terça-feira, junho 28, 2022

Algumas palavras sobre "Medida Provisória", de Lázaro Ramos

 

Tive a oportunidade de assistir ao polêmico filme “Medida Provisória” de Lázaro Ramos. A obra estreou comercialmente em abril de 2022. Chamou atenção pela força do debate que suscita. Afinal, o longa aponta para um dos problemas mais caros à formação do Brasil – a condição e a posição do negro em uma sociedade desigual, onde o racismo atua em uma dimensão recôndita dessa mesma sociedade, dissimulada pelo credo hipócrita de uma suposta democracia racial.

O Brasil ao longo de sua história construiu muros invisíveis de segregação. A dramática questão da inserção do negro em uma sociedade que conviveu com a escravidão durante mais de trezentos anos, sempre foi um dilema. Nunca houve efetivamente uma abolição com o sentido que a palavra exige. A abolição jurídica não significou uma abolição no campo material e social. Os negros continuam invisibilizados. São eles os que mais morrem nas periferias. São eles que ganham os menores salários. São eles que sofrem o drama da falta de moradia. São eles que ocupam majoritariamente as prisões. São eles que possuem os menores índices de formação escolar.

A condição do negro em uma sociedade verticalizada como a sociedade brasileira sempre foi subalterna. O país sempre se mostrou um verdadeiro caldeirão de impasses e demandas reprimidas. Após a abolição de 1888, a simples “liberação dos negros” que viviam em condições sub-humanas nas fazendas, não representou uma resposta à altura para as necessidades desses mesmos atores. Antes, escravos; agora, livres. O que isso significava?  Cada um ficou à sua própria sorte.

Nós, cidadãos do século XXI, não temos ideia de como foi essa passagem. Antes, um humano em condição subalterna e inferior. Afinal, os negros eram tratados como animais de carga. Realizavam todo tipo de trabalho pesado. Havia uma negativa para que nem mesmo os negros lessem ou escrevessem. A força dessa estrutura cria impedimentos para que o Brasil se torne uma verdadeira democracia; para que haja um verdadeiro combate às desigualdades seculares que acometem os mais pobres. Não há como o Brasil avançar sem que resolva a questão do negro.

Não há como um país construir um projeto de nação sem enfrentar esses dilemas. Há sempre uma memória saudosa da escravidão. Há no inconsciente coletivo do país, um olhar que busca criar distinção entre brancos e negros. Como se existisse uma dimensão valorativa baseada na cor da pele, ou seja, na quantidade de melanina existente em cada indivíduo.

O filme “Medida Provisória” cria uma distopia tropical. Em um futuro inominado, após o advento de políticas compensatórias (cotas), o país implementa uma decisão - via Parlamento – de repatriar os negros (aqueles com “melanina acentuada ou melaninados) para o continente africano. Vale mencionar que o filme lida o tempo todo com o intertexto. Há referências constantes a movimentos ou personagens que fizeram a história do país e que estão ligadas à história negra do Brasil – Capitu, Machado de Assis, Luiz Gama, Isabel etc. Há a ainda a referência ao momento político recente, com a referência ao golpe jurídico-parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff.

A medida provisória é um dispositivo constitucional unipessoal, pertencente ao presidente da República. A medida tem efeito imediato e é usada para preencher uma necessidade sobre um tema urgente. A Câmara e o Senado posteriormente apreciam a matéria da medida, tornando-a em lei complementar ou, isso não ocorrendo, há uma perda de validade dos seus efeitos. No filme, a medida é sancionada. Os negros são obrigados a deixarem o país, numa flagrante violação constitucional. Conforme a Constituição de 88, nenhum brasileiro nato poderá ser expatriado. Trata-se de um expurgo. Uma medida nazificadora.

As forças policiais entram em ação para prender os resistentes. Quilombos modernos são formados com a uma nova denominação – “afrobunkers”. Nesses espaços, estrutura-se um espaço de resistência contra essa medida extrema. Duas personagens – André e Antônio -  ficam em um apartamento e o drama direcionado a esse eixo do filme busca criar o apelo dramático da obra.

Após ter visto o filme, fiquei com duas cambiantes impressões:

(1)    O filme é importante por trazer à luz um debate que precisa ser realizado em uma sociedade altamente seccionada como a nossa. É preciso erguer um país amplamente democrático e essa construção passa por um acerto de contas com a história. O filme preocupa-se em estruturar um enredo que inclua temáticas da negritude, que passam pelas músicas ou pelas vestimentas, por exemplo. O país possui uma dívida enorme para com os negros. Ignorar esse fato é desconsiderar a luta de milhões de negros ao longo da nossa história; é fechar os olhos para as violências que são perpetradas cotidianamente nas grandes cidades ou nos rincões afastados do Brasil profundo. O racismo estrutural é uma força que se aglutina nos espaços vários da sociedade brasileira e que acaba por orientar as relações sociais, políticas, institucionais do país. O racismo é um cimento posto nas estruturas da sociedade brasileira.

 

(2)    Olhando por outra perspectiva, a obra deixou muito a desejar. Não consegui ficar empolgado. Senti um grande incômodo à medida que via. O enredo apresenta fragilidades. Há uma profusão de elementos da cultura negra que são gratuitamente mostrados sem uma mediação. Um expectador pouco afeito ao assunto, não entenderá os elementos simbólicos trabalhados na obra. Há a percepção de que alguns temas são trabalhados de maneira forçada ou descuidada, o que acaba por resultar em um grande clichê. Essa percepção, talvez, seja oriunda da falta de orçamento. Com um séquito de participações especiais, ou seja, de pessoas que não são atores profissionais, algumas atuações são bem ruins. Há como que uma saturação de elementos, mas que pouco dizem; algumas sutilezas que são insinuadas de forma desconectada. Vale mencionar que nessa perspectiva, o filme funciona como uma produção para o sujeito que assiste à obra aponte os problemas do país, mas que não se situe como cidadão, como alguém que compõe a sociedade que está sendo criticada. Afirma-se isso pelo fato da intenção crítica do filme não corresponder àquilo que é prometido. Afinal, o objetivo da obra é propor uma discussão que problematize o racismo estrutural da sociedade brasileira. A obra fica comprometida no aspecto dramático. As atuações são fracas ou pelo menos não conseguem criar suspense, tensão, fazendo com que a experiência de ver o filme não seja um evento impactante. O filme promete muito, mas entrega pouco. Fica uma percepção negativa de que esteve, durante uma hora e quarenta, vendo algo repleto de clichês; barulho sem catarse.  A direção frouxa da narrativa cria um constrangimento – pelo menos foi assim que me senti em alguns momentos: constrangido. Até mesmo nas cenas de ação, em que deveria haver conflito, tensionamento, percebe-se que não empolga. A cena final, que demonstra uma perseguição, é uma das mais acintosamente constrangedoras; daquelas cenas que enrubescem alunos de ensino fundamental pelo amadorismo na condução.

A opinião final que fica é a de que há uma superestimação da obra.  Trata-se de um panfleto político com muito barulho, mas de um conteúdo mal aglutinado e superficialmente trabalhado.

 

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