Tive a oportunidade de assistir ao polêmico filme “Medida Provisória” de
Lázaro Ramos. A obra estreou comercialmente em abril de 2022. Chamou atenção
pela força do debate que suscita. Afinal, o longa aponta para um dos problemas
mais caros à formação do Brasil – a condição e a posição do negro em uma
sociedade desigual, onde o racismo atua em uma dimensão recôndita dessa mesma
sociedade, dissimulada pelo credo hipócrita de uma suposta democracia racial.
O Brasil ao longo de sua história construiu muros invisíveis de
segregação. A dramática questão da inserção do negro em uma sociedade que conviveu
com a escravidão durante mais de trezentos anos, sempre foi um dilema. Nunca
houve efetivamente uma abolição com o sentido que a palavra exige. A abolição
jurídica não significou uma abolição no campo material e social. Os negros
continuam invisibilizados. São eles os que mais morrem nas periferias. São eles
que ganham os menores salários. São eles que sofrem o drama da falta de
moradia. São eles que ocupam majoritariamente as prisões. São eles que possuem
os menores índices de formação escolar.
A condição do negro em uma sociedade verticalizada como a sociedade
brasileira sempre foi subalterna. O país sempre se mostrou um verdadeiro
caldeirão de impasses e demandas reprimidas. Após a abolição de 1888, a simples
“liberação dos negros” que viviam em condições sub-humanas nas fazendas, não
representou uma resposta à altura para as necessidades desses mesmos atores.
Antes, escravos; agora, livres. O que isso significava? Cada um ficou à sua própria sorte.
Nós, cidadãos do século XXI, não temos ideia de como foi essa passagem.
Antes, um humano em condição subalterna e inferior. Afinal, os negros eram
tratados como animais de carga. Realizavam todo tipo de trabalho pesado. Havia
uma negativa para que nem mesmo os negros lessem ou escrevessem. A força dessa
estrutura cria impedimentos para que o Brasil se torne uma verdadeira
democracia; para que haja um verdadeiro combate às desigualdades seculares que
acometem os mais pobres. Não há como o Brasil avançar sem que resolva a questão
do negro.
Não há como um país construir um projeto de nação sem enfrentar esses
dilemas. Há sempre uma memória saudosa da escravidão. Há no inconsciente coletivo
do país, um olhar que busca criar distinção entre brancos e negros. Como se
existisse uma dimensão valorativa baseada na cor da pele, ou seja, na
quantidade de melanina existente em cada indivíduo.
O filme “Medida Provisória” cria uma distopia tropical. Em um futuro
inominado, após o advento de políticas compensatórias (cotas), o país implementa
uma decisão - via Parlamento – de repatriar os negros (aqueles com “melanina
acentuada ou melaninados) para o continente africano. Vale mencionar que o
filme lida o tempo todo com o intertexto. Há referências constantes a
movimentos ou personagens que fizeram a história do país e que estão ligadas à
história negra do Brasil – Capitu, Machado de Assis, Luiz Gama, Isabel etc. Há
a ainda a referência ao momento político recente, com a referência ao golpe
jurídico-parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff.
A medida provisória é um dispositivo constitucional unipessoal, pertencente
ao presidente da República. A medida tem efeito imediato e é usada para
preencher uma necessidade sobre um tema urgente. A Câmara e o Senado posteriormente
apreciam a matéria da medida, tornando-a em lei complementar ou, isso não
ocorrendo, há uma perda de validade dos seus efeitos. No filme, a medida é
sancionada. Os negros são obrigados a deixarem o país, numa flagrante violação
constitucional. Conforme a Constituição de 88, nenhum brasileiro nato poderá
ser expatriado. Trata-se de um expurgo. Uma medida nazificadora.
As forças policiais entram em ação para prender os resistentes. Quilombos
modernos são formados com a uma nova denominação – “afrobunkers”. Nesses
espaços, estrutura-se um espaço de resistência contra essa medida extrema. Duas
personagens – André e Antônio - ficam em
um apartamento e o drama direcionado a esse eixo do filme busca criar o apelo dramático
da obra.
Após ter visto o filme, fiquei com duas cambiantes impressões:
(1)
O filme é importante por trazer à luz um debate
que precisa ser realizado em uma sociedade altamente seccionada como a nossa. É
preciso erguer um país amplamente democrático e essa construção passa por um
acerto de contas com a história. O filme preocupa-se em estruturar um enredo
que inclua temáticas da negritude, que passam pelas músicas ou pelas
vestimentas, por exemplo. O país possui uma dívida enorme para com os negros.
Ignorar esse fato é desconsiderar a luta de milhões de negros ao longo da nossa
história; é fechar os olhos para as violências que são perpetradas
cotidianamente nas grandes cidades ou nos rincões afastados do Brasil profundo.
O racismo estrutural é uma força que se aglutina nos espaços vários da sociedade
brasileira e que acaba por orientar as relações sociais, políticas,
institucionais do país. O racismo é um cimento posto nas estruturas da sociedade
brasileira.
(2)
Olhando por outra perspectiva, a obra deixou
muito a desejar. Não consegui ficar empolgado. Senti um grande incômodo à
medida que via. O enredo apresenta fragilidades. Há uma profusão de elementos
da cultura negra que são gratuitamente mostrados sem uma mediação. Um
expectador pouco afeito ao assunto, não entenderá os elementos simbólicos
trabalhados na obra. Há a percepção de que alguns temas são trabalhados de
maneira forçada ou descuidada, o que acaba por resultar em um grande clichê.
Essa percepção, talvez, seja oriunda da falta de orçamento. Com um séquito de
participações especiais, ou seja, de pessoas que não são atores profissionais,
algumas atuações são bem ruins. Há como que uma saturação de elementos, mas que
pouco dizem; algumas sutilezas que são insinuadas de forma desconectada. Vale
mencionar que nessa perspectiva, o filme funciona como uma produção para o
sujeito que assiste à obra aponte os problemas do país, mas que não se situe
como cidadão, como alguém que compõe a sociedade que está sendo criticada.
Afirma-se isso pelo fato da intenção crítica do filme não corresponder àquilo
que é prometido. Afinal, o objetivo da obra é propor uma discussão que
problematize o racismo estrutural da sociedade brasileira. A obra fica
comprometida no aspecto dramático. As atuações são fracas ou pelo menos não
conseguem criar suspense, tensão, fazendo com que a experiência de ver o filme não
seja um evento impactante. O filme promete muito, mas entrega pouco. Fica uma
percepção negativa de que esteve, durante uma hora e quarenta, vendo algo
repleto de clichês; barulho sem catarse. A direção frouxa da narrativa cria um
constrangimento – pelo menos foi assim que me senti em alguns momentos: constrangido.
Até mesmo nas cenas de ação, em que deveria haver conflito, tensionamento,
percebe-se que não empolga. A cena final, que demonstra uma perseguição, é uma
das mais acintosamente constrangedoras; daquelas cenas que enrubescem alunos de
ensino fundamental pelo amadorismo na condução.
A opinião final que fica é a de que há uma superestimação da obra. Trata-se de um panfleto político com muito
barulho, mas de um conteúdo mal aglutinado e superficialmente trabalhado.