quinta-feira, outubro 15, 2020

Um mosaico de lembranças nesse dia dos professores

 

Dou aula há dez anos. Há quem fique dez, vinte, trinta ou mais anos nessa profissão. Não pretendo ficar por tanto tempo. A profissão docente é repleta de sabores múltiplos. Há aqueles doces, de uma pureza sofisticada; mas, há aqueles que divergem da doçura por serem azedos ao extremo. Pretendo falar um pouquinho da minha relação com alguns professores inesquecíveis.

Ao longo de minha jornada como estudante, eu tive a oportunidade de encontrar com professores e professoras para as quais eu pagaria um valor altíssimo para ter a oportunidade de ficar mais próximo; de passar uma tarde a conversar com eles. Admirava-os (e os admiro ainda hoje, embora o tempo insista em criar camadas de afastamentos). Tenho o costume de reverenciar, de nutrir grande respeito por pessoas admiráveis. E muitos professores com os quais eu cruzei ao longo de minha jornada como estudante, inseriram-se nessa categoria.

                 Nos anos iniciais, recordo-me da Marli, da Geovanete, da Suely, da Soraia - por quem me apaixonei na 2ª série). As paixões fazem parte dessa fase. