Dou aula há dez anos. Há quem fique dez, vinte, trinta ou mais anos nessa
profissão. Não pretendo ficar por tanto tempo. A profissão docente é repleta de
sabores múltiplos. Há aqueles doces, de uma pureza sofisticada; mas, há aqueles
que divergem da doçura por serem azedos ao extremo. Pretendo falar um pouquinho da minha relação com alguns professores inesquecíveis.
Ao longo de minha jornada como estudante, eu tive a oportunidade de
encontrar com professores e professoras para as quais eu pagaria um valor
altíssimo para ter a oportunidade de ficar mais próximo; de passar uma tarde a
conversar com eles. Admirava-os (e os admiro ainda hoje, embora o tempo insista
em criar camadas de afastamentos). Tenho o costume de reverenciar, de nutrir
grande respeito por pessoas admiráveis. E muitos professores com os quais eu
cruzei ao longo de minha jornada como estudante, inseriram-se nessa categoria.
Nos anos iniciais, recordo-me da Marli, da
Geovanete, da Suely, da Soraia - por quem me apaixonei na 2ª série). As paixões
fazem parte dessa fase. Ela era professora de artes. Encontrava-me com ela uma
vez por semana, às terças-feiras. Era pouco. Durante as aulas, ficava
embevecido. Seus longos cabelos pretos. Sua voz melodiosa. Seus trejeitos tão
singulares. Os ademanes da caminhada. Ainda posso vê-la. Ia para casa de
ônibus. Um certo dia, resolvi verificar onde ela morava. Peguei o mesmo ônibus
em que ela estava. Passei por baixo da catraca. Aboletei-me na última cadeira da
condução. Ela ficou à frente, próxima ao cobrador. Certamente, ela me viu. Ignorou-me. Não disse
nada.
O ônibus seguiu a sua viagem. Ao
chegar ao Centro de Taguatinga (Região Administrativa do DF), vi que ela se levantou.
Passou por mim; nem olhou. Desceu do ônibus. Misturou-se à aglomeração de
transeuntes. Sumiu no rio de pessoas como uma flor delicada que é empurrada pela correnteza. Fiquei distante a olhar. Voltei para casa
após esse episódio arqueológico e nem consigo divisar o que pensava. Ao encontrá-la
na escola em um dia qualquer, ela disse: “Oi! Carlos!”. Fiquei sem palavras, inexpressivo,
como é comum à minha pessoa em inteirações sociais.
Ao chegar à antiga quinta série,
encontrei uma fauna docente bastante diversa. Havia professores que ensinavam
bem; outros, nem tanto. Recordo-me de um professor de ciências cujo tom
histriônico ficou impresso em minha memória. Suas aulas eram divertidíssimas.
Ele se vestia sempre com roupas sociais – camisa social, calça social, sapato
social. Parecia um corretor de imóveis com a sua valise escura. Fisicamente era
magro e baixo; usava óculos. Fazia lembrar o político Éneas pela calvície. Sua letra era milimetricamente desenhada. Seus
esquemas coloridos feitos no quadro, beiravam à perfeição. Da minha cadeira, eu prestava
atenção. Ele começava a falar de moléculas; de processos químicos; de
transformações gasosas. De repente, fazia uma careta. Simulava gestos teatrais.
Saía da sala. Ficávamos rindo. Algum tempo depois, voltava como se nada tivesse
acontecido e nos empurrava para frente em sua jocosa viagem científica.
Nessa mesma escola, havia uma professora
cuja fama era das mais atrozes. Os alunos tinham medo dela. Ouvia a fama dela;
punha a imaginação para funcionar. Ela parecia se alimentar dessa horrenda
ressonância social. Na sexta série, tive o infortúnio de cruzar com ela. Era
professora de ensino religioso. Quando a vi pela primeira vez, observei-a. Sua
fama consolidou-se numa determinada aula. A sala não parecia um espaço de
aprendizagem sobre as coisas divinas. Estava mais para um tribunal da
inquisição. Não havia liberdade para falar. Todos alunos ficavam tensos.
Perfilados marcialmente, reduzíamo-nos. Apequenávamo-nos.
Transformávamo-nos em coisinhas
insignificantes. Um olhar dela, congelava a alma. Parecia possuir um chicote de
fogo nas mãos. Era magra. Um cocó no alto da cabeça. Usava uma dentadura
amarelecida pelo tempo. Não sei se era tabagista. Quando falava, tinha a
impressão de que a prótese dentária dançava em sua boca magra e babosa.
Um colega olhou para o lado. Ela
saiu do seu lugar, movimentou-se célere. Disse, olhando para o infeliz, que se
comprimia na cadeira: “Por que você não põe uma melancia na cabeça!” “Está
querendo aparecer?” Essas frases foram proferidas de uma maneira torrencial.
Havia tempestades em seus olhos. Uma camada metálica em sua voz. Reduzi-me em
minha cadeira. Sua pedagogia era a do pavor, do medo. Ela ficou como exemplo
negativo daquilo que um professor não deve ser. Não sei aonde ela está. Aposentou-se?
Seu filho estudava na mesma
escola em que eu estudava. Vestia roupas compridas em pleno calor. Usava
óculos. Ficava pelos cantos a ler a Constituição de 88. Olhava para ele. Tentava
decifrá-lo. Ele era um para-raios; certamente, as borrascas inflamadas de sua mãe
caíam sobre o seu corpo pequeno e mofino. Sua mãe era professora de religião. Mas era
uma religião draconiana. Não a de Cristo.
No ensino médio, encontrei
outras figuras exóticas, singulares. Havia um professor de literatura que me
fazia pensar nos textos de Nelson Rodrigues. Um toque de sátiro pulava de suas
falas em certos momentos. Tratava-se de figura bastante cômica. Agradável. Era
poeta. Tinha livro lançado. Membro da Academia Taguatinguense de Letras, fato
que insistentemente surgia em conversas. Às segundas-feiras, nos dois primeiros
horários, com certa recorrência, chegava atrasado. Quando estava do lado de
fora da sala, via sua imagem aportar no corredor; deslocar-se com passos
ligeiros, mas solenes. Uma parte do corpo franzino meio pensa. Cabelos penteados de lado. Óculos de
grau. Uma mão no bolso e outra a segurar a valise. Caminhava de cabeça baixa.
Parecia pedir desculpas com aquele gesto.
Observava os seus olhos ainda
inchados, da noite mal dormida, de quem saíra de casa atrasado. Quando se aproximava, notava o seu
bafo etílico. Imaginava a pândega em que se metera ao longo do final de semana.
Dizia possuir uma grande biblioteca. Ficava a imaginar. Vi nele a primeira
figura de um grande erudito. Se isso não se confirmou ao longo das aulas, pelo
menos a impressão não esmorecia.
Poderia citar outras
personalidades. Outros nomes dessas magnânimas figuras. Houve inúmeras com as quais
cruzei. Todas dignas. Todas justas. Todas humanas. Como dizia a poetisa goiana
Cora Coralina: “Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”.
Acredito que tenha recebido um pouco de cada um deles, porque a prática os
ajudou a aprender aquilo que ensinavam. Sendo professor, acredito que tenha me
assenhoreado de um pouquinho de cada um deles, enquanto vou aprendendo a
aprender aquilo que ensino.