quarta-feira, abril 29, 2020

Assino por todos os lados




"O que faz de mim um brasileiro?

Nasci no Brasil, é verdade - na cidade do Rio de Janeiro, no Estado da Guanabara. Mas isso é um acidente geográfico.

Não tenho os traços estereotipados do brasileiro "típico". Não gosto de futebol. Não gosto de carnaval. Não gosto de praia.

Não tenho a sociabilidade fácil ou a alegria despreocupada que, dizem os guias de turismo, são as marcas do nosso povo.

Não acredito em Deus. Acho o Cristo Redentor um mostrengo. Torço contra a seleção - porque não consigo torcer a favor de Ronaldinhos e Neymares.

É bem verdade que gosto de pão de queijo e de arroz com feijão, mas acho que isso não me define mais do que o fato de gostar de financier e de confit de canard.

Na verdade, nesse momento, quanto mais eu penso, mais percebo que o que faz de mim um brasileiro é o imenso sentimento de vergonha.

Vergonha de ser cidadão de um país governado por um fascista grosseiro e inepto, que comanda a aplicação de uma política genocida e que nos conduz no caminho de uma catástrofe de grandes proporções.

Vergonha de ser concidadão de milhões de pessoas que são tão estúpidas e tão cruéis que aceitam ser cúmplices disso.

Vergonha de ser de um país que quando viu que havia o risco de se tornar um pouco - um pouquinho só - melhor, fez de tudo para destruir essa possibilidade e mergulhar de volta na violência, na exclusão, no preconceito, no atraso mais abjeto.

Não é a famosa "vergonha alheia". É vergonha própria, vergonha de saber que sou parte disso, porque, afinal, sou brasileiro".

Luis Felipe Miguel, professor da Universidade de Brasília

terça-feira, abril 21, 2020

20 de abril - dia do vinil

Um dos meus vinis de uma das minhas bandas favoritas
Ontem, foi o dia do vinil. Isso mesmo... Existe um dia do vinil. O bolachão já foi um produto vulgar. Cresci com eles. Meu pai era dono de centenas - Amado Batista, Luis Gonzaga, Alípio Martins, Evaldo Braga, Carlos Alexandre... uma incontável plêiade de artistas do brega (a maior parte). Era obrigado a escutar aquelas canções carregadas de um sentimentalismo piegas. Do eu poético que sofre por amor, que idealiza a mulher. Mas, que no fundo, é macho, não dar o braço a torcer. Há um descompasso no brega: ao mesmo tempo que se idealizava a mulher, ela é vista como algo menor em relação à força do homem. 

Quando adolescente, comprava os vinis por cinquenta centavos. Nessa época, comecei a comprar alguns de rock. Já tinha um número razoável de bandas de rock e artistas de que gostava - Led Zepellin, Deep Purple, Man At Work, The Cure, Bob Dylan, Chico Buarque etc. Meu irmão num assomo de loucura (até hoje não discernível) vendeu as minhas dezenas de vinis por módicos trinta reais. Fiquei incrédulo. 

Atualmente, voltou a paixão por tê-los mais uma vez. Compro-os frugalmente. O preço anda nas alturas. Um vinil não sai por menos de cem reais. Estão "gourmetizados". Tornaram-se um produto "cult", inacessíveis, para sujeitos retrógrados - ou, simplesmente, esquisitos.

As novas gerações questionam a importância disso. Com o acesso caudaloso aos "streamings" de música, tipo Spotify, quem se interessa por vinil? É justamente aí que está a questão. Existem certos prazeres que são raros e inexplicáveis. 

Ouvir um vinil está nessa conta. Abri-lo. Tirá-lo do saquinho. Conferir o encarte (verdadeiras obras de bom gosto, a maior parte da vezes). Sentir o cheiro (vinil tem cheiro). Colocá-lo no prato da radiola. Perceber a rotação. Movimentar o braço da radiola. Posicionar o braço no início. Escutar, às vezes, os estalidos. Apreciar o som límpido, com as camadas corretas da música. 

