terça-feira, maio 29, 2012

Morar em sua própria casa

Vivemos em tempos estranhos. Tempos nos quais os homens são cada vez mais adeptos de comportamentos oriundos de uma moral de rebanho. É curioso como condena-se determinadas práticas, mas essas mesmas práticas são repetidas em gestos inconscientes. Vivemos em meios pródigos de agenciadores ou propugnadores de uma ignorância explícita. Nietzsche chamaria essas pessoas de "filisteus da cultura". O "filisteu" é um tipo baixo, responsável por divulgar valores que rebaixam e mediocrizam. Assim, esses filisteus (a mídia, os líderes religiosos, a escola (sic.), os partidos políticos) são responsáveis por criar de tempos em tempos determinados valores para formarem um "rebanho social".

Hoje cedo, enquanto ia para o trabalho, ouvia dois colegiais conversarem sobre o UFC (Ultimate Fighting Championship). Dialogavam sobre "uma última luta". E o quanto aquilo havia sido importante para um deles. Ficara até altas horas da madrugada esperando o combate medonho entre dois brutamontes. Outro dia me pergutaram: "Você gosta de UFC?". Acabei respondendo indelicadamente: "Não gosto de rinhas de galo". O fato é que não vejo a menor diferença entre o famigerado esporte e as rinhas de animais. Na verdade, os esportistas são "galos vitaminados", prontos a se digladiarem num octógono, ou seja, que é, no fundo, uma "jaula de amimais". 

Após ouvir aqueles dois jovens conversando, bateu-me uma profunda desolação por viver em um tempo no qual os espíritos são decantados por uma necssidade acabrestante. E passei a entender que o sujeito verdadeiramente são precisa "ser solitário" num mundo de "ajuntamentos confusos", de "unanimidades estúpidas" em torno de consensos pífios. 

Num período tão povoado por uma moral de rebanho como o nosso, surge a necessidade de um pensamento autêntico, de uma postura que nos exima dos melindres da mediocridade em todos os sentidos. Lembro de uma frase de Nietzsche (epígrafe de A Gaia Ciência). O filósofo chama a atenção para o fato de que "o sujeito de pensamento" não deve se deixar enredar por supostos valores, mas deve morar "em sua própria casa".

"Moro na minha própria casa,
Nunca imitei ninguém,
Rio-me de todos os mestres
Que nunca se riram de si".
(Inscrição sobre minha porta)


sábado, maio 26, 2012

Para que servem os partidos políticos?


Os Partidos Políticos modernos estruturam-se sob dois princípios internos: enquanto organizações voltadas essencialmente para a indicação e a ocupação de cargos no Estado e/ou como partidos ideológicos. No primeiro caso, como define Weber, seu objetivo “será simplesmente o de, através de eleições, colocar o seu dirigente no cargo de direção, para que ele possa transferir os seus seguidores, isto é, os funcionários e os propagandistas do partido para a máquina do Estado”.

Isto é muito claro, principalmente nos países onde a autoridade governamental centra-se na figura do presidente. Basta considerar a quantidade de cargos do primeiro e demais escalões da administração direta, os cargos em fundações, estatais e outras instituições vinculadas ao aparato de Estado. Pense em sua cidade: quantos cargos o prefeito os vereadores têm em mãos para distribuir entre os seguidores e os aliados de primeira e última hora – sem falar no nepotismo que grassa à esquerda e à direita.

Imagine que você é indicado para dirigir uma secretaria municipal, estadual, um ministério ou mesmo a reitoria de uma Universidade Pública. Quantos cargos de confiança você têm para distribuir?

O outro tipo de partido, o partido ideológico, como a social-democracia do século XIX e início deste século, os partidos comunistas, o partido nazista, etc., são facilmente caracterizados e identificados pela postura política-ideológica diante da realidade vigente. Em geral, são partidos que defendem um projeto político-social de longo alcance, uma alternativa ao sistema capitalista ou a defesa intransigente deste e, em certos casos, têm no horizonte a utopia de uma nova sociedade.

Contudo, não há uma separação rígida entre os dois tipos de partidos. A regra geral é que eles se complementem. O partido ideológico, ao aceitar as regras do jogo determinadas pelas instituições burguesas, como a participação em eleições e no parlamento, também objetiva ocupar cargos no aparato de Estado. Este partido mantêm uma retórica ideológica – socialista ou comunista – mas, na realidade, também disputa o butim e a possibilidade de usufruir dos recursos estatais.

