sexta-feira, maio 20, 2011

Ricardo Gondim na Carta Capital: “Fui eleito o herege da vez”

Perdi o encanto pela religião. Não vejo nem percebo graça, alegria, soltura na linguagem piegas e escravizadora do discurso religioso. A religião é um espaço de aniquilamento da subjetividade. Observando as atualizações dos blogs e sites que acompanho, encontrei o depoimento de Ricardo Gondim, pastor evangélico, que tem construído um discurso audacioso de ruptura com mainstream evangélico viciado, repetidor de fórmulas frágeis, estreitas e preconceituosas. Gondim que escrevia na Revista Ultimato há quase vinte anos foi demitido por causa de uma entrevista que deu à Carta Capital, revista de circulação semanal em todo Brasil (ler a explicação de Gondim). Procurei a entrevista de Gondim (transcrita abaixo) e fiquei impressionado com a lucidez exposta em suas palavras. Foi demitido por defender o direito cidadão de cada um fazer a sua opção sexual. Gondim se posicionou a favor da homossexualidade e perdeu o seu posto de cronista. Esse acontecimento apenas revela a face inquisidora daqueles que defendem a estrutura da linguagem religiosa com seus vícios e defesa intransigente de um modus operandi. Leia a entrevista abaixo:

Texto de Gerson Freitas Jr. publicado originalmente na Carta Capital

‘Deus nos livre de um Brasil evangélico?’ Quem afirma é um pastor, o cearense Ricardo Gondim. Segundo ele, o movimento neopentecostal se expande com um projeto de poder e imposição de valores, mas em seu crescimento estão as raízes da própria decadência. Os evangélicos, diz Gondim, absorvem cada vez mais elementos do perfil religioso típico dos brasileiros, embora tendam a recrudescer em questões como o aborto e os direitos homossexuais. Aos 57 anos, pastor há 34, Gondim é líder da Igreja Betesda e mestre em teologia pela Universidade Metodista. E tornou-se um dos mais populares críticos do mainstream evangélico, o que o transformou em alvo. “Sou o herege da vez”, diz na entrevista a seguir.

Carta Capital: Os evangélicos tiveram papel importante nas últimas eleições. O Brasil está se tornando um país mais influenciável pelo discurso desse movimento?

RG: Sim, mesmo porque, é notório o crescimento no número de evangélicos. Mas é importante fazer uma ponderação qualitativa. Quanto mais cresce, mais o movimento evangélico também se deixa influenciar. O rigor doutrinário e os valores típicos dos pequenos grupos de dispersam, e os evangélicos ficam mais próximos do perfil religioso típico do brasileiro.

CC: Como o senhor define esse perfil?

RG: Extremamente eclético e ecumênico. Pela primeira vez, temos evangélicos que pertencem também a comunidades católicas ou espíritas. Já se fala em um “evangelicalismo popular”, nos modelos do catolicismo popular, e em evangélicos não praticantes, o que não existia até pouco tempo atrás. O movimento cresce, mas perde força. E por isso tem de eleger alguns temas que lhe assegurem uma identidade. Nos Estados Unidos, a igreja se apega a três assuntos: aborto, homossexualidade e a influência islâmica no mundo. No Brasil, não é diferente. Existe um conservadorismo extremo nessas áreas, mas um relaxamento em outras. Há aberrações éticas enormes.

CC: O senhor escreveu um artigo intitulado “Deus nos Livre de um Brasil Evangélico”. Por que um pastor evangélico afirma isso?

RG: Porque esse projeto impõe não só a espiritualidade, mas toda a cultura, estética e cosmovisão do mundo evangélico, o que não é de nenhum modo desejável. Seria a talebanização do Brasil. Precisamos da diversidade cultural e religiosa. O movimento evangélico se expande com a proposta de ser a maioria, para poder cada vez mais definir o rumo das eleições e, quem sabe, escolher o presidente da República. Isso fica muito claro no projeto da igreja Universal. O objetivo de ter o pastor no Congresso, nas instâncias de poder, pode facilitara expansão da igreja. E, nesse sentido, o movimento é maquiavélico. Se é para salvar o Brasil da perdição, os fins justificam os meios.

CC: O movimento americano é a grande inspiração para os evangélicos no Brasil?

RG: O movimento brasileiro é filho direto do fundamentalismo norte-americano. Os Estados Unidos exportam seu american way of life de várias maneiras, e a igreja evangélica é uma das principais. As lideranças daqui Ieem basicamente os autores norte-americanos e neles buscam toda a sua espiritualidade, teologia e normatização comportamental. A igreja americana é pragmática, gerencial, o que é muito próprio daquela cultura. Funciona como uma agência prestadora de serviços religiosos. de cura, libertação, prosperidade financeira. Em um país como o Brasil, onde quase todos nascem católicos, a igreja evangélica precisa ser extremamente ágil, pragmática e oferecer resultados para se impor. É uma lógica individualista e antiética. Um ensino muito comum nas igrejas é de que Deus abre portas de emprego para os fiéis. Eu ensino minha comunidade a se desvincular dessa linguagem. Nós nos revoltamos quando ouvimos que algum político abriu uma porta para o apadrinhado. Por que seria diferente com Deus?

CC: O senhor afirma que a igreja evangélica brasileira está em decadência, mas o movimento continua a crescer.

RG: Uma igreja que, para se sustentar, precisa de campanhas cada vez mais mirabolantes, um discurso cada vez mais histriônico e promessas cada vez mais absurdas está em decadência. Se para ter a sua adesão eu preciso apelar a valores cada vez mais primitivos e sensoriais e produzir o medo do mundo mágico, transcendental, então a minha mensagem está fragilizada.

CC: Pode-se dizer o mesmo do movimento norte-americano?

RG: Muitos dizem que sim, apesar dos números. Há um entusiasmo crescente dos mesmos, mas uma rejeição cada vez maior dos que estão de fora. Hoje, nos Estados Unidos, uma pessoa que não tenha sido criada no meio e que tenha um mínimo de senso crítico nunca vai se aproximar dessa igreja, associada ao Bush, à intolerância em todos os sentidos, ao Tea Party, à guerra.

CC: O senhor é a favor da união civil entre homossexuais?

RG: Sou a favor. O Brasil é uni país laico. Minhas convicções de fé não podem influenciar, tampouco atropelar o direito de outros. Temos de respeitar as necessidades e aspirações que surgem a partir de outra realidade social. A comunidade gay aspira por relacionamentos juridicamente estáveis. A nação tem de considerar essa demanda. E a igreja deve entender que nem todas as relações homossexuais são promíscuas. Tenho minhas posições contra a promiscuidade, que considero ruim para as relações humanas, mas isso não tem uma relação estreita com a homossexualidade ou heterossexualidade.

CC: O senhor enfrenta muita oposição de seus pares?

RG: Muita! Fui eleito o herege da vez. Entre outras coisas, porque advogo a tese de que a teologia de um Deus títere, controlador da história, não cabe mais. Pode ter cabido na era medieval, mas não hoje. O Deus em que creio não controla, mas ama. É incompatível a existência de um Deus controlador com a liberdade humana. Se Deus é bom e onipotente, e coisas ruins acontecem., então há aluo errado com esse pressuposto. Minha resposta é que Deus não está no controle. A favela, o córrego poluído, a tragédia, a guerra, não têm nada a ver com Deus. Concordo muito com Simone Weil, uma judia convertida ao catolicismo durante a Segunda Guerra Mundial, quando diz que o mundo só é possível pela ausência de Deus. Vivemos como se Deus não existisse, porque só assim nos tornamos cidadãos responsáveis, nos humanizamos, lutamos pela vida, pelo bem. A visão de Deus como um pai todo-poderoso, que vai me proteger, poupar, socorrer e abrir portas é infantilizadora da vida.

CC: Mas os movimentos cristãos foram sempre na direção oposta.

RG: Não necessariamente. Para alguns autores, a decadência do protestantismo na Europa não é, verdadeiramente, uma decadência, mas o cumprimento de seus objetivos: igrejas vazias e cidadãos cada vez mais cidadãos, mais preocupados com a questão dos direitos humanos, do bom trato da vida e do meio ambiente.

sábado, maio 14, 2011

As tábuas da Lei – Decálogo do leitor

Li este texto há muito tempo atrás. Hoje, resolvi postá-lo. Julguei necessário e oportuno.

I. Nunca leia por hábito: um livro não é uma escova de dentes. Leia por vício, leia por dependência química. A literatura é a possibilidade de viver vidas múltiplas, em algumas horas. E tem até finalidades práticas: amplia a compreensão do mundo, permite a aquisição de conhecimentos objetivos, aprimora a capacidade de expressão, reduz os batimentos cardíacos, diminui a ansiedade, aumenta a libido. Mas é essencialmente lúdica, é essencialmente inútil, como devem ser as coisas que nos dão prazer.

II. Comece a ler desde cedo, se puder. Ou pelo menos comece. E pelos clássicos, pelos consensuais. Serão cinqüenta, serão cem. Não devem faltar As Mil e uma noites, Dostoievski, Thomas Mann, Balzac, Adonias, Conrad, Jorge de Lima, Poe, García Márquez, Cervantes, Alencar, Camões, Dumas, Dante, Shaskepeare, Wassermann, Melville, Flaubert, Graciliano, Borges, Tchekhov, Sófocles, Machado, Schnitzler, Carpentier, Calvino, Rosa, Eça, Perec, Roa Bastos, Onetti, Boccaccio, Jorge Amado, Benedetti, Pessoa, Kafka, Bioy Casares, Asturias, Callado, Rulfo, Nelson Rodrigues, Lorcas, Homero, Lima Barreto, Cortázar, Goethe, Voltaire, Emily Brontë, Sade, Arregui, Veríssimo, Bowles, Faulkner, Maupassant, Tolstoi, Proust, Autran Dourado, Hugo, Zweig, Saer, Kadaré, Márai, Henry James, Castro Alves.

III. Nunca leia sem dicionário. Se estiver lendo deitado, ou num ônibues, ou na praia, ou em qualquer outra situação imprópria, anote as palavras que você não conhece, para consultar depois. Elas nunca são escritas por acaso.

IV. Perca menos tempo diante do computador, da televisão, dos jornais e crie um sistema de leitura, estabeleça metas. Se puder ler um livro por mês, dos 16 aos 75 anos, terá lido 720 livros. Se, nos mês das férias, em vez de um, puder ler quatro, chegará nos 900. Com dois por mês, serão 1440. À razão de um por semana, alcançará 3120. Com a média ideal de três por semana, serão 9360. Serão apenas 9360. É importante escolher bem o que você vai ler.

V. Faça do livro um objeto pessoal, um objeto íntimo. Escreva nele; assinale as frases marcantes, as passagens que o emocionam. Também é importante criticar o autor, apontar falhas e inverossimilhanças. Anote telefones e endereços de pessoas proibidas, faça cálculos nas inúteis páginas finais. O livro é o mais interativo dos objetos. Você pode avançar e recuar, folheando, com mais comodidade e rapidez que mexendo em teclados ou cursores de tela. O livro vai com você ao banheiro e à cama. Vai com você de metrô, de ônibus, e de táxi. Vai com você para outros países. Há apenas duas regras básicas: use lápis; e não empreste.

VI. Não deixe dominar pelo complexo de vira-lata. Leia muito, leia sempre e literatura brasileira. Ela está entre as grandes. Temos o maior escritor de século XIX, que foi Machado de Assis; e um dos cinco maiores do século XX, que foram Borges, Perec, Kafka, Bioy Casares e Guimarães Rosa. Temos um dos quatro maiores épicos ocidentais, que foram Homero, Dante, Camões e Jorge de Lima. E temos um dos três maiores dramaturgos de todos os tempos, que foram Sófocles, Shakespeare e Nelson Rodrigues.

VII. Na natureza, são as espécies muito adaptadas ao próprio hábitat que tendem mais rapidamente à extinção. Prefira a literatura brasileira, mas faça viagens regulares. Das letras europeias e da América do Norte vem a maioria dos nossos grandes mestres. A literatura hispano-amaericana é simplesmente indispensável. Particularmente os argentinos. Mas busque também o diferente: há grandezas literárias na África e na Ásia. Impossível desconhecer Angola, Moçambique e Cabo Verde. Volte também ao passado: à Idade Média, ao mundo árabe, aos clássicos gregos e latinos. E não esqueça o Oriente; não esqueça que literatura nenhuma se compara às da Índia e às da China. E chegue, finalmente, às mitologias dos povos ágrafos, mergulhe na poesia selvagem. São eles que estão na origem disso tudo; é por causa deles que estamos aqui.

VIII. Tente evitar a repetição dos mesmos genros, dos mesmos temas, dos mesmos estilos, dos mesmos autores. A grande literatura está espalhada de romances, contos, crônicas, poemas e peças de teatro. Nenhum gênero é, em tese, superior a outro. Não se preocupe, aliás, com o conceito de gênero: história, filosofia, etnologia, memórias, viagens, reportagem, divulgação científica, auto-ajuda – tudo isso pode ser literatura. Um bom livro tem de ser inteligente, bem escrito e capaz de provocar alguma espécie de emoção.

IX. A vida tem outras coisas muito boas. Por isso, não tenha pena de abandonar no meio os livros desinteressantes. O leitor experiente desenvolve a capacidade de perceber logo, em no máximo 30 páginas, se um livro será bom ou mau. Só não diga que um livro é ruim antes de ler pelos menos algumas linhas: nada pode ser tão estúpido quanto o preconceito.

X. Forme seu próprio cânone. Se não gostar de um clássico não se sinta menos inteligente. Não se intimide quando um especialista diz que determinado autor é um gênio, e que livro do gênio é historicamente fundamental. O fato de uma obra ser ou não importante é problema que tange a críticos; talvez a escritores. Não leve nenhum deles a sério; não leve a literatura a sério; não leve a vida a sério. E faça o seu próprio decálogo: neste momento, você será um leitor.

Por Alberto Mussa (Revista Entre Livros, Ano 3, No. 27).

domingo, maio 08, 2011

A quantas anda o mundo ou o tempo não para

O trabalho é um empreendimento necessário à existência humana. É por intermédio do trabalho que o homem consegue retirar da natureza os recursos necessários para a manutenção da vida. Sem o trabalho, o homem não teria chegado ao estágio tecnológico em que chegou; aos avanços científicos conquistados. Na modernidade, confundimos ativismo com trabalho. Chamamos qualquer ocupação de trabalho. Talvez, o emprego semântico tente esconder as relações de dominação desenvolvidos por aqueles que detêm os meios de produção em detrimento daqueles que são explorados. Em nossos dias, o trabalho perdeu o seu aspecto pedagógico, já que a necessidade de realizar uma atividade está necessariamente ligada à expectativa de ter. Não nos ocupamos por satisfação, mas porque existe uma força imperiosa que nos obriga a realizar uma ação que potencializará o consumo. Em suma: trabalhamos para ter uma cartão de crédito, o que nos permite ter uma passaporte para o paraíso. O trabalho deixou de ser um servo e passou a ser um senhor; apenas um meio que nos conduz a um fim.

Isso me faz lembrar uma afirmação de Paul Lafargue, extraída do seu texto clássico Direito à Preguiça: "Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda degenerescência intelectual". O trabalho vestido pelas exigências da sociedade capitalista furta até mesmo a brisa de inspiração que sopra no espírito. Não há tempo para devaneios, para beijos apaixonados, para fazer protestos; para participar de rodas de conversas; para fazer saraus; para ouvir música. Acabamos sempre pensando no outro dia; no ônibus cheio; no chefe que nos espreita. O seu azorrague é relógio e o olhar aniquilador.

Na música Capitão de Indústria, Os Paralamas do Sucesso, descrevem essa ciranda do homem moderno. Eles afirmam:

[...]

Estou cansado demais
Eu não tenho tempo de ter

O tempo livre de ser
De nada ter que fazer
É quando eu me encontro perdido
Nas coisas que eu criei
E eu não sei

Eu não vejo além da fumaça
O amor e as coisas livres, coloridas
Nada poluídas
Ah, Eu acordo prá trabalhar
Eu durmo prá trabalhar
Eu corro prá trabalhar

Fiz essa reflexão inicial, pois sei que blog está bastante parado, mas não é por falta de inspiração. O tempo é que não me ajuda, pois eu tenho dormido para trabalhar; corrido para trabalhar; alimentado-me para trabalhar. Já não tenho "tempo livre de ser, de nada ter que fazer" - citando a música dos Paralamas do Sucesso. Nas duas última semanas, dois fatos me chamaram a atenção: (1) A suposta morte de Osama de Bin Laden e oportunismo de Barack Obama, repetindo "espontaneísmo protagonístico" de Bush filho; e como a mídia brasileira lidou com o fato. (2) Outro caso que me chamou atenção foi a decisão do STF, reconhecendo os direitos dos homossexuais de terem direito – acesso à Previdência como qualquer casal heterossexual. Essa foi uma decisão que me deixou bastante satisfeito.

O Supremo ignorou completamente os ruídos emitidos pelos reacionários da Igreja - seja ela Católica ou Evangélica - e proferiu uma decisão histórica que terá importância para outros embates futuros. Esse fato evidenciou o laicismo do Estado. Mostrou que não vivemos mais na Idade Média. Foi uma patada de leão a que o Supremo deu na cara dos Malafaia, da CNBB, dos dogmáticos, dos primitivos, que enxergam o mundo apenas com uma cor. O mundo é multicolorido. O Universo possui mais de 100 bilhões de estrelas. Em pleno século XXI, e as concepções forjadas pelos judeus ainda dominam a nossa mente.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque

domingo, maio 01, 2011

Espiritualidade pós-moderna

Por Frei Betto

O que caracteriza os tempos pós-modernos em que vivemos, segundo Lyotard, é a falta de resposta para a questão do sentido da existência. Por enquanto, estamos na zona nebulosa da terceira margem do rio.

A modernidade agoniza, solapada por esse buraco aberto no centro do coração pela cultura da abundância. Nunca a felicidade foi tão insistentemente ofertada. Está ao alcance da mão, ali na prateleira, na loja da esquina, publicitada em todo tipo de mercadoria.

No entanto, a alma se dilacera, seja pela frustração de não dispor de meios para alcançá-la; seja por angariar os produtos do fascinante mundo do consumismo e descobrir que, ainda assim, o espírito não se sacia...

A publicidade repete incessantemente que todos temos a obrigação de ser feliz, de vencer, de nos destacarmos do comum dos mortais. Sobre esses recai o sentimento de culpa por seu fracasso. Resta-lhes, porém, uma esperança, apregoam os que deslocam a mensagem evangélica da Terra para o Céu: o caráter miraculoso da fé. Jesus é a solução de todos os problemas. Inútil procurá-la nos sindicatos, nos partidos, na mobilização da sociedade.

Vivemos num universo fragmentado por múltiplas vozes, frente a um horizonte desprovido de absolutos, com a nossa própria imagem mil vezes distorcida no jogo de espelhos. Engolida pelo vácuo pós-moderno, a religião tende a reduzir-se à esfera do privado; olvida sua função social; ampara-se no mágico; desencanta-se na autoajuda imediata.

Nesse mundo secularizado, a religião perde espaço público, devido à racionalidade tecnocientífica, ao pluralismo de cosmovisões, à racionalidade econômica. Sobretudo, deixa de ser a única provedora de sentido. Seu lugar é ocupado pelo oráculo poderoso da mídia; os dogmas inquestionáveis do mercado; o amplo leque de propostas esotéricas.

A crise da modernidade favorece uma espiritualidade adaptada às necessidades psicossociais de evasão, da falta de sentido, de fuga da realidade conflitiva. Espiritualidade impregnada de orientalismo, de tradições religiosas egocêntricas, ou seja, centradas no eu, e não no outro, capazes de livrar o indivíduo da conflitividade e da responsabilidade sociais.

Agora, manipula-se o sagrado, submetendo-o aos caprichos humanos. O sobrenatural se curva às necessidades naturais. A solução dos problemas da Terra reside no Céu. De lá derivam a prosperidade, a cura, o alívio. As dificuldades pessoais e sociais devem ser enfrentadas, não pela política, mas pela autoajuda, a meditação, a prática de ritos, as técnicas psicoespirituais.

Reduzem-se, assim, a dimensão social do Evangelho e a opção pelos pobres. O sagrado passa ser ferramenta de poder, para controle de corações e mentes, e também do espaço político. O Bem identifica-se com a minha crença religiosa. Bin Laden exige que o Ocidente se converta à sua fé, não ao bem, à justiça, ao amor.

Essa religião, mais voltada à sua dilatação patrimonial que ao aprimoramento do processo civilizatório, evita criticar o poder político para, assim, obter dele benefícios: concessão de rádio e TV etc. Ajusta a sua mensagem a cada grupos social que se pretende alcançar.

Sua ideologia consiste em negar toda ideologia. Assim, ela sacraliza e fortalece o sistema cujo valor supremo, o capital, se sobrepõe aos direitos humanos. Como observava Comblin, as forças que hoje dominam são infinitamente superiores às das ditaduras militares.

Aos pobres, excluídos deste mundo, resta se entregarem às promessas de que serão incluídos, cobertos de bênçãos, no outro mundo que se descortina com a morte. Frente a essa "teologia” fica a impressão de que a encarnação de Deus em Jesus foi um equívoco. E que o próprio Deus mostra-se incapaz de evitar que sua Criação seja dominada pelas forças do mal.

Felizmente, nas Comunidades Eclesiais de Base, nas pastorais sociais, nos grupos de leitura popular da Bíblia, fortalece-se a espiritualidade de inserção evangélica. A que nos induz a ser fermento na massa e crê na palavra de Jesus, de que ele veio "para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10).

Fomos criados para ser felizes neste mundo. Se há dor e injustiça, não são castigos divinos, resultam de obra do ser humano e por ele devem ser erradicadas. Como diz Guimarães Rosa, "o que Deus quer ver é a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre e amar, no meio da tristeza. Todo caminho da gente é resvaloso. Mas cair não prejudica demais. A gente levanta, a gente sobe, a gente volta”.

[Frei Betto é escritor, autor de "Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org - twitter:@freibetto

Fonte: AQUI