando duas ao mesmo tempo); tomar a frente; não dar a preferência parece ser parte valores argentinos. Com hábitos tão singulares, o argentino faz da rua um espaço para aventuras e protestos. É comum se ver alguém colocando o braço para fora, após um buzinaço nervoso, em sinal de reclamação. Mesmo com essa característica bastante peculiar, o trânsito flui de forma significativa. Sua infraestrutura de trânsito e o sistema de transporte está bem à frente daquele encontrado nas cidades brasileiras.

Outro aspecto bastante curioso está relacionado com a receptividade do povo argentino. Muitos brasileiros foram acostumados a julgar a realidade a partir dos signos midiáticos. E se existe algo que a mídia hegemônica construiu foi ideia de que os argentinos são antipáticos, indivíduos faltos de generosidade e bom humor. Trabalha-se uma perspectiva tendenciosa de uma rivalidade futebolística, que acaba por ser trazida para o campo das relações do mundo fático. 

Quando pedi informações, percebi uma boa vontade para ajudar, para indicar as direções requisitadas. Enquanto caminhava pela rua, um sujeito me parou e perguntou se eu era colombiano. Disse que era brasileiro e aí ele externou exclamativamente: “Maravilha!!”. Empolgou-se em elogios ao Brasil. Falou das grandes cidades brasileiras. Apenas assenti com a cabeça e ri de forma tímida. Ofereceu-se para tirar fotografias – e fê-lo. 

Casa Rosada, palácio presidencial argentino
A simpática e charmosa Buenos Aires é uma cidade repleta de parques. Eles estão por toda parte. Não estou acostumado com essa visão. Os parques e praças são espaços para encontros da coletividade. Para conversas; prática esportiva; convívio social. A existência desses espaços cria a possibilidade de uma cidade mais humana. Brasília é uma cidade em que não se vislumbra tais espaços – os que existem são usados por determinada parcela da população. Um desses exemplos é o Parque da Cidade, que fica distante das cidades satélites e, portanto, mais afastado das pessoas mais humildes da Capital Federal. É usado “privativamente” pelos sujeitos “engomados” da cidade.

Algo que me impressionou na cidade foi a quantidade de fumantes. Por aqui, em sentido hiperbólico até os cachorros fumam. Claro, trata-se de um gracejo. Mas, é natural ver adolescentes, jovens e pessoas mais velhas soltando baforadas despudoradas pelas ruas. Quando se está dentro de um espaço fechado e se sai à rua, sente-se o cheiro enauseante da nicotina. Tal costume não é tão comum em Brasília ou em algumas cidades brasileiras. Existe, pelo menos nesse sentido, uma política de desincentivo de pretensão pelo tabagismo. 

Os quatro dias em que fiquei em Buenos Aires foram entusiasmantes. Saí com uma percepção animada, em sentido apreciativo, dos argentinos e da bela cidade. Se tiver oportunidade, voltarei sem titubeios. 

Buenos Aires/Santiago

quarta-feira, julho 01, 2015

"Ressurreição", de Machado de Assis

Comecei um projeto que há muito eu pretendia realizar: ler toda a obra em prosa de Machado de Assis, com destaque para os romances. Li já praticamente toda ela de forma aleatória em outros tempos - Dom Casmurro, Quincas Borba, Esaú e Jacó, Memórias Póstumas, Papéis Avulsos, A mão e a luva, Helena. Revisitar alguns desses livros gera uma sensação de ansiedade e, ao mesmo tempo, de curiosidade. A curiosidade é estimulada, pois ainda não li Iaiá Garcia, Memorial de Aires e Casa Velha

Na semana que passou, li Ressurreição. Confesso brandamente que as minhas defesas já estão minadas com relação a alguns livros da literatura brasileira do século XIX. Em outros tempos li com maior entusiasmo José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, Bernardo Guimarães etc. Atualmente, lê livros com aquele artificialismo de vivências burguesas de imitação da nobreza europeia é bastante cansativo. Há algumas semanas assisti ao excelente Barry Lindon, de Stanley Kubrick. Fiquei a observar como se davam as relações nas cortes europeias - o parasitismo social, a necessidade de bajulações, os títulos que exalavam ostentação despudorada, a hipocrisia dos barões, condes, viscondes e etc. Ao ler Ressurreição veio todo aquele quadro genialmente retratado por Kubrick, ficou a certeza de que a obra escrita por Machado de Assis era uma história tropical, mas com todo o requinte da burguês das cortes europeias. 