Não esqueçamos os partidos ideológicos puros, isto é, os que não se submetem à atividade eleitoral-parlamentar, caracterizando-a como secundária. Historicamente isto só se mostrou possível à medida que tais partidos se mantenham eleitoralmente insignificantes. Tão logo eles conquistem postos no executivo ou no legislativo viverão o dilema apontado por Przeworski: da integração à ordem burguesa que criticam. Manterão a retórica revolucionária, é verdade. Mas, a prática mostrará o oposto: o apego aos cargos e às benesses advindas da ocupação do Estado. Os que se recusam terminantemente em disputar o jogo eleitoral vivem o paradoxo de representarem a si mesmos. Em geral, transformam-se em seitas messiânicas que autojustificam a própria existência.
Os Partidos Políticos diferenciam-se de outras organizações sociais (como os sindicatos, as associações de moradores, etc.) por um simples motivo: arrogam-se o direito de representação dos interesses universais (diferentemente das instituições que defendem interesses corporativos e/ou particularistas) e buscam deliberadamente a conquista e o exercício do poder político. Um partido político que não se coloque este objetivo é anômalo.

Exercer o poder político significa dispor dos recursos disponíveis para a direção e controle da sociedade, de acordo com os objetivos traçados e os interesses econômicos predominantes que influem e condicionam a estrutura partidária.

Além da busca e preservação do poder, os partidos caracterizam-se por se constituírem enquanto organizações cuja existência é geralmente posterior à dos seus dirigentes; pelo fato de estabelecerem uma rede de relações entre os organismos locais, regionais e nacional; e, pela constante preocupação em angariar o apoio popular, seja pela via eleitoral ou de outra forma.

Evidentemente, à maneira do Estado, os partidos precisam aparecer para a massa dos eleitores enquanto defensores dos interesses genéricos e indistintos da comunidade. Nenhum partido cometerá a loucura de afirmar-se defensor dos interesses econômicos dos banqueiros, latifundiários e grupos dominantes. Seus programas políticos defendem, genericamente, o bem comum: saúde, educação, emprego, segurança, etc.

Falam em nome do povo e dos trabalhadores. O discurso se sobrepõe à realidade, à sua história e de suas lideranças; escamoteiam até mesmo sua composição de classe social; adotam nomes que anunciam promessas que nunca serão cumpridas e as siglas escondem seus reais interesses. Em seu propósito de convencer os eleitores e conquistar a legitimidade, utilizam de todos os procedimentos e recursos: fazem planos econômicos à véspera das eleições, mudam a legislação eleitoral de forma casuística, compram o voto, pagam cabos eleitorais, gastam milhões em campanha, disputam os melhores publicitários, os mais capazes em iludir a todos através dos recursos midiáticos.


Os partidos políticos arrogam-se ainda o privilégio de serem os mais importantes, senão os únicos, portadores da ação política coletiva. Fora deles, a política parece não existir. Todos somos obrigados a canalizar nossas expectativas para a instituição partidária – principalmente em épocas eleitorais. Abdicamos da ação política direta e da possibilidade de construção de novos tipos de organizações associativas em nome da representação – concedemos nosso poder de decisão a uma organização totalmente fora do nosso controle ou, o pior, confundimos Política com política partidária.

Por outro lado, vendem-nos a ilusão de que o poder reside essencialmente no ato de votar e não nos interesses e no poder econômico subjacentes ao processo eleitoral e aos vínculos obscuros no pós-eleição. O ilusionismo das campanhas eleitorais nos induzem à aceitação das promessas mirabolantes e das realidades virtuais, ampliando-se assim o fosso entre a realidade objetiva do eleitor-indivíduo e as instituições e políticos que se propõem a representá-lo.

Felizmente, este indivíduo-eleitor tem a capacidade da apreciação e não lhe é difícil verificar que o discurso não corresponde à prática. Infelizmente, já será tarde: o candidato eleito já se entronizou em seu posto de representação, no qual reinará absoluto, pelo menos até a próxima eleição.