Acima, um dos discos mais importantes da história do rock: "Moving Pinctures" (1981), do Rush. Trata-se de uma obra-prima.

domingo, abril 19, 2020

O deus de Spinoza


Você sabia que quando Einstein deu uma conferência em várias universidades a pergunta recorrente que os alunos fizeram foi:

- Você acredita em Deus?

E ele sempre respondia:

Eu acredito no Deus de Spinoza.

Quem não leu Spinoza não entendia a resposta.

Baruch De Spinoza foi um filósofo holandês considerado um dos três grandes racionalistas do século da filosofia, junto com o francês Descartes.

Este é o Deus ou a natureza de Spinoza:

Deus teria dito:

“Pare de ficar rezando e batendo no peito! O que quero que faça é que saia pelo mundo e desfrute a vida. Quero que goze, cante, divirta-se e aproveite tudo o que fiz pra você.Pare de ir a esses templos lúgubres, obscuros e frios que você mesmo construiu e acredita ser a minha casa! Minha casa são as montanhas, os bosques, os rios, os lagos, as praias, onde vivo e expresso Amor por você.

Pare de me culpar pela sua vida miserável! Eu nunca disse que há algo mau em você, que é um pecador ou que sua sexualidade seja algo ruim. O sexo é um presente que lhe dei e com o qual você pode expressar amor, êxtase, alegria. Assim, não me culpe por tudo o que o fizeram crer.

Pare de ficar lendo supostas escrituras sagradas que nada têm a ver comigo! Se não pode me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de seus amigos, nos olhos de seu filhinho, não me encontrará em nenhum livro.

Confie em mim e deixe de me dirigir pedidos! Você vai me dizer como fazer meu trabalho?
Pare de ter medo de mim! Eu não o julgo, nem o critico, nem me irrito, nem o incomodo, nem o castigo. Eu sou puro Amor.

Pare de me pedir perdão! Não há nada a perdoar. Se eu o fiz, eu é que o enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio. Como posso culpá-lo se responde a algo que eu pus em você? Como posso castigá-lo por ser como é, se eu o fiz?

Crê que eu poderia criar um lugar para queimar todos os meus filhos que não se comportem bem, pelo resto da eternidade? Que Deus faria isso? Esqueça qualquer tipo de mandamento, qualquer tipo de lei, que são artimanhas para manipulá-lo, para controlá-lo, que só geram culpa em você!

Respeite seu próximo e não faça ao outro o que não queira para você! Preste atenção na sua vida, que seu estado de alerta seja seu guia!

Esta vida não é uma prova, nem um degrau, nem um passo no caminho, nem um ensaio, nem um prelúdio para o paraíso. Esta vida é só o que há aqui e agora, e só de que você precisa.

Eu o fiz absolutamente livre. Não há prêmios, nem castigos. Não há pecados, nem virtudes. Ninguém leva um placar. Ninguém leva um registro. Você é absolutamente livre para fazer da sua vida um céu ou um inferno.

Não lhe poderia dizer se há algo depois desta vida, mas posso lhe dar um conselho: Viva como se não o houvesse, como se esta fosse sua única oportunidade de aproveitar, de amar, de existir. Assim, se não houver nada, você terá usufruído da oportunidade que lhe dei.

E, se houver, tenha certeza de que não vou perguntar se você foi comportado ou não. Vou perguntar se você gostou, se se divertiu, do que mais gostou, o que aprendeu.

Pare de crer em mim! Crer é supor, adivinhar, imaginar. Eu não quero que você acredite em mim, quero que me sinta em você. Quero que me sinta em você quando beija sua amada, quando agasalha sua filhinha, quando acaricia seu cachorro, quando toma banho de mar.

Pare de louvar-me! Que tipo de Deus ególatra você acredita que eu seja? Aborrece-me que me louvem. Cansa-me que me agradeçam. Você se sente grato? Demonstre-o cuidando de você, da sua saúde, das suas relações, do mundo. Sente-se olhado, surpreendido? Expresse sua alegria! Esse é um jeito de me louvar.