Ressurreição é o primeiro romance de Machado de Assis, de 1872. Ao lê-lo, restou-me a consequente visão ácida das oligarquias brasileiras. Em alguns momentos senti o desejo de largar a leitura. Mas, não sou de fazer isso. Se inicio um livro, por mais que ele tenha uma história sofrível, vou até o fim. Ressurreição não é uma obra imponente. Suas características estão postas em outros romances escritos no século XIX aqui no Brasil. Se Machado de Assis tivesse escrito unicamente esta obra, hoje, ele seria um escritor "menor" e insignificante, colocado na periferia da história da literatura. 

Mas, enquanto lemos a obra, percebemos algumas características que passaram a ser marcas registradas e indeléveis do autor de Memórias Póstumas: a ironia fina, as construções sintáticas simples e eloquentes; o diálogo do narrador com o leitor; a citação de nomes importantes das artes (música, literatura) ou da mitologia. Machado já desfere golpes na sociedade com suas conduções forçadas e sua moral fingida e hipócrita. E essa é uma característica marcante no romance Ressurreição. O final do livro é machadiano por excelência. É como um filme de Woody Allen: o destino sempre prega uma peça descontínua nas personagens, o que nos conduz a um final bastante imprevisível.

Quando escreveu Ressurreição, Machado de Assis tinha pouco mais de 31 anos de idade. Não era o gigante que, nove anos mais tarde, soltaria para o mundo uma das obras mais belas e emblemáticas da literatura brasileira - Memórias Póstumas de Brás Cubas. Parece-me que Ressurreição seja um espécie de treino que antecede uma grande realização. 

Sendo assim, pulemos para o próximo exercício, que é A mão e a luva.

quarta-feira, junho 10, 2015

A obra de Lima Barreto ainda fala - Clara dos Anjos

Lima Barreto é um dos escritores brasileiros a quem tenho mais respeito. Essa visão especial sobre o escritor carioca nasce de sua biografia e de sua literatura, que foi uma expressão de sua vida conturbada  - e que dar uma história com feições bastante trágicas. Lima foi vítima do preconceito da aristocracia coberta de pó-de-arroz, vestida de fraque e com cartola à francesa num calor de quase quarenta graus do Rio de Janeiro, para demonstrar o quanto era diferente dos sujeitos humildes dos subúrbios da República Velha e se assemelhava "aos povos civilizados" - no caso, os europeus. 

O escritor nunca conseguiu o devido reconhecimento em vida. Buscou mais de uma vez ingressar na Academia Brasileira de Letras, tendo sempre o silêncio como resposta peremptória. Qual o seu pecado? Ser mulato, falar das cenas do cotidiano, ser morador de subúrbio, denunciar o parasitismo e o artificialismo de uma elite esdrúxula que militava contra o próprio país - como ainda continua a fazer nos dias de hoje. 

Lima escreveu poucos livros. Sua existência foi povoada por rupturas dolorosas; por intervalos entre a produtividade e o vício amalgamado com tendências à loucura, inclinação que vinha de família. Escreveu pelo menos três ou quatro livros que fazem parte do espectro da grande literatura que revela, que tornam os nossos dilemas mais claros, transparentes; livros que exatificam as nossas feiuras, nossos desvarios, nossos voos de mosquito. Podem ser citados O triste fim de Policarpo Quaresma (sua maior obra), Recordações do Escrivão Isaías Caminha, Os Bruzundangas e Clara dos Anjos. Este último eu tive a oportunidade de ler semana passada. Além dos romances, vale mencionar os excelentes contos escritos pelo autor. 