Desacreditados e suportados como o mal menor, os partidos e os políticos sobrevivem. Num regime democrático sua função primordial é garantir a seleção de dirigentes, a elite – ou a contra-elite – que governará os nossos destinos. Uns ou outros serão menos ou mais democráticos. Em qualquer caso, nos reservarão o papel de coadjuvantes.

A democracia, mesmo que limitada e adjetivada, favorece o desvendamento das contradições e dos antagonismos escondidos sob a retórica da ordem e do bem comum. Na democracia, os partidos e os políticos são obrigados a se exporem, a dizerem minimamente pelo e para que vieram, condição essencial para garantir o suporte popular em épocas eleitorais.

Também devemos considerar que eles desenvolvem mecanismos de dissimulação. De qualquer forma, é preferível a existência os partidos e das suas disputas – ainda que mesquinhas – à ditadura dos generais de plantão ou do partido único portador da verdade absoluta.

Referências
PRZEWORSKI, Adam. Capitalismo e Social-democracia. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
WEBER, Max. Parlamento e governo na Alemanha reordenada: crítica política do funcionalismo e da natureza dos partidos. Petrópolis, Vozes, 1993.

Daqui

sexta-feira, maio 25, 2012

Que maravilha! "Filósofo meditando" - de Rembrandt

Mais do que um simples pintor, Rembradt foi um extraordinário psicólogo. O seu quadro Filósofo meditando (de 1632) é uma das obras mais laureadas de todos os temois. O pintor holandês consegue fundir uma série de impressões e elementos filósoficos por meio de símbolos na pintura. O aspecto mais curioso é a focalização da intimidade de um pensador. Seu dilema. O olhar vago. Perdido em possibilidades e abstrações. A escada em espiral, constituindo uma espécie de fuga, de viagem mental que leva ao infinito. A luz e a sombra a se beijarem, a constituírem um entrelaçamento como se fossem um redomoinho. 

No centro, um pequena porta fechada. O que ela abriga? Quais segredos velados ou possibilidades de descobertas esconde? A porta representa o mistério. O inconsciente e suas feições informes. O mistério. O insondável. O filósofo, de olhar baixo, contempla as mãos num gesto de abandono e seriedade. 

Em contraste, uma luz rala, diáfana, penetra o interior do espaço, doura as paredes de madeira. Ilumina o filósofo e sua mesa de traballho. Seria a razão, capaz de tornar clara todas as coisas em meio às trevas do não conhecimento? Um contraste se firma no interior do espaço, pois uma mulher em sua atividade diária manipula um braseiro. O labor diário é um contraste à atividade filósofica, que exige tempo e percepção das realidades aprisionadas no interior escuro da mente, por isso, o filósofo mergulha em si, iluminado pela luz da razão.

A espiral da escada é um centro em movimento, que sobe e desce. Na quietude da cena, esse dinamismo encarna as meditações do filósofo, que por fora mostra placidez, mas que, quiça, em sua interioridade, guerras estejam sendo travadas. Nietzsche diria mais tarde que o homem consciente de si e do mundo é um campo de batalhas. A proporção das personagens humanas em contraste com o cenário intensifica a tônica de sensação de interioridade. A metáfora é clara: o homem mergulhado na escuridão, no seu lado obscuro e desconehcido, busca com a rutilância da razão, entender a si mesmo num mundo vasto e misterioso.

Rambradt era um mestre extraordinário. Quadros como Filósofo meditando, A festa de Baltasar ou A volta do filho pródigo atestam a sua genialidade.

quinta-feira, maio 24, 2012

Devaneios - "Que é a verdade?" (Pôncio Pilatos)

Os homens morrem e matam por causa de supostas verdades. Mas o que é a verdade? Diz Nietzsche que uma das perguntas mais sensatas que já foram produzidas está na bíblia, naquele episódio protagonizado por Cristo no momento de seu julgamento pelas autoridades judaicas e romanas. Ao receber Cristo em seu palácio, Pilatos fez a seguinte pergunta: "Que é a verdade?". Tal pergunta revela o espírito da filosofia. O espírito que rege a natureza da existência dos homens. Ora, corroborando com essa inquirição de Pilatos, há alguma verdade? Ou vivemos num mundo de juízos criados por meio de convenções linguísticas? O que é, nesse mesmo sentido, a mentira? 

Não existe uma verdade ou verdades. Toda a contigência é resultado de uma interpretação. Nesse sentido, não há fatos. Somente interpretações, porque as supostas verdades não são coisas em si. O que o homem chama de verdade é, no fundo, a cristalização de um conjunto de códigos que se transformam em consolo psicológico. Enquanto entes que vivemos imersos no devir, somos acometidos pela fatum, em linguagem nieztscheniana. Ou seja, pelo movimento inexorável da vida. O homem não aprendeu a viver com esse fatum e com a possibilidade do sofrimento. Com isso, é necessário inventar para si um "sentido" para que o sofrimento faça sentido em sua existência, no qual o grande absoluto é o movimento. 

Verdade é a própria realidade em que vivemos. Isso é verdade. A natureza é a verdade. O conceito de história, de direito, de verdade, de mentira, são invenções humanas para dar sentido à sua busca por uma âncora onde deposite as suas angústias. Ninguém deve arrogar para si a pretensão de ter a verdade. A verdade não é propriedade de ninguém, porque ela não é algo em si. 

Erigimos nessa luta uma realidade fundada em dualismos - preto e branco, saúde e doença, bem e mal, realidade e aparência. Os julgamentos que fazemos propendem para um lado, pois entedemos que somente um lado da moeda da vida possui uma figura a ser considerada. Aquilo que não se encaixa nessa categoria não é. Em sentido nietszcheniano o corpo é a grande razão. Todos os segredos e potências estão nele adormecidos. O sentido do mundo é construído pela linguagem. A palavra expressa o conceito e o conceito expressa a avaliação, um modo de ver, uma perspectiva.

Quando avaliamos a religião, verificamos que o conteúdo metafísico e espiritual que ela alega carregar não é algo em si. É construto. É a sedimentação de uma linguagem. De metáforas. De metonímias. De símbolos que abrigam a ausência daquilo  mesmo que diz ter e abrigar. Crer é depositar fé em algo que não é, mas que torna-se na força daquilo que digo crê. Então quando digo crê, não creio em algo externo a mim, alguma realidade que é algo em si - absoluto, eterno, guardador da moral etc. Creio numa linguagem que ganha lógica, sentido e coerência por causa da linguagem criada como elemento que passa ser, sem que de fato seja. Então cremos naquilo que criamos. Na força vazia de uma crença que nada é senão força sem conteúdo. 

Para finalizar cito Nietzsche e seu texto Sobre verdade e mentira no sentido extramoral:

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como mtal, não mais como moedas.

quarta-feira, maio 23, 2012

Aceitar a vida como movimento

É curioso e ao mesmo tempo espantoso ler um filósofo como Nietzsche; ou ler a respeito de um filósofo como Nieztsche. Os textos do alemão possuem tanta força, fúria e beleza, que até mesmo quando escrevem sobre ele, sentimos por tabela as marteladas das frases a quebrarem aquelas paredes enormes que a cultura do senso comum construiu em nós. Lendo o opúsculo de Mauro Araújo de Sousa (Nietzsche: viver intensamente, tornar-se o que é), encontrei uma frase do bigodudo que encheu a minha alma de um entusiasmo atômico. De repente, senti-me o ser mais vivo e perceptivo do mundo. Na tarde fria de Brasília, enquanto caminhava para um compromisso de início de noite, a afirmação do filósofo me fez entender (mais uma vez) o quanto é bom viver; o quanto é bom existir; ser o que se é; afirmar a vida em todo tempo; não ressentir-se. Nietszsche é um filósofo da vida. Fala o filósofo por intermédio do seu Zaratustra:

"Tudo vai, tudo volta; a roda da vida gira sem cessar. Tudo morre; tudo volta a florescer; correm eternamente as estações da vida. Tudo se destrói, tudo se reconstrói, eternamente se edifica a mesma casa da existência. Tudo se desagrega, tudo se saúda outra vez; o anel da vida conserva-se eternamente leal a si mesmo. A todos os momentos a vida principia; ao redor de cada aqui, gira a bola acolá. O centro está em toda parte. O caminho da eternidade é tortuoso".