Pare de complicar as coisas e de repetir como papagaio o que o ensinaram sobre mim! A única certeza é que você está aqui, que está vivo e que este mundo está cheio de maravilhas.

Para que precisa de mais milagres? Para que tantas explicações? Não me procure fora. Não me achará. Procure-me dentro de você. É aí que estou, batendo em você.”

O texto acima, peguei de um compartilhamento do Charlles Campos, feito pelo Facebook

Esse texto pode ser encontrado em um bonito vídeo no Youtube.

sábado, abril 18, 2020

Três textos e uma ideia





V - Há metafísica bastante em não pensar em nada.

V

Há metafísica bastante em não pensar em nada.

O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.

Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).

O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.

Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem?

«Constituição íntima das coisas»...
«Sentido íntimo do Universo»...
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.

Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.

O único sentido íntimo das coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!

(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as coisas,
Não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.

E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?),
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.

Alberto Caiero, um dos heterônimos de Fernando Pessoa. Daqui

terça-feira, abril 14, 2020

"A Aventura", de Michelangelo Antonioni.

 
A Aventura é um filme ítalo-francês, produzido em 1960 e dirigido por Michelangelo Antonioni. As credenciais, talvez, não impressionem a um espectador desavisado. Todavia, ao mencionar o nome do italiano, os sinais de atenção já devem ser ligados. Antonioni foi uma figura importante para o cinema italiano - e, principalmente, para o enobrecimento da sétima arte, elevando-a a um nível filosófico sofisticado e esteticamente impecável. 

De Antonioni, já vi Blow Up - depois daquele beijo, uma obra envolvente e repleta de suspense. Dessa vez comecei a ver a conhecida Trilogia da Incomunicabilidade. Trata-se de três filmes absurdamente densos e belos. O primeiro deles é A Aventura (1960), em seguida segue A Noite (1961) e, o último, O Eclipse (1962). Os três filmes são estrelados pela bela Monica Viotti, hoje, com 88 anos de idade.

Em A Aventura, nota-se uma obra com belas tomadas de cena; ênfase nas imensidões (planícies, mares etc); e a típica beleza e bom gosto italianos. O cinema italiano da época em que a obra foi produzida já havia passado por aquilo que ficou conhecido como "realismo italiano", que colocava em evidência a luta de classes em um estado italiano empobrecido pela Segunda Guerra e metido em um complexo caos político por conta do fascismo. Os filmes buscavam retratar a situação da classe trabalhadora. Um exemplo disso é o belíssimo Ladrões de Bicicleta, de Vittorio De Sica.

A enigmática cena final de A Aventura
Em A Aventura a ênfase é colocada sobre um grupo de italianos ricos. Enquanto nos filmes com a temática do realismo italiano encontramos o drama material, em Antonioni encontramos o drama existencial, ou seja, reflete-se sobre o imponderável e intangível material de que é feito o ser humano. Há angústias impensáveis, impossibilidade de paixão, traição; a insinuação da inconstância do ser humano. O cineasta italiano premia os amantes do cinema com uma obra cujo efeito metafórico é sempre de fuga, sempre de movimento. Os personagens parecem perdidos nas imensidões, nas planícies sugestivas. Há sempre uma busca por algo que nunca se torna presente.

Por fim, Antonioni faz uma crítica à sociedade moderna com seus movimentos tresloucados e incertos, que não levam a lugar nenhum. Aponta sua genialidade para a impossibilidade de concretização da felicidade; para a impossibilidade de comunicação, de acerto. Os outros não estão certos do que querem. Nutrem expectativas vazias sobre aquilo que desejam. Aliás, nem sabem o que desejam.

A Aventura é considerada uma das obras máximas da história do cinema. Comecei a ver O Eclipse.


terça-feira, abril 07, 2020

#forabolsonaro, por Antônio Prata

As teorias da conspiração são o último refúgio dos impotentes. É pra lá que eles fogem, acreditando libertar-se dos grilhões da mentira e da manipulação.

Ali, mocozados em seus terraplanismos, antivacinismos, cultuando seus ETs de Varginha, seus Foros de São Paulo, seus Chupa-Cabras, seus Olavos de Carvalho, suas mamadeiras de piroca, suas tramas da CIA ou da China, os olhos dos “desempoderados” brilham no gozo da verdade revelada.

Como mágica, o homem medíocre a quem os genes, a injustiça social ou a preguiça intelectual condenaram a uma existência de Zé Mané se transforma num Indiana Jones diante do Santo Graal, num Fox Mulder e numa Dana Scully num episódio de “Arquivo X”, num Moisés encarando a sarça em chamas.

As teorias da conspiração são a igreja do homem despossuído, frustrado, alienado, num mundo complexo que ele não compreende e no qual não prospera. São a arminha de mão dos pobres diabos. O Viagra da impotência social.

Quer dizer então que toda a comunidade científica, Harvard e Yale e Oxford e Cambridge e a Organização Mundial da Saúde e a União Europeia e os EUA (democratas e republicanos) e a Angela Merkel e o Bill Gates e os líderes e a imprensa de todos os países do globo estão errados sobre o coronavírus e só Bolsonaro tá certo?

O mundo inteiro caiu num conto do vigário chinês comunista para quebrar o capitalismo e só o capitão reformado do Vale do Ribeira, do alto de seus chinelos Rider, penando para ler “hospital Ualbert Uainstein” no teleprompter, descobriu a farsa?

O que para você, pessoa sensata de direita, de esquerda ou de centro, parece um absurdo completo é justamente o que dá força à teoria conspiratória. Quanto mais alucinante a teoria, maior seu poder epifânico. Quanto mais tosca a figura do presidente, mais longe chega a sua mensagem.

Tem um momento, geralmente no final do primeiro ato dos filmes de terror ou suspense, em que o protagonista tenta convencer os outros de que tem um fantasma na casa ou um monstro na floresta ou que o professor bondoso do jardim de infância é um serial killer. Todos desdenham do protagonista.
Talvez ele acabe num hospício, como Sarah Connor em “O Exterminador do Futuro 2”. A incredulidade geral, porém, faz com que o herói se insufle, cresça, tome uma atitude arriscada e sem volta para combater o fantasma/monstro/assassino e ingressar no segundo ato.

É exatamente no momento Sarah Connor no hospício que Jair Bolsonaro e seu núcleo duro de miolo mole se encontram nesta semana. E a atitude arriscada e sem volta que eles gostariam de tomar para ingressarem no segundo ato com um duplo plot twist carpado é dar um golpe.

Mandar ao STF “um jipe com um soldado e um cabo”. Amotinar as polícias e dar a elas, como disse o então candidato a presidente, “retaguarda jurídica para fazer valer a lei no lombo de vocês!”. “Será uma limpeza nunca vista na história do Brasil.”

Chegou a hora de as pessoas sãs deste país se unirem contra um golpe e contra a carnificina que a insistência deste sociopata em reduzir a quarentena irá causar. Somos nós, de Ronaldo Caiado a Marcelo Freixo, quem temos que gritar com toda a força dos nossos pulmões que há um fantasma na presidência. Um monstro no Planalto. Um serial killer no comando dos jardins de infância.

Depois, quando o pesadelo do vírus e do monstro passarem, cabe aos sobreviventes adultos de todos os matizes políticos repensar o mundo para que nele não haja um exército de excluídos frustrados, humilhados e dispostos a embarcar no primeiro filme de terror que lhes oferecer uma migalha de protagonismo.

Texto publicado no Jornal Folha de São Paulo, em 29 de março de 2020. 


domingo, abril 05, 2020

A arte de esperar pelos ovos

A última reflexão do filme Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (como é conhecido aqui no Brasil), de Woody Allen, é bastante provocante. "Annie Hall" (título original), certamente, é o melhor filme que ele dirigiu; para mim, uma das melhores da história do cinema. Na última cena do filme, o personagem Alvy Singer (Woody Allen), afirma após ter encontrado Annie Hall (Diane Keaton) com quem mantivera um relacionamento de encontros e rompimentos, um instigante e provocante pensamento. O filme é uma excelente e deliciosa reflexão sobre a arte de se relacionar. 

E me lembrei da velha piada, do cara que vai ao psiquiatra e diz:

"Doutor, o meu irmão é maluco. Acha que é uma galinha. "

E o médico pergunta: "Por que é que não o traz de volta a si?".

E ele responde: "Até faria, mas preciso dos ovos".

É mais ou menos o que sinto sobre as relações entre as pessoas.

São totalmente irracionais, loucas e absurdas...

Mas nós vamos aguentando porque precisamos dos ovos.

quarta-feira, abril 01, 2020

"Dois papas", uma importante reflexão

Vi semana passado o filme Dois papas, do diretor brasileiro Fernando Meireles. A impressão que me passou foi das melhores. A produção mescla eventos históricos com ficção. A trama é tão convincente que nos passa a ideia de que tudo que vemos é história, ou seja, aconteceu de verdade.

Nos vinte anos do século XX, quatro eventos foram marcantes na história da Igreja Católica, uma das instituições mais longevas da terra. (1) a morte de João Paulo II (Karol Józef Wojtyła); (2) o pontificado de Bento XVI (Joseph Aloisius Ratzinger); (3) sua renúncia; (4) e o pontificado de Francisco I (Jorge Mario Bergoglio), o papa argentino; o primeiro não europeu da história. A renúncia de Bento gerou grande repercussão pública. Afinal, em poucos momentos da história isso havia acontecido. No período moderno da Igreja Católica, os papas ocupam o cargo até a morte. O último a abdicar da cadeira de Pedro havia sido Celestino V, em 1294. 

O filme enfoca a eleição de Joseph Ratzinger para o papado, após a morte de João Paulo II e a preterição de Jorge Bergoglio. Logo em seguida, há um enfoque na pessoa do argentino e o pedido de sua aposentadoria. Bergoglio é chamado a Roma. Encontra-se com Bento XVI no Castelo Gandolfo, a famosa casa de verão dos papas. Nas conversas que são travadas entre Bergoglio e Bento, nota-se o quanto este, o erudito, filósofo, parece viver uma crise de fé.

É a partir desse encontro que há a explanação de duas visões sobre a fé e sobre o papel institucional da Igreja Católica. Bento é o ardoroso defensor de uma Igreja "pesada", dogmática, preparada para enfrentar os dilemas da modernidade com uma resposta pontual, não fundada em relativismos. Segundo ele, como fica evidente no filme, a perda de fiéis por parte da Igreja é um problema do homem moderno que se deixou dominar pelo pecado, pela corrupção. A Igreja precisa combater de maneira enérgica esses desafios. Bento XVI é uma espécie de Bonifácio VIII, um dos papas que eram defensores do poder temporal da Igreja; defensor de uma igreja pesada, galante, institucionalmente, burocrática.

Por sua vez, Francisco é, como o próprio nome evoca, a voz da simplicidade, da renovação, que está aberta ao diálogo. Francisco é a Igreja que saiu à rua para conversar com os homens e mulheres. Bento é a Igreja trancada em seu gabinete, encerrada em sua frieza, em sua tradição teológico-dogmática. O sucessor de Bento XVI simboliza uma Igreja jovem, disposta a sentar com os jovens. A entender os dilemas políticos e éticos do nosso tempo. As transformações pelas quais tem passado o Planeta, estabelecendo profícuos debates ecológicos. Francisco tem criticado a ganância do capital em detrimento do ser humano.

De certa forma, o filme serve para estabelecer um antagonismo entre Bento XVI e Francisco I. Todavia, não se deve negar que Anthony Hopkins, que representou o papel de Bento XVI, consegue impingir uma face humana, dócil e, às vezes, leve e gentil ao pontífice. 

Trata-se de um filme agradável. Serve para nos fazer refletir as múltiplas possibilidades de um movimento, pois o que se procura enfocar é um cristianismo mais dogmático, encerrado em pesadas sentenças dogmáticas e uma face mais leve e generosa da fé.