Clara dos Anjos é uma obra póstuma. Foi lançado apenas em 1948, vinte e seis anos após a morte do autor. Segundo informações, Lima começou a escrevê-lo por volta de 1904 e após a sua morte, em 1922, ainda fica a impressão de que a obra possui traços de inacabamento. Clara dos Anjos, uma espécie de alter ego do autor, é uma metáfora da vida de Lima.  

A obra possui traços bem aproximados do naturalismo do século XIX. O que a torna diferente ao meu modo de ver é o despojamento da linguagem. Lima parece "brincar" com termos do falar popular, criando expressões, adaptando termos ou, simplesmente, manifestando por meio de frases sentenças do francês, do inglês ou do latim. Ele desenha com bastante vivacidade o modo de ser da periferia. As personagens vivem de forma humilde; já, outros, buscam a malandragem para locupletarem ganhos de forma fácil. É o caso de Cassi Jones, personagem finório, que trará enormes desventuras à personagem principal, deixando-a exposta aos preconceitos e deferências explícitas da sociedade.

Clara é uma mulata. Possui bons modos. É sonhadora como é pintado em traço comum pelos escritores do século XIX - a mulher sempre tida como ser frágil e alvo das intenções dos homens.  Mas Lima avança no que tange a essa visão. No seu tempo, havia um papel social definido para a mulher. Cabia a ela, quando moça, preparar-se para o casamento, alimentando essa perspectiva como criatura virtuosa que faria todos os caprichos do marido; que teria as melhores intenções, os pensamentos e as expressões mais puras. Era com esse ideal que a mulher vivia a sonhar. Se ela se inclinasse para algo que não dissesse respeito àquilo que se esperava dela, ela pagaria com a culpa, com o opróbrio e com a desaprovação da sociedade.  Em Lima a culpa deixa de ser da mulher e é transferida para a própria sociedade. Quando a sociedade atua de forma preconceituosa, ela simplesmente revela sua hipocrisia, seu racismo, seu moralismo de fachada. É nesse aspecto que a denúncia feita pelo escritor é tão mordente. Essa crítica ainda permanece viva. O mito do não preconceito, da aceitação incondicional do outro, do diferente, é outra mentira inventada para maquear o debate em torno do preconceito em nosso país. E nesse aspecto que a literatura de Lima Barreto permanece tão viva e falando tanto ainda de nossas doenças. 

Por esses dias começarei a leitura de Recordações do Escrivão Isaías Caminha

sexta-feira, junho 05, 2015

Silas Malafaia e as certezas de uma cor só

"Todo homem irrefletido acha que somente a vontade é atuante; que querer é algo simples, puramente dado, não deduzível, em si mesmo inteligível. Está convencido de que quando faz algo, quando desfecha um golpe, por exemplo, é ele que golpeia, e que golpeou porque quis fazê-lo". 

Nietzsche, in A Gaia Ciência, Aforismo 127

Como deixei transparecer em outras postagens incipientes, já engrossei os filões do evangelicalismo. Já fui ao púlpito, lugar da prédica, e enchi os pulmões de ar a fim de publicizar as minhas certezas, tidas como honestas e inolvidáveis por todos os crentes. Dei aula na escola dominical, lugar de formação, de consolidação das premissas absolutas, que não podem ser contraditadas, posto que a verdade não é uma categoria relativa, capaz de ser posta à prova no mundo da religião.

E acabei aprendendo uma coisa: por mais que se tenha uma visão flexível em torno de determinados temas; por mais que se busque uma relação "frouxa" e de desobrigação com os pressupostos do absoluto, uma vez que você o abrace, essas convicções estreitarão a capacidade de entender a complexidade da totalidade que move o universo. O crente não sofre crises filosóficas, pois a verdade não é um problema para ele. Em seu interior mora a certeza, a fé, que é a capacidade de se acreditar em algo que não se ver, mesmo que não se tenha provas acerca disso. Assentado nessa convicção que é confirmada apenas pela sua experiência; pelos fiapos frágeis da experimentação que emanam dos sentidos, o crente contradiz tudo aquilo que não caiba ou que não possua as tonalidades pictóricas de sua linguagem. Para tornar o imaterial, o intangível em algo claro ou que se estribe na sedimentação de algo possível ou visualizável, cria-se o dogma. O dogma é a tentativa de tornar o imaterial, a ausência, em algo factível, que estrutura o absurdo. 

Pensemos a seguinte situação hipotética, para entendermos como o mundo do religioso é sedimentado. Imaginemos que em um determinado dia, uma força impensável, contrariando as leis naturais surja para algumas pessoas e segrede: "Essa é a minha luz, a minha glória azulácea. De hoje em diante, vestirás o azul. E todo aquele que não vestir azul me negará. E todo aquele me negar estará do lado do mal e não terás relação com ele". Ao que os seres privilegiados e estupefatos pela visão, poderiam indagar: "E o que faremos a partir de agora?" A criatura sobrenatural diria em voz cavernosa do meio da fumaça: "Vai e prega que pelo azul se viverá e qualquer outra cor não será tolerada". 

Claro, criei uma ficção absurda para ilustrar o quanto as religiões são estreitas em suas certezas dicotômicas. Para o religioso, o mundo está dividido entre o mundo dele ( o caminho certo, da vida, reto) e o caminho dos outros (o caminho da perdição, do pecado). Assim como na historieta que criei o  azul seria o absoluto e tudo aquilo que não tivesse essa cor (o vermelho, o amarelo, o branco, o roxo, o marrom, o preto) seria visto como a anti-cor, da mesma forma acontece com o mundo encerrado nos preconceitos da religião. 

O direito a ter uma religião é sustentado pela Constituição. Isso é inegável. Todos os sujeitos têm o direito a professar uma fé, desde que esta não ultrapasse os limites do bom senso e seja posta como aquela está acima de todas as demais - o que quase sempre acontece em nosso país. Outra coisa é a sensibilidade oriunda de uma espiritualidade salutar. Isso independe da religião. Para ser espiritual, uma prática saudável que pode ser cultivada por todo ser humano, não é necessário ser religioso. Ser espiritual é ser capaz de notar a beleza posta nas pequenas coisas. Ser espiritual é enxergar no ser humano um outro como a si mesmo. Acredito que verdadeiramente esteja aí o sentido do religare (religião), ideia que nos "conecta" ao numinoso,  ao halo misterioso que envolve todas as coisas. 

Ora, escrevo essas palavras por causa da propaganda de O Boticário que suscitou tanto ódio esta semana nos religiosos empedernidos de plantão, defensores de que "o azul" é a única cor que existe no mundo. E que qualquer outra tentativa de colorir a realidade com outra cor seja nocivo e pecaminoso. Para Silas Malafaia, um bravateiro de plantão, sujeito que "arrota" as suas convicções dubitáveis e cegas, obrigando-nos a sentir o mal-cheiro do jorro de suas ideias conservadoras, só existe uma forma de se relacionar no mundo. Segundo ele, a família é milenar. Talvez ele precisasse ler uma pouco de sociologia ou antropologia para perceber que a ideia de família é construída socialmente. Que há tribos na África, na Oceania ou mesmo em meio aos índios brasileiros, que a ideia de "papai" e "mamãe" (uma concepção burguesa) é subvertida. Mas, quando ele diz que "a família é milenar", sei, está apontando para a bíblia, pois lá, segundo ele, estão os verdadeiros modelos a serem seguidos. Ou seja, esquece ele que a bíblia foi escrita em um contexto social e histórico em que determinada cultura, a dos judeus, possuía as suas especificidades. Com isso, o caricato polemista (não somente ele) quando leva em conta o modelo preconizado pelos judeus, acaba por absolutizar o modus operandis de uma cultura em detrimento de outras. E, assim, confirma-se a nossa tese. 

A fossilização da história é o grande problema do religioso. Ele olha para determinados aspectos. Perscruta, avalia, tira conclusões e afirma, relegando a multiplicidade de forma do mundo: "Tudo agora será roxo, cinza ou azul", como quer nos fazer crer o senhor Silas Mala-faia e sua trupe acostumada a enxergar o mundo de forma monocromática. Triste! 

Um comentário inacabado ao livro "Bandidos", de Eric Hobsbawn

O Nordeste do Brasil, por exemplo, impressiona à primeira vista como uma bastião do fatalismo, cujos habitantes aceitam morrer de fome passivamente como aceitam a chegada da noite ao fim de cada dia. Mas não está tão longe no tempo a explosão mística dos nordestino que lutaram junto com seus messias, extravagantes apóstolos, erguendo a cruz e os fuzis contras os exércitos, para trazer a esta terra o reino dos céus, nem as furiosas ondas de violência dos cangaceiros: os fanáticos e os bandoleiros, utopia e vingança, deram curso ao protesto social, cego ainda, dos camponeses desesperados.
Eduardo Galeano

O delicioso livro Bandidos, de Eric Hobsbawm, expõe no capítulo "O que é banditismo social?", que o fenômeno do banditismo social faz parte de sociedades agrárias e pastoris. Existem determinados elementos que dão vazão para que este tipo de movimento - marginal - se forme. Por exemplo, Hobsbawm diz que em épocas de muita fome, de repressão política, de descalabros variados, existe uma tendência que dá surgimento a esse fenômeno.

O banditismo "floresce em áreas remotas e inacessíveis, tais como montanhas, planícies não cortadas por estradas, áreas pantanosas, florestas ou estuários, com seu labirinto de canais e cursos d'água, e é atraído por rotas comerciais ou estradas importantes, nas quais a locomoção dos viajantes, nesses países pré-industriais, é lenta e difícil". O historiador inglês vai dizer que baste a construção de estradas ou a conexão com as regiões desoladas, onde originou o banditismo, para que este arrefeça, perca a força. Ou seja, a rapidez na comunicação permite ao Estado ações contundentes a fim de exorcizar o fenômeno do banditismo social.

O Brasil conheceu, no século XX, o fenômeno do banditismo social. O cangaço, classicamente, originado no Nordeste, possui características que levam Hobsbawm a dizer que os cangaceiros não podem ser vistos como "agentes da justiça", "e sim como homens que provam que até mesmo os fracos e pobres podem ser terríveis". Ou seja, os cangaceiros eram figuras ambíguas. Faziam parte de um mundo repleto de superstições, de autoritarismos, de ignorância, de mandos de determinados figurões. Ambientes com essas características, inevitavelmente, fazem surgir grupos justiceiros, como se deu com o fenômeno do cangaço no Nordeste. Figuras como Antonio Silvino ou Virgulino Ferreira da Silva, o "Capitão" ou "Lampião", estão dentro dos limites dessa lógica...

P.S. Escrito em janeiro de 2014. 

sexta-feira, maio 29, 2015

O cinema em março - 2015

A belíssima Rachel Weisz no papel de Hipatias
O blog e o blogger atravessam um período de indigesta preguiça para com a escrita, apesar da leitura ser um gesto quase diuturno. Tenho me ocupado com muitos afazeres. O mês passou célere. A azáfama diária nos joga em um cipoal de responsabilidades que vai nos consumindo; roendo a substância física e espiritual. É preciso estar atento. Desperto. Não permitir que o aquebrantamento seja maior do que a força para a inspiração. Algumas ideias com asas curtas e ralas sobrevoaram a superfície da mente, mas não suportaram a refrega por muito tempo. Não dei atenção a elas. Não as alimentei. E elas acabaram se dissipando com a tempestade inexorável das horas. 

Apareço por aqui hoje para escrever  linhas inexpressivas sobre alguns filmes a que assisti no mês de março. Esses relatórios magros e ordinários têm surgido desde o final do ano passado. Vinha produzindo com a regularidade e o entusiasmo necessários, todavia, uma lassidão me acometeu e acabou roendo por completo as cordas da disciplina. 

Se no mês de fevereiro eu vi seis filmes, no mês seguinte eu consegui assistir a dez. Não farei resumos, posto que o momento me impede de tal empreendimento. Estabelecerei apenas uma lista ordinal. Nela, colocarei aquilo que foi mais relevante, marcante; aquilo que produziu mais estesia no momento em que vi a obra. Há na lista o kitsch hollywoodiano como, por exemplo, Sniper Americano (2014) ou O último samurai (2003); destaco a maviosidade do último e a tragédia bélica, transformada em louvor heroico por uma sociedade que aprendeu que a guerra é a forma de se relacionar com diferença que há no mundo, no segundo. 

No segundo plano, vem De repente num domingo (1983), que apesar de ser um noir de François Truffaut, pareceu-me maçante e de história bastante confusa. Logo em seguida, posiciono Lugares Comuns (2002), filme argentino, que nos dá uma ideia clara do que foi a crise econômica no início do século XXI, crise esta cujas consequências ainda estão postas na combalida sociedade portenha. Podem ser colocadas mais duas obras nesse plano intermediário: Apocalipto (2006) e O jogo da imitação (2014). O primeiro possui o "selo-Mel Gibson de qualidade", ou seja, muito sangue, encaixe de câmeras que provocam efeitos no telespectador e um fundo moral cristão, apesar da história se passar em uma América pré-colombiana. O filme possui uma dualidade: (1) o diretor conseguiu reproduzir plasticamente, com bastante felicidade, os principais aspectos da cultura e dos rituais maias; (2) todavia, permitiu que sua perspectiva religiosa da história prevalecesse ao deixar bem claro que são os descalabros morais, que levam uma civilização ao colapso implacável, como deixa bem claro na epígrafe escrita pelo historiador inglês Will Durant, no início da obra. Já em O jogo da imitação, uma película de grande densidade dramática, o principal personagem, baseado na vida do brilhante matemático inglês Alan Turing, que pagou um preço altíssimo por ser homossexual numa sociedade conservadora e que sedimenta dogmas históricos como é o caso da sociedade inglesa. Caso semelhante havia se dado com o autor de O retrato de Dorian Grey, Oscar Wilde, que amargou a  prisão após o seu romance homo-afetivo ter sido descoberto. O filme busca mostrar como o genial e operoso matemático lidou por anos, até o desfecho medonho perpetrado pelos médicos ingleses, contrários aos impulsos da natureza.

As obras que  podem ser colocadas em um plano mais alto são: (1) Stálin (1992), uma fantástica recriação de como foi o surgimento, a ascensão calculada e o desfecho do coveiro chamado Koba, que se auto-denominou Stálin ("aço") e se tornou o chefe supremo do Partido Comunista da União Soviética. O filme busca descrever a desconcertante ambivalência da personalidade desse, que é um dos mais emblemáticos personagens do século XX. E como ele conseguiu trilhar o caminho do poder. (2) Bashu (1989), um filme iraniano, um dos primeiros daquele país a fazer sucesso no ocidente. O diretor Bahram Beizei construiu um filme singelo, mas de funda beleza poética. Bashu é um menino que foge ocultamente do norte país em um caminhão, após ver a sua família morrer em uma guerra estúpida. Ele acaba atravessando o país e indo para o sul. Lá, ele encontra uma mulher que se afeiçoa dele. Ele passa a viver no sítio dela, apesar dos dois não dominarem o dialeto um do outro.

(3) Alexandria (2009), de Alejandro Amenábar, um filme para ver, pensar e refletir sobre os limites da ignorância e a fragilidade da vida. A obra conta a história de Hipatias de Alexandria, uma das mulheres mais sensacionais que já passaram por esse planeta. Hipatias representa o arquétipo do sábio, do erudito, do sujeito que devota a existência ao conhecimento. Ela substituíra o neoplatônico Plotino, na intectualmente vulcânica Alexandria, um dos locais onde mais se reuniu o saber na antiguidade. Lá estava a mítica biblioteca de Alexandria. Hipatias ensinava com a inquietação característica das grandes mentes. Essa sua característica contrariava a visão tacanha e machista, um pressuposto básico na história. Quando olhamos para a história, não notamos a presença feminina exercendo um protagonismo claro, pois a história foi dominado pelos homens. Pois naqueles dias do segundo século depois de Cristo, Hipatias já antecipava a teoria heliocêntrica, sendo que mais de mil anos mais tarde seria defendida por Copérnico e Galileu Galilei; e punha em xeque a "arrogante" teoria geocêntrica de Ptolomeu, também defendida pela Igreja. O objetivo desta teoria era dar dignidade ao homem. Tirar a terra do centro significava não atribuir o devido valor pretendido pela fé cristã. Todavia, o que fica provado no filme é que determinadas compreensões radicais e fechadas são mais fortes do que a ebulição racional de uma mente que está a serviço da sensatez e do conhecimento. Hipatias sofre duplamente: sofre por ser mulher e sofre por ser alguém de postura independente com o seu pensamento. Maravilhoso esse filme!

(4) Ladrões de Bicicleta (1948) - após Ladrões de Bicicleta, de Vittorino de Sica, fiquei com a certeza de que vi um dos mais belos filmes da minha vida. O filme italiano é uma verdadeira aula de cinema, de um cinema engajado, mas que não perde a ternura. De Sica consegue expor com um realismo dramático a vida do humilde trabalhador Antonio Ricci, um sujeito crédulo e simples, que vive em um subúrbio com a sua mulher e o seu filho. Há um crise na cidade. Os trabalhos são escassos. São anos difíceis em uma Itália esfacelada por conta dos resultados da Segunda Grande Guerra. Ricci consegue um emprego após muito sacrifício. Anima-se. Todavia, para tornar esse emprego efetivo precisa de uma bicicleta. Sua esposa bastante ciosa consegue arranjar o necessário para a bicicleta. A noite anterior ao primeiro dia de labor fora de risos, de contentamento familiar, pois o emprego daria a dignidade, a possibilidade da manutenção do projetos da família. Poderiam comer. E lá se vai Antonio Ricci bastante feliz para o seu primeiro dia de trabalho.  A atividade se resumia a colar cartazes pela cidade. Acontece, porém, que, no primeiro dia, Ricci tem a sua bicicleta furtada. E a partir daí que começa o seu calvário pelas ruas da cidade em busca da bicicleta. Há um misto de beleza e dor nessa incursão de Ricci. De Sica com essa película colocou-se como um dos grandes diretores de todos os tempos. O que conta mesmo no filme é o drama existencial vivido pela personagem. Ou seja, como reage a alma do sujeito que não consegue trabalhar na sociedade capitalista, vivendo em uma sociedade miserável em que os valores se tornam relativos e volúveis de acordo com a necessidade; como a ausência de dinheiro faz convalescer; como a sociedade capitalista trata aqueles que não conseguem consumir as mercadorias. O capital cria a desigualdade e, ao mesmo tempo, numa relação diretamente proporcional, afirma por meio dos valores criados pela sociedade de consumo, que aquele que não consome é anormal, não serve para ser incluído no jogo social. Belíssima obra!

quinta-feira, abril 30, 2015

Nota de indignação

Quando vemos um cenário de barbárie, selvageria e truculência como o que aconteceu no Paraná no dia de ontem, numa indicação clara de como a educação é tratada nesse país, fica a indignação, o repúdio, um sentimento profundo de ojeriza. Existem inversões gritantes nesse país fundado sob uma concepção patrimonialista, repressiva e violenta. O estado brasileiro está a serviço de determinados interesses de classe. O tratamento dispendido aos professores apenas indica como o cidadão, o trabalhador, é visto numa sociedade formada por dois estratos: o Brasil real (do trem lotado, das escolas em má qualidade, do presídios apinhados, da saúde capenga, da favela, do espaço público segmentado) e o Brasil virtual, do andar de cima (dos privilégios, das negociatas, das cumplicidades corruptoras, dos acordos espúrios para se locupletar com a coisa pública).

 Ou seja, o estado brasileiro serve a determinados fins; serve a uma elite que há 500 anos se encastelou, fincou raízes no tecido social e extrai dele toda a seiva produzida pela força dos trabalhadores. Quando vejo uma notícia como a mostrada abaixo, apenas fica a certeza de que somente daqui a 300 anos, com um grande debate, uma mobilização social forçada, poderemos pensar em outro país. No presente, por enquanto, ao presenciar a ferocidade fascista do estado brasileiro contra os professores, por exemplo, morre a crença de que vivemos em um país que tem um projeto político de constituição coletiva.