Ou seja, a única novidade da vida, a única regra, a única verdade, o único absoluto que nos conduz é o movimento. Somos a eterna novidade da vida. Não há obstáculos ou está acima do bem e do mal aquele que aceita a potencialiadora realidade do movimento. Dizer sim à vida é aceitar a diversidade da mesma.

quinta-feira, maio 17, 2012

Uma caixa com sabor ibero-americano

Hoje cedo, ao sair para trabalhar, por volta de seis horas da manhã, o porteiro do prédio onde moro afirmou que havia uma encomenda para mim - na verdade duas! A primeira: um livro de Julio Cabrera (Projeto de Ética Negativa) que comprara há alguns dias ; o segundo: uma caixa com 25 livros da Coleção da Folha - Literatura Ibero-Americana. 

Não regressei para levar o material para casa. Estava em cima da hora. Teria problemas se me detivesse em outras situações. Mas um prazer silencioso se apoderou de mim. Fiquei lembrando a caixa o dia todo. Dentro, 25 volumes de mundos silenciosos, com lombadas roliças e aquele cheiro característico de livro novo.

Por volta das cinco da tarde, ao sair do trabalho, fui esperar minha esposa em um shopping aqui da cidade e, enquanto esperava, acabei indo a uma livraria. Exercício para viciado que fica por horas e horas olhando aquelas lombadas coloridas nas prateleiras. Deti-me numa coleção da José Olympio. E fui fisgado por Hermann e Hesse e Virginia Woolf. Acabei trazendo a inglesa. Gostei de Cenas Londrinas, um livro de crônicas gestadas a partir do olhar da autora de Mrs. Dalloway. Material curto. De 70 a 80 páginas com aquele estilo lancinante da autora inglesa. 

Ao chegar ao prédio onde moro, peguei a caixa e subi feliz. Quando abri a caixa, encontro os livros de autores do mundo latino. Ou seja, aquele mundo ligado por laços históricos e linguísticos - Espanha e Portugal e a galáxia de países da América Latina. Dos 25 livros, possuía apenas dois títulos: As meninas, de Lygia Fagundes Telles e O túnel, de Ernesto Sábato. Alguns outros títulos eu pretendia ler como, por exemplo, Cinzas do Norte, de Milton Hatoum; Suícidios exemplares, de Vila-Matas; Memória de Elefante, de António Lobo Antunes; e Repiração Artificial, de Ricardo Piglia.

Há outros nomes importantes na coleção: Saramago (Ensaio sobre a lucidez); Borges (O livro de areia); Onetti (47 contos de Juan Carlos Onetti);  Roberto Bolaño (Estrela distante). Em suma: estamos diante de um grande empreendimento. Algo realmeente desafiador. 

Os livros são bem encadernados. Possuem capa dura, o que nos dá a impressão de uma edição de luxo. Os desenhos foram bem escolhidos. Realmente de boa qualidade. Penso que a Folha ao publicar estes livros nas bancas, queira se aproveitar do mote do momento: a literatura produzida nos países de origem latina está em alta. Esta semana, morreu o mexicano Carlos Fuentes. Os noticiários anunciaram o acontecido. Achei curioso tal fato. Isso apenas mostra que vivemos um momento em que os escritores desses países se estabeleceram. Porque os países da América Latina eram subdesenvolvidos, achava-se que a literatura também era subdesenvolvida. Em outros tempos, se achava que os bons autores tinham a sua origem no eixo Europa/Estados Unidos. Isso mudou.  Descortina-se um outro cenário.

Para a nossa sorte!

quarta-feira, maio 09, 2012

Breve comentário a uma leitura inicial de A Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire

Quando Paulo Freire escreveu os seus primeiros trabalhos, o contexto mundial era de Guerra Fria. O mundo estava dividido entre americanos e soviéticos. Mesmo com essa divisão, criou-se a ideia de Primeiro Mundo e Terceiro Mundo. O Primeiro Mundo pertencia àquelas nações ricas, desenvolvidas. O Segundo Mundo pertencia aos países socialistas, que não faziam parte do Primeiro Mundo, mas também não poderiam ser classificados como de Terceiro Mundo. E, por fim, do Terceiro Mundo fazia parte aqueles países probres, nos quais as desigualdades sociais e econômicas eram alarmantes. 

A reflexão de Freire tem por finalidade refletir sobre a massa de opressos que vivia à margem nesse chamado Terceiro Mundo. Que eram explorados e consentiam com isso. Por conta disso, ele chamou um dos seus livros (que estou lendo nesse momento) de A Pedagogia do Oprimido. Seu discurso era direcionado aos oprimidos - embora também ao opressor. Analisando o seu texto (docemente poético e ao mesmo tempo visceral porquê trágico), nota-se o quanto permanece atual a reflexão feita no final da década de 60, enquanto estava exilado no Chile. Paulo Freire sempre buscou, dialeticamente, entender a condição do marginalizado, daqueles que nada são e que foram "proibidos de ser".

Gostaria apenas de citar um trecho de A Pedagogia do Orpimido: "Há, por outro lado, em certo momento da experiência existencial dos oprimidos, uma irresistível atração pelo opressor. Pelos seus padrões de vida. Participar destes padrões constitui uma incontida aspiração. na sua alienação querem, a todo custo, parecer com o opressor. Imitá-lo. Seguí-lo. Isto se verifica, sobretudo, nos oprimidos de "classe média", cujo anseio é serem iguais ao "homem ilustre" da chamada classe "superior"".

Notável síntese. Freire fala de uma violência trans-histórica de sedimentação de uma lei, pois "esta violência, como um processo, passa de geração a geração de opressores, que se vão fazendo legatários dela e formando-se no seu clima geral. Este clima cria nos opressores uma consicência fortemente possessiva. Possessiva do mundo e dos homens. Fora da pessoa direta, concreta, material, do mundo e dos homens, os opressores não se podem entender a si mesmos. [...] Daí que tendam a transformar tudo o que os cerca em objetos de seu domínio. A terra, os bens, a produção, a criação dos homens, os homens mesmos, o tempo em que estão os homens, tudo se reduz a objeto de seu comando. Nesta ânsia irrefreada de posse, desenvolvem em si a convicção de que lhes é possível transformar tudo a seu poder compra. Daí a sua concepção estritamente materialista da existência. O dinheiro é a medida de todas as coisas. E o lucro, seu objetivo principal".
Sigamos com a leitura do texto freiriano!

Abaixo, dois vídeos que trazem uma entrevista concedida por Freire em 1997, ano de sua morte.

sábado, maio 05, 2012

Letras esparsas sobre Monsieur Pain de Roberto Bolaño

Roberto Bolaño é a sensação literária do momento. Todos aqueles que se intitulam bons leitores ou curiosos vorazes da literatura já o leram, estão lendo ou fazem projetos para lê-lo; ou também aqueles leitores diletantes e curiosos (meu caso), que tendo uma dívida enorme com o conhecimento da literatura, vão se apropriando tardiamente das novidades do universos mágico do texto literário. Não é para menos. Bolaño é viciante. Diga-se de passagem que ele resgata o lado selvagem da literatura. O lado underground de uma boa narrativa. O chileno consegue fazer um belo coquetel com o estilo borgeano e com Poe, com aquele tipo de texto eivado de mágica onírica e habilidade lancinante para descrever episódios.

Em Monsieur Pain, primeiro livro a que tenho acesso do escritor de 2666 (Raquel de Queiroz o chamaria de cartapácio) e Detetives Selvagens, reparei na beleza dos diálogos. Bolaño parece subverter aquela imagem de Paris como a "cidade das luzes", a cidade da arte; a sempre bela Paris, arrebatadora de gestos apaixonados. O livro escritor por Bolaño como um ensaio literário ainda no início da década de 80, possui uma atmosfera noturna, com becos asfixiantes, uma trama policialesca digna dos grandes escritores ingleses. Pain, o personagem principal da obra, é vítima de uma conspiração e acaba oscilando entre pensamentos filósoficos e terrores aziagos.

A Paris de Pain é aquela do final da década de 30. É Paris de chuvas intermitentes, de noctívagos contumazes. A narrativa nos apresenta ruas estranhas, perseguições, personagens enigmáticos, caminhos tortuososos e bares incidentais onde os personagens se enveredam por conversas habitadas por mistérios, sendo que logo em seguida após o sono da personagem Pain, segue-se o despertamento sempre permeado por uma atmosfera de suspeita de sonho. O clima de perseguição psicológica me faz lembrar de Kafka em O Processo.

Em suma: Bolaño constrói uma narrativa visceral, como na descrição da cena de um galpão abandonado, uma das melhores passagens do livro. A descrição apurada oscila entre o real e o inversossímil. Simplesmente fantástico. Faz suspender a respiração. As pitadas velozes da descrição, mete-nos a impressão de que estamos ali com a personagem.

No dia em que comprei Monsieur Pain na Livraria Cultura, também adquiri Chamadas Telefônicas. Minha intenção era comprar Detetives Selvagens. O vendedor disse-me que na loja não havia nenhum exemplar.  Mas não faz mal. Não foi de todo ruim. Próximas aquisições de livros do mestre chileno: 2666, Putas Assassinas e Detetives Selvagens


Indico ainda como suplemento para que se conheça um pouco mais sobre Monsieur Pain, o comentário escrito por Charlles Campos, sujeito que conhece literatura de maneira profunda. Cada texto que leio do Charlles percebo o quanto preciso me apronfundar nesse universo mágico, no qual Bolaño é um mestre incontestável. Outro leitor voraz de Roberto Bolaño é Cassionei Petry.


quinta-feira, maio 03, 2012

Na natureza selvagem - uma viagem em busca de liberdade

Na natureza mais selvagem não há apenas o material da mais cultivada das vidas e uma espécie de antecipação do resultado final, mas também um refinamento maior do que o homem jamais conseguiu alcançar".
 Henry David Thoreau

Em 2007, o ator e diretor Sean Penn, escreveu o roteiro e dirigiu o filme Na natureza selvagem, baseado no livro homônimo de John Krakauer, que conta história real de Christopher McCandless que se autodenominou de Alxander Supertramp. Assisti a esse longa-metragem na noite de segunda-feira. Mais de duas horas e meia de uma trilha sonora belíssima, escrita por Eddie Vedder, vocalista da banda Pearl Jam, e de cenas de tirar fôlego. Na natureza selvagem já era um projeto antigo. As pessoas que me haviam indicado o filme o fizeram mais pelo lado estético. Não chegaram a reportar o lado filósofico.

A obra nos lança um debate sobre relação entre vida social e vida natural. O filme é acima de tudo uma viagem ao interior do mundo de McCandless, um jovem rico, de uma inteligência brilhante e inquieta, que larga tudo e se refugia no coração gelado do Alaska e acaba morrendo de inanição. Tal saga tinha por finalidade o delineamento de experiências que deixassem de lado a ganância, a desistabilidade familiar e todo séquito de fatores mesquinhos. McCandlesse constrói um sonho e esse sonho passa a ser a sua grande busca. É necessário viver para aquilo o qual o coração faz pulsar.
Foto do próprio McCandless

O jovem McCandless poderia ser o que ele quisesse. Todavia, a sua grande escolha foi a liberdade. Fica no muito claro na obra, que as suas andanças, aventuras e perquirições buscavam tornar a liberdade um elemento vital. No final da obra, Mc Candless entende que tal sentimento somente tem razão de ser quando proporciona felicidade. "A felicidade só é real quando é compartilhada" - afirmação do próprio McCandless. Felicidade só pode ser felicidade quando vivida ao lado do outro. Ou seja, o outro é a porta dimensional capaz de me levar a experimentar a felicidade como projeto existencial.

O personagem encenado pelo talentoso Emile Hirsch é alguém atraente. Pródigo de ideais. É uma personalidade rebelde. Uma espécie de Thoreau moderno, inadaptado às intenções pequenas e condicionantes do capitalismo. Ele se insurge contra as premissas dos pais, que querem fazer dele um homem médio - desses que andam no fluxo da história; fazem o que todos fazem e acabam fenecendo como reles mortais. McCandless anda na contramão dessa lógica da domesticação. Busca viver no seio da natureza. Lendo Thoreau, os textos morais de Tolstói e, acima de tudo, Jack London (outro viajante inquieto), McCandless acende uma flama em seu coração. Experimenta por mais de 4 meses essa solidão que o remete à liberdade tão sonhada.

Emile Hirsch, no papel de Christopher McCandless
Não contava com o fato de que a lógica da natureza é a imparcialidade. Que ela não está condicionada aos romances. Como disse certa vez o próprio Henry David Thoreau: "A natureza é lenta porém segura; ela é a tartaruga que ganha a corrida pela perseverança". Essa mesma natureza que o personagem ama, é inamistosa. McCandless acabou morrendo de inanição. Ao tentar sair do seu carro-abrigo e procurar auxílio, é supreendido pelo degelo e engrossamento das águas de um rio. Não pode atravessar e aquilo resultou em cerceamento. Após ter voltado, ficou sem comida e teve que se alimentar de ervas. Infelizmente ingeriu uma planta que possuía propriedades venenosas e aquilo resultou em algo que o debilitou até a morte.

O filme nos lança uma importante reflexão intimista. Tudo é feito para nos silenciar. A música gravosa de Eddie Vedder. As cenas de uma América pouco conhecida. Uma América sem o establishment que a constitui. Uma América formada por longas estradas, canyons, rios, hippies e toda uma gama de atores que buscam um outro estilo de vida. A busca existencial e espiritual de MacCandless é corroborada pela frase: "Ao invés de amor, de dinheiro, de fama, de justiça, dê-me a verdade”. O jovem "Supertramp" (algo como "super andarilho") era um inquiridor. Todo aquele que se empenhe em achar o que é a verdade, necessariamente, chegará ao limiar dos portões da liberdade. Foi para isso que McCandless viveu.

Uma das faixas que serviram de trilha sonora para o filme. No vídeo, algumas imagens sobre McCandless.

 

terça-feira, maio 01, 2012

Graciliano Ramos e o "valor enorme das palavras"



Graciliano Ramos é um mundo vasto, mas medido pelas palavras. Da afirmação encontrada em Infância, autobiografia mesclada com elementos fictícios, de que o autor percebeu "o valor enorme das palavras", resta uma explicação para a sua obra tão ajustada, tão arrojada, como aquelas prensas utilizadas pelos nordestinos para tirar o veneno da mandioca e preparar farinha. Graça, como era conhecido pelos mais íntimos, coseu cada vócabulo como estivesse produzindo um tecido raro, medido, para o baile perfeito da literatura. Cada palavra é um tijolo de sustenção, capaz de estruturar magicamente cada um dos seus livros. Se uma palavra for extraída dessa grande estrutura, todo o restante vem abaixo. Nada se torna prescindível. Tudo está lá, posto. A argamassa de Graciliano é a literatura.

Descobri Graciliano Ramos quando estava no final do ensino médio. Ainda lembro do primeiro livro que li: São Bernardo, para mim, a sua obra mais visceral. A introspecção-reflexão de Paulo Honório no último capítulo, não perde para nenhum autor de qualquer lugar do mundo. Aquilo é de fazer chorar. Logo em seguida veio Vidas Secas, o popular tornado em elegante e erudito; e, Memórias do Cárcere, livro que me abriu olhos, deixou-me com uma impressão de que precisava daquele mundo. Em Memórias do Cárcere, percebi o peso de cada uma das palavras. Se em Vidas Secas e São Bernardo houve a preocupação com o sentido da leveza de cada uma das palavras que, juntas, constroem o peso de uma literatura capaz de aturdir, em Memórias do Cárcere a crueza e o ceticismo-realista úmido de cada palavra, lança-nos num mundo de injustiças, caos e na bárbarie dos bichos acossados pela insânia do governo getulista. Em logo em seguida, ainda no ensino médio, li Angústia. O romance me fisgou por completo. O retrato do mofino Luis da Silva dá a Graciliano, o epíteto de "dostoiévski do sertão". Crime e Castigo à brasileira.

A despeito de não ter lido apenas Viagem, conheço o restante das obras do escritor alagoano. Graciliano é uma paixão. Na minha humilde concepção, um dos maiores escritores do século XX aqui no Brasil. Citaria ainda Clarice Lispector e Guimarães Rosa para formular a tríade perfeita da literatura brasileira. O homem do sertão e de alma com impressões agrestes; de fala parca; de gestos sóbrios. Ateu. Indiferente à música. Fumante inveterado marcou a literatura. O filho biógrafo Ricardo Ramos uso o termo "rompante" para descrever esse fenômeno. Ou "diapsão alagoano". O filho privilegiado, que conviveu com o escritor durante pouco mais de vinte anos, afirma que viu o pai chorar apenas em dois episódios: (1) quando do suicídio do filho Márcio; e (2) e a outra foi na ocasião da morte de Stálin, no ano de 1953. 

Este ano, o mundo comemora 120 anos dos nascimento de Graciliano Ramos. Um dos escritores brasileiros mais respeitados do mundo.

Depois comentarei o livro Graciliano - Retrato Fragmentado, de Ricardo Ramos, que chegou à sua nova edição.