domingo, abril 27, 2014

“A beleza salvará o mundo”: Dostoiewski nos ensina como - de Leonardo Boff

Belo texto de Leonardo Boff - mais um!

Dos gregos aprendemos e isso atravessou  os séculos, que todo ser, por diferente que seja, possui três características transcendentais (estão sempre presentes pouco importa a situação, o lugar e o tempo): ele é o unum, o verum e o bonum, quer dizer ele goza de uma unidade interna que o mantem na existência, ele é verdadeiro, porque se mostra assim como de fato é e é bom porque desempenha bem o seu lugar junto aos demais ajundando-os a existirem e coexistirem.

Coube aos mestres franciscanos medievais, como Alexandre de Hales e especialmente São Boaventura que, prolongando uma tradição vinda de Dionísio Aeropagita e de Santo Agostinho, acrescentarem ao ser mais uma característica transcendental: o pulchrum vale dizer, o belo. Baseados, seguramente na experiência pessoal de São Francisco que era um poeta e um esteta de excepcional qualidade, que “no belo das criaturas via o Belíssimo,” enriqueceram nossa compreensão do ser com a dimensão da beleza. Todos os seres, mesmo aqueles que nos parecem hediondos, se os olharmos com afeição, nos detalhes e no todo, apresentam, cada um a seu modo, uma beleza singular na maneira como neles tudo vem articulado com um equilíbrio e harmonia surpreendentes.

Um dos grandes apreciadores da beleza foi Fiodor Dostoiewski. A beleza era tão central em sua vida, conta-nos Anselm Grün, monge beneditino e grande espiritualista, em seu último livro “Beleza: uma nova espiritualidade da alegria de viver”(Vier Türme Verlag 2014) que o grande romancista russo desolocava-se pelo menos uma vez ao ano até Dresde, na Alemanha, só para contemplar na capela a formosa Madona Sixtina de Rafael. Permanecia longo tempo em contemplação diante daquela esplêndida figura. Tal fato é surpreendente, pois seus romances penetraram nas zonas mais obscuras e até perversas da alma humana. Mas o que o movia, na verdade, era a busca da beleza pois nos legou a famosa frase:”A beleza salvará o mundo”dita no livro O Idiota.

No romance Os irmãos Karamazov aprofunda a questão. Um ateu Ipolit pergunta ao príncipe Mynski como “a beleza salvaria o mundo”? O príncipe nada diz mas vai junto a um jovem de 18 anos que agonizava. Aí fica cheio de compaixão e amor até ele morrer. Com isso nos quis dizer: beleza é o que nos leva ao amor condividido com a dor; o mundo será salvo hoje e sempre enquanto houver essa atitude.

Para Dostoiewski a contemplação da Madona de Rafael era a sua terapia pessoal, pois sem ela desesperaria dos homens e de si mesmo, diante de tantos problemas que vivia. Em seus escritos descreveu pessoas más e destrutivas e outras que mergulhavam nos abismos do desespero. Mas seu olhar, que rimava amor com dor compartida, conseguia ver beleza na alma dos mais perversos personagens. Para ele, o contrário do belo não era o feio mas o espírito utilitarista e o uso dos outros, roubando-lhe assim a dignidade.

“Seguramente não podemos viver sem pão,mas também é impossível existir sem beleza”repetia. Beleza é mais que estética; possui uma dimensão ética e religiosa. Ele via em Jesus um semeador de beleza. “Ele foi um exemplo de beleza e a implantou na alma das pessoas para que através da beleza todos se fizessem irmãos entre si”. Ele não se refere ao amor ao próximo; a contrário: é a beleza que suscita o amor e nos faz ver no outro um próximo a amar.

A nossa cultura dominada pelo marketing vê a beleza como uma construção do corpo e não da totalidade da pessoa. Então surgem métodos e mais métodos de plásticas e botoxs para tornarem as pessoas mais “belas”. Por ser construída, é uma beleza sem alma. E se repararmos bem, nesta estética fabricada, emergem pessoas com uma beleza fria e com uma aura de artificialidade, incapaz de irradiar. Daí irrompe a vaidade, não o amor, pois a beleza tem a ver com amor e a comunicação. Dostoiewski observa, nos Irmãos Karamazov, que um rosto é belo quando você percebe que nele litigam Deus e o Diabo entorno do bem e do mal. Quando percebe que o bem venceu, irrompe a beleza expressiva, suave, natural e irradiante. Qual beleza é maior? A do rosto frio de uma top-model ou a do rosto enrugado e cheio de irradiação da Irmã Dulce de Salvador, Bahia, ou a da Madre Tereza de Calcutá? A beleza, característica transcendental, se revela como irradiação do ser. Nas duas Irmãs, a irradiação é manifesta, na top-model existe mas é esmaecida.

O Papa Francisco conferiu especial importância na transmissão da fé cristã à via pulchritudinis (a via da beleza). Não basta que a mensagem seja boa e justa. Ela tem que ser bela, pois só assim chega ao coração das pessoas e suscita o amor que atrái ( Exortação A alegria do Evangelho, n 167). A Igreja não visa o proselitismo mas a atração que vem do amor e da beleza da mensagem que causa fascínio e produz esplendor.

A beleza é um valor em si mesmo. É gratuita e sem interesse. É como a flor que floresce por florescer pouco importa se a olham ou não, como diz o místico Angelus Silesius. Quem não se deixa fascinar por uma flor que sorri gratuitamente ao universo? Assim devemos viver a beleza no meio de um mundo de interesses, trocas e mercadorias. Então ela realiza sua origem sânscrita Bet-El-Za que quer dizer:”o lugar onde Deus brilha”. Brilha por tudo e nos faz também brilhar pelo belo que se irradia de nós.

Leonardo Boff escreveu A força da ternura, Editora Mar de Idéias, Rio 2011.


segunda-feira, abril 21, 2014

Quando se é estreito...

Não tinha a intenção de escrever esta reflexão, mas após ler dois textos vindos de fontes bem distintas, abordando o mesmo assunto, percebi como idiossincrasias religiosas podem levar a uma miopia; ou a uma sensibilidade além do comum.  O segundo caso é mais raro, todavia pode ser encontrado. O primeiro está vestido pela arrogância e por uma "teimosa" perspectiva de medir todas as coisas pelos valores que se cristalizaram no tempo e não acompanharam evolução da história.

Refiro-me à reflexão feita por Ricardo Gondim sobre Gabriel García Márquez, que faz aumentar o respeito que tenho por ele, um dos religiosos mais veneráveis deste país. Lúcido. Simpático. De bem com a vida. Cheio de poesia. E o outro texto pode ser lido aqui, escrito por Solano Portela, pretenso arauto da doutrina, defensor ardoroso da causa reformada. Solano também pretende falar sobre García Márquez. Mas decide estender sua análise para dois outros nomes importantes da literatura latino-americano - Mario Vargas-Llosa e Jorge Amado. Faz a pergunta: "O que Gabriel Garcia Marquez, Mario Vargas Llosa e Jorge Amado têm em comum?" Critica García Márquez e Jorge por serem de esquerda. Defenestra o primeiro por que era amigo de Fidel e aguilhoa o outro por ter sido militante comunista. Os intelectuais têm direito a ser aquilo que bem entendem. Afinal, impossível falar em intelectual, ainda mais no século XX, sem que este estivesse comprometido com uma causa política. Elogia Llosa por ser de direita, mas decide em seguida apupá-lo, também, por este ter enaltecido o presidente do Uruguai pelas medidas progressistas que não temos condições de debater dada a nossa menoridade intelectual. 

A exiguidade do pensamento de Solano fica claro quando comparamos com o texto de Gondim - mais largo, arejado, sem espinhos inquisidores. Sem sentenças judiciosas a favor de um dogma. Como se pode ver no texto de Gondim o seu dogma é a vida. A busca por compreender a sua própria condição de sujeito humano. 

Condenar a literatura de três nomes extremamente relevantes para a história do continente latino-americano pelo simples fato de a literatura fazer menção a temas repudiados pelo mundinho religioso de A ou B é um ato de ignorância. O dia em que esses indivíduos de mentes estreitas, fechadas, conseguirem escrever um romance como Jubiabá, Pastores da Noite, Tenda dos Milagres (Jorge Amado); Conversa na Catedral, A festa do bode, A guerra do fim do mundo, que é a retratação da Guerra de Canudos, sendo que para escrever o livro Vargas-Llosa morou por cinco anos no interior da Bahia; ou Cem anos de solidão, O amor nos tempos do cólera, Ninguém escreve ao coronel (Gabriel García Márquez), eu farei um silêncio e admitirei seus ideais congelados.

A literatura não está preocupada com os moralismos. E podemos contar o número de escritores com inclinações religiosas que produziram literatura de alto nível. São exceções Chesterton, C.S. Lewis ou Tolkien. A literatura é, simplesmente, a transfiguração do mundo. O que os homens não conseguem expressar por meio de teorias, criam por meio da ficção. A literatura melhora o mundo. Desconstrói para poder construí-lo. Não podemos falar em moralidade ou amoralidade nesse sentido.


Qual Brasília faz 54 anos?

Brasília é uma miragem no meio do cerrado. Ainda possui lendas a seu respeito. Boa parte do Brasil ainda conserva a opinião de que, quem mora na Capital, dialoga com o Presidente da República quando quiser. É só acenar com um piparote que a coisa acontece. Depois de 25 anos morando em Brasília cheguei a algumas conclusões - talvez inamistosas - sobre a cidade. Como eu disse certa vez, as melhores palavras que expressam o que é Brasília foram pronunciadas por Marshall Bergmann, na introdução do seu livro Tudo o que é sólido desmancha no ar.

Ainda recordo as primeiras visões que tive da cidade, quando cheguei à Brasília em 1989. Ainda dentro do ônibus da Viação Itapemirim, com direção à antiga Rodoferroviária, avistei o Eixo Monumental. Vi a Torre de TV, suposto cartão postal da cidade. A impressão que tive foi de um descampado enorme com uma vegetação pródiga cobrindo todas as coisas. Os ônibus amarelos da Viação Pioneira passavam apressados. Tudo se consumia em meio à poeira do mês de agosto. A secura abria sucos nos lábios. Enfeiava a pele. Eu, animal acanhado, vindo da Zona da Mata de Pernambuco, pouco afeito a esses rebuliços citadinos, fiquei "bestificado" com a cidade. Cresci na cidade satélite de Ceilândia e poucas foram as vezes que visitei o Plano Piloto. O Plano Piloto se constituía apenas naquilo que via no itinerário dos ônibus.

Mesmo tendo morado por muito tempo, somente alguns anos depois fui visitar a Esplanada dos Ministérios, lugar do orgulho e da jactância modernista do ufanismo brasileiro. É ali que se espraia, que se derrama, que o poder semeia os seus ovos valiosos no coração Brasil. 

Há dois anos atrás, quando visitei João Pessoa, capital da Paraíba, tive a oportunidade de conhecer um mosteiro construído em 1589. Fiquei impressionado com o que vi. Era, simplesmente, o monumento mais antigo que eu havia visitado. Minhas referências eram pequenas. Quando olhei aquelas pedras; o altar da igreja; os bancos que já abrigaram tanta gente; o chão impregnado pela poeira do tempo, não deixei de pensar na exiguidade temporal que é Brasília. Ela não passa de uma senhora concebida do desvario "modernista" do entreguismo brasileiro. Juscelino, Niemayer e Lúcio Costa calcularam mal. Fundaram uma cidade sobre um sonho, sobre uma aspiração incipiente. Hoje Brasília é uma senhora manca. 

E não se deve deixar de mencionar que existem várias Brasílias. Consigo divisar duas pelo menos. A Brasília "resplandecente", orgulho dos "civilizados" moradores do Plano Piloto e dos Lagos Sul e Norte; do Sudoeste e Noroeste; do Park Way e dos medievais condomínios que escondem o medo e o individualismo burguês. A Brasília daqueles que vão de carro e que transformam as ruas da Capital em um inferno de buzinas e holofotes vermelhos quais olhos satânicos. E quando olhamos, avistamos apenas o condutor dentro de sua armadura, de sua máquina, que lhe protege das intempéries, do outro, da necessidade, do pedinte do semáforo. 

O sonho chamado Brasília é vendido para aqueles que consomem arte. Que têm a possibilidade de estudar na Universidade de Brasília, que fica afastada do povo, distante das cidades satélites. Desfrutada pelos filhos dos trabalhadores, que ficam no caminho da competição: (1) por estudarem em escolas públicas e serem apartados na refrega do vestibular; (2) por estarem distante fisicamente do campus; (3) pelas condições socio-econômicas que impedem o sujeito morador das cidades satélites gastarem além das possibilidades para chegarem até lá.

A outra Brasília que diviso é Brasília das cidades-satélites - atualmente, quase quarenta. Elas foram criadas como alternativas para aqueles que vieram construir Brasília. Muitas delas conseguiram se estabelecer economicamente. Elas não são municípios propriamente ditos. São descentralizações burocráticas ou administrativas. Existem para tornar mais fácil a governabilidade. Todavia, ganharam vida própria. Possuem personalidade. Gravitam em torno de Brasília. Assistem à distância o espetáculo da Casa-Grande, que é Brasília, sendo apenas Senzala. Possuem uma vida cultural apagada. A população precisa trabalhar, a maior parte, no Plano Piloto. As opções de lazer são escassas. Os jovens, geralmente filhos de trabalhadores, ficam sozinhos e expostos à marginalidade. Refiro-me aqui a cidades como Ceilândia, Samambaia, Planaltina, Santa Maria, Recanto das Emas, Paranoá, São Sebastião, Sobradinho II etc. É Brasília mostrada por Vladimir de Carvalho e seu fantástico documentário Conterrâneos Velhos de Guerra.

Brasília não me apetece. Do mármore não brota graça. Não nasce a vida. Apenas o sonho bambo e febril de que nos alinhamos com o progresso por termos construído uma cidade ex-nihilo. É uma cidade fria. Seus monumentos são desvetidos de sensibilidade. Leva-nos a uma escadaria íngreme de convencimentos instáveis. Faz brotar um sorriso molesto no canto dos lábios como se os nossos trilhos levassem a um futuro promissor, no qual a esperança, cantada no seu hino, fizesse nascer uma terra onde mana leite e mel. Brasília é a capital dos amadorismos. Mas, também, das especulações gananciosas que alimentam o ventre de plutocratas senis e insaciáveis.

Os filhos de Brasília, como são chamados aqueles que nasceram após a fundação da cidade, aprenderam a se inebriar, pois o nosso cérebro tem uma facilidade para se adaptar com aquilo que vivenciamos rotineiramente. Platão provou isso de forma genial na alegoria do Mito da Caverna, dizendo que aqueles que convivem com as sombras, acostumam-se com as mesmas sombras. 

Minhas palavras talvez revelem um amargor e uma falta de docilidade profunda. Mas é o que penso. São as impressões que fui colhendo nesses vinte cinco anos de convívio com a cidade. E corroboro com Marshall Bergmann: "Vista do ar, Brasília parecia dinâmica e fascinante de fato, a cidade foi feita de modo a assemelhar-se a um avião a jato tal como aquele do qual eu (e quase todas as outras pessoas que lá vão) a vemos pela primeira vez. Vista do nível do chão, porém, do lugar onde as pessoas moram e trabalham, é uma das cidades mais inóspitas do mundo". Ou seja, vê-la de longe, como os brasileiros a veem parece interessante, estimulante, todavia, está com ela é outra história. Por isso, a tese inicial de que Brasília é uma miragem. 

domingo, abril 20, 2014

"Educação Sentimental", de Júlio Bressane

Vi na sexta-feira ao perturbador filme de Júlio Bressane Educação Sentimental. Talvez o termo "perturbador" crie uma expectativa negativa em torno do filme, mas é, no mínimo, assim que poderíamos defini-lo. Emprego o termo aqui no bom-sentido. Não quero espicaçar a obra, que é de boa qualidade. Em primeiro lugar é preciso esclarecer que assistir a um filme de Júlio Bressane exige um exercício bastante intenso de disciplina e de relativa maturidade. O telespectador pouco afeito à estética bressaniana pode chegar a conclusões apressadas como esta: "Que porcaria é essa?!"

Ademais, Bressane é um dos diretores mais eruditos do nosso país com seu cinema experimental. Seus roteiros são densos e estão permeados por temas diversos da literatura, filosofia, religião e mitologia. Como, por exemplo, em Dias de Nietzsche em Turim ou São Jerônimo, que de tão bonito e sublime provoca uma náusea estomacal.

Educação Sentimental conta a história de Áurea e Áureo. Até aí tudo bem, já que os nomes parecem revelar uma grande brincadeira. Mas no transfundo disso tudo está o mito grego de Endimião e Selene. Ou seja, a lua que se apaixona pela beleza física de um jovem pastor. No caso do filme, a professora que se apaixona pelo aluno. Ela, uma letratada que conhece os meandros da literatura. Que disserta para o garoto, que em alguns momentos, parece não entender aquilo que ela diz. Seu tom professoral é erguido com afetamento e artificialidade. Sua voz é alambicada; todavia, impecável. Seus modos, completamente livres e telúricos, como na cena em que ela caminha e dança num frenesi primitivo. Ao fundo, ouvimos o sons de animais da fauna brasileira - tucanos e outros pássaros e animais

O filme revela uma poesia muda. As referências ao mito surgem a todo instante. No caso do mito, Zeus provoca um sono profundo em Endimião, que dorme e não pode despertar; e todas as noites a lua vem beijar a beleza de Endmião com sua claridade prateada. A professora, por sua vez, ensina tudo ao jovem Áureo. Beija-lhe a mocidade com sua erudição. Seu saber arqueológico é, na verdade, um grito a serviço da arte. E aqui notamos a genialidade de Bressane ou a sua voz protesto a favor de um cinema que faça emanar a poesia e deixe de lado o anelo comercial. Tal desejo inveterado pelo lucro tem tirado a roupagem artística do cinema. A indústria cinematógrafica sufoca e impede que a poesia de um Bressane, de um Tarkovski, de um Bergman, de um Kubrick seja apreciada.

Filme bom é aquele que nos faz pensar. Que sugere misteriosamente e nos deixa por dias com suas imagens tatuadas em nossa mente.  O filme de Bressane se inscreve nessa categoria. É um filme curto e, ao final, existe uma revelação das cenas dos bastidores (making of), chamado de Circuncena, que mostra a cozinha onde os sonhos do cinema são produzidos. Educação Sentimental não faz referência à obra homônima de Gustave Flaubert.

sábado, abril 19, 2014

Miguel Street, de V.S. Naipaul - que livro!


Em meio à torre infinita de livros para serem lidos que se avulta na distância, tornando o seu cimo indivisável ao observador afastado, mês passado comprei dois livros de V.S. Naipaul - Miguel Street e Sementes Mágicas - ganhador do Prêmio Nobel em 2001. Conheci Naipaul no blog do Charlles, como tantas coisas boas em matéria de literatura que aparecem por lá. Os textos do Charlles, sempre com uma pitada de profunda sensibilidade mordente, não perdem em nada para essas revistecas recheadas por esses jornalistas de olhares enviesados. O Charlles já me proporcionou bastante alegria. Tudo que ele cita, eu acabo anotando escrupulosamente para conseguir em seguida. E quando percebo o quanto o sujeito já leu, fico com uma pontada de inveja. Bate-me uma espécie de síndrome faústica. Ou seja, aquele desejo de abarcar o infinito. De me diluir em meio ao caos. De abraçar as galáxias. De correr pelos espaços infinitos da literatura. De ler, ler e ler. Mas, sou limitado e estou circunscrito por responsabilidades e atividades-cacetes que me estrangulam o tempo e me põem num marasmo profundo.

Quando me surge uma oportunidade, lá estou eu a mover o olhos pelas linhas, diligentemente. Foi assim que fiz com Miguel Street, de V.S. Naipaul. Aproveitei o feriado e li o livro em dois dias. O curioso é que não fiz um esforço demasiado para ler a obra. Tudo aconteceu de forma natural. O prazer foi incomensurável. Fazia um certo tempo que um livro não provocava tanto prazer, leveza e boas gargalhadas quanto esse Miguel Street. O último livro que me proporcionou tão boas gargalhadas foi O mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov, que li o ano passado. O livro de Naipaul é um livro de leitura fácil, ágil. Composto por dezessete capítulos, que acabam formando uma unidade, apesar de terem a aparência de contos avulsos. 
V.S. Naipaul
O livro foi escrito em 1955, num período de seis semanas. Àquela ocasião, Naipaul era um jovem de pouco mais de 23 anos de idade. Era sua estreia. Chegara à Inglaterra três anos antes, vindo de um país obscuro do Caribe, Trinidade e Tobago. De origem indiana, os antecedentes do escritor, por conta das relações do país com a Inglaterra, receberam levas enormes de indianos. Isso explica até o hoje o fato de Trinidade e Tobago ter boa parte de sua população formada por hindus. 

Miguel Street era o nome de uma rua da capital do país, Porto Espanha. Lá viviam os tipos mais curiosos que um romancista poderia desejar. Uma verdadeira constelação de personalidades estranhas e engraçadas esperando para ganharem vida em uma boa narrativa. Quando Naipaul escreveu Miguel Street aos 23 anos de idade, ele demonstrou ao mundo justamente essa ótica singular capaz de apreender de forma genial os tipos marginais numa narrativa rápida, curta e de muito bom gosto. É isso que chama a atenção no livro. As personagens foram tiradas, e aí como faz Graciliano Ramos em Infância, não se sabe até que ponto a realidade ganha o terreno da ficção ou esta última ganha o terreno da realidade, do meio vivencial do autor. 

Enquanto os romancistas estavam preocupados com o mundo pós-guerra. As causas intelectuais estavam voltadas para o eixo Europa e Estados Unidos, o que poderia sair de interessante de um país insignificante como Trinidade e Tobago, e que somente conseguiria a sua independência anos mais tarde? Personagens excêntricas como Bogart, um homem que passa o dia inteiro jogando paciência; Homem-homem, que planeja sua própria crucificação e pede para ser apedrejado, mas fica bravo quando as pessoas começam de fato a atirar pedras nele; Laura, que tem oito filhos com sete homens diferentes; Bhakcu, um suposto gênio da mecânica que se torna líder espiritual; Titus-Hoyt, o bacharel em arte e tantos; Hat, o sujeito que gostava de levar as crianças para o jogo de críquete. Ou seja, a narrativa está repleta de tipos pequenos e marginais, como mulheres que batem em maridos, maridos que batem em esposas; tipos que são enganados ou que usam de esperteza para ganhar a vida. Em tudo se nota, a singeleza com que viviam as personagens. Um lugar onde fatos endêmicos grassam com bastante facilidade, numa espécie de tragicomédia. 



sexta-feira, abril 18, 2014

A Sexta-Feira Santa e uma pequena reflexão sobre a fé

Rogier van der Weyden, Sepultamento, 1450.
Após ler um belo texto de Leonardo Boff, bateu-me uma sensação de frescor espiritual. Além disso, estou ouvindo o Stabat Mater, do compositor italiano Antonio Caldara, que nasceu no século XVII e morreu no século XVIII. Hoje se comemora a dita Sexta-Feira Santa, momento de imensa significação para a cristandade. É o dia que, segundo a tradição cristã, Jesus morreu por amor aos homens a fim de remi-los dos pecados e injustiças. 

Passados dois mil anos dessa possível morte, fico a pensar na atual situação do mundo, cujo nível de violência, dessacralização, vilanias, cinismos e irreverências se tornaram insuportáveis - não que isso não tenha existido em outras épocas. E a consequência disso tudo é o medo, a bestialização, a perca da capacidade do afeto.  E a mensagem de amor e esperança parece ter se diluído no horizonte aziago da história. Parece que caminhamos para a barbárie. Para a selvageria absoluta. Nesse sentido, penso que aí se faz importante a mensagem cristã de amor. Não somente a cristã, mas todas aquelas que enchem o coração dos homens de luz e pacificação. 

A cristã, especialmente, ergueu um monumento de esperança. Serenou angelicamente um gesto de beleza com o objetivo de tornar os homens mais homens; mais justos; mais cheios de dignidade e capazes de reconhecerem o outro como sendo alguém vestido pela imagem santificada do absoluto. Entendo que a mensagem do Evangelho seja um das mais bonitas que já foram semeadas na história da humanidade. Ela por si só, sem o fungo fermentador dos radicalismos da fé, sem a dogmática castrante que existe em torno da religião institucionalizada, é capaz de promover revoluções interiores. É capaz de fazer nascer a vida. É como o próprio Cristo diz em uma das passagens dos evangelhos, afirmando de forma belíssima que o amor, a descoberta de si, o caminhar religado com esse espírito de sensibilidade e transformador, faz com que esse mesmo sujeito se torne uma espécie de "chafariz ambulante", do qual do seu interior brotam as águas que transformam a própria vida (Jo 7.38)

Quando olho para a história da arte, não deixando de pensar no poder e pompa ostentada pela Igreja durante vários séculos, cujo resultado foi perseguição, morte, abusos, vilanias, negociações extravagantes, numa afronta deliberada àquilo que ensinou Cristo, não posso me desvencilhar das emoções geradas a partir da contemplação da fé. Como, por exemplo, a bela Missa  Dolorosa do Antonio Caldara, que escuto agora; ou ainda uma missa ou cantata de Bach; ou uma obra de Palestrina, Lassus, Gesualdo ou Victoria. Ou ainda a contemplação de uma obra de Rogier van de Weyden, Caravaggio ou Giotto.

Allain de Boton escreveu em seu livro Religião para ateus que "o cristianismo nunca nos deixa qualquer dúvida sobre para que serve a arte: é um meio para nos lembrar daquilo que importa. Existe com o intuito de nos guiar para o que deveríamos cultuar e condenar, se desejamos ser pessoas boas e sãs em posse de almas bem-ordenadas. É um mecanismo por meio do qual nosssas memórias são exercitadas à força a respeito do que devemos amar e ser gratos, assim como do que devemos nos afastar e temer". Agostinho nos aponta para isso quando diz que um sacramento é um símbolo capaz de representar uma ausência; é um sinal da presença da graça. O cristianismo como um todo é um apontar para a possibilidade de que os há esperança, de que a bondade e o amor, essa capacidade tão humana, podem ser experimentados.

Assim, passo a ser simpático para com a fé a partir do momento em que ela me torna uma pessoa mais singela, mais humana e, a partir disso, abre uma porta dimensional capaz de me fazer pensar em minha finitude e como Pascal posso dizer: "Sou o nada diante do tudo; e o tudo diante do nada". A sentido da religião repousa justamente nessa compreensão belíssima que nos leva a cultivar paisagens interiores. E uma vez que as paisagens interiores estejam cultivadas, do lado de fora verão a cachoeira, a cascata interior aludida por Jesus. E aí tudo ganha o sentido daquela afirmação de São Francisco: "Prega o Evangelho em todo tempo; se necessário, usa as palavras".

quinta-feira, abril 17, 2014

Uma bela confissão de Eric Hobsbawm

 
Os meses que passei em Berlim me tornaram um comunista para o resto da vida, ou pelo menos me transformaram em alguém cuja vida perderia a natureza e o significado sem o projeto político a que se dedicou quando estudante, ainda que visivelmente esse projeto tenha falido - e, como agora sei, somente poderia falir. O sonho da Revolução de Outubro ainda está em algum lugar dentro de mim, assim como um texto apagado no computador lá permanece, à espera de que o técnicos o recuperem dos discos rígidos. Abandonei-o, ou melhor, rejeitei-o, mas não foi eliminado. Até hoje me vejo tratando a memória e a tradição da União Soviética com uma indulgência e ternura que não sinto em relação à China comunista, porque pertenço à geração para a qual a Revolução representava a esperança do mundo, o que nunca foi verdade quanto à China. A foice e o martelo da União Soviética eram seu símbolo. Mas o que poderia ter transformado aquele menino de escola de Berlim em comunista?

Hobsbawm.Eric, Tempos Interessantes. Companhia das Letras, São Paulo, 2002. p. 73

domingo, abril 13, 2014

"Filme de Amor", um filme de Júlio Bressane

Júlio Bressane é um nome  importante do cinema brasileiro. Na estrada desde os anos 60, Bressane é um dos porta-vozes daquele que ficou conhecido como cinema marginal, um movimento que buscava dar uma identidade própria ao cinema nacional, fugindo das convenções comerciais. Suas películas são quase sempre experimentalistas. O seu maior sucesso é Matou a família e foi ao cinema (1969). De lá para cá, o cineasta carioca produziu uma enxurrada de obras, algumas com potencial de mercado; outras, nem tanto. O fato é que Bressane, sem muito dinheiro para fazer aquilo que o mercado exige, prima pelas produções com orçamento exíguo. Dele eu já vi, São Jerônimo (1999) - incompleto - e Dias de Nietzsche em Turim (2002) - filme excelente que busca reproduzir os últimos dias de lucidez do filósofo alemão.

Hoje, vi uma produção de 2003, chamado Filme de Amor. Não é uma obra comercial, no sentido geral do termo. O filme é quase uma provocação. Apenas três atores - duas mulheres e um homem. As personagens são moradores de subúrbio. Como é mostrado no final do filme, trabalhadores com suas vidas encerradas dentro da rotina. Mas essas três personagens decidem se trancar em um aparatamento sujo, empoeirado, e, no meio da bebedeira e do devaneio, experimentam uma transcendência. Fogem do lamaçal e da mediocridade em que suas vidas estão metidas. Conforme se pode notar pela fala de uma das personagens cada a uma delas representa uma das personagens do mito das três graças - o Amor, a Beleza e o Prazer. 

Bressane coloca na boca dos personagens textos de Virgílio; citações fazendo referência a Bocaccio e à Renascença Italiana. Ou seja, o fino, o puro, o divino, misturado à rotina miserável. Dentro desse cadinho de sonhos, estão a bebedice, o gozo, simulações, felações, corpos nus, órgãos à mostra. O filme brinca com as cores. Ora nos mostra o preto e branco, o que nos passa uma atmosfera de sonhos; ora o colorido, que nos coloca dentro da realidade, do factível.

O filme, ao meu modo de ver, busca mostrar como existem sonhos adormecidos na cabeça e no corpo dos homens. Esse fato pode ser notado em uma das cenas finais do filme, quando de saída do apartamento lúgubre, vemos pessoas caminhando na rua, num vai e vem. Pessoas anônimas. Universos de sonhos adormecidos e potenciais. 

Estou com outro filme dele para ver. Dessa vez é Educação Sentimental (2013). Pretendo ver ainda esta semana.

domingo, abril 06, 2014

"O velho e o mar", de Ernest Hemingway

Li O velho e o mar há alguns dias atrás e ainda conservo o forte sabor da prosa de Hemingway em minhas entranhas. Não pretendo escrever uma resenha em sentido estrito sobre o livro. Talvez me falte competência para tal. Mas o certo é que não é possível ler esse livro, escrito em 1952, e não deixar se levar pela história de Santiago, o pescador. Trata-se de um livro curto, de linguagem jornalística. Hermingway não abusa das metáforas e dos alambicamentos. Quando escreveu O velho e o mar talvez estivesse fazendo um exercício minimalista. A maior parte dos leitores de Hemingway elegem O Velho e o Mar como leitura favorita.

O fato é que ele explora ao máximo um mesmo fato. É como se ele pegasse um tecido molhado e tentasse extrair dele toda a umidade. Sua insistência com a palavra é para "espremer o fato". A literatura de Hemingway está repleta dessa característica. Geralmente, as personagens enfrentam fatos aventurescos, quase sempre, que se sobrepõem às suas forças. Cria-se a partir daí uma pujança na narrativa que nos retira o fôlego.

A história de O velho e o mar é a história de uma pescaria, realizada por Santiago. Após ficar mais de oitenta dias sem pescar nada, a personagem se faz ao mar e, sozinho, consegue fisgar um peixe de enormes proporções. Conseguir vencer o peixe é a grande questão a ser conseguida. Esse embate demonstra a condição do homem perante a força da natureza. E aí estão as qualidades de Hemingway como grande narrador. O que para outro escritor seria um fato insignificante, para o americano é possível amplificar o fato e torná-lo de  uma envergadura extraordinária. Hemingway torna o velho Santiago em um herói diante da mitológica força do peixe. O poder de resistência, a tenacidade, o laceramento do corpo, as forças que são reunidos num sobre-humano esforço, faz crescer a grandiosidade da narrativa. 

Quando Santiago consegue dominar o peixe, após várias noites de insônia, de fome inclemente e acreditar que havia conquistado um grande troféu, a esperança da vitória triunfante  é baldada pelos poderes naturais. Tubarões atacam o peixe. Vão roendo-lhe a carne suculenta e preciosa. O pescador lutar bravamente contra as feras assassinas. Mas pouco a pouco percebe que o poder inexpugnável da natureza é maior que ele. Os tubarões comem o peixe de deixar somente a carcaça. Assim, ele volta trucidado pela inevitabilidade dos fatos. Os movimentos da natureza seguem leis imparciais com as quais não se pode lutar. Todavia, fica uma espécie de aprendizado íntimo em Santiago. Não se trata apenas de resiliência. É como se ele entendesse a sua finitude. E essa ternura acaba transbordando das páginas a fim de alcançar o leitor.

O velho e o mar é um livro de leitura rápida e apaixonante. É possível lê-lo de uma sentada. Quando iniciamos a leitura, parece que somos fisgados pelo estilo genial de Hermingway e aquilo acaba nos levando ao deleite completo.

quinta-feira, abril 03, 2014

As Hébridas, de Mendelssohn

Certa vez, Felix Mendelssohn, um dos maiores compositores da história, fez uma viagem à costa da Escócia e voltou de lá tão impressionado que acabou compondo uma das mais belas e misteriosos peças já escritas. Trata-se de As Hébridas. Hoje pela manhã ouvi a obra sob a regência de Carl Schuricht e fiquei impressionado mais uma vez. Talvez, ninguém tenha captado com tamanha exatidão as características de um lugar ou de uma paisagem quanto nesta obra. Claro, existe Debussy e sua fabulosa La Mer; existe o Rachmaninov e sua desoladora A ilha dos mortos; existe Beethoven e sua Pastoral; existe Vivaldi e sua As quatro estações. Existe Shostakovich e sua aterradora Sinfonia número 11, "O ano de 1905"; existe Vaughan Williams etc. Mas o fato é que com Mendelssohn a beleza se cristalizou e o mistério da natureza se eternizou na arte. O que os pintores fazem com o pincel, Mendelssohn fez com a partitura. A música é um quadro notável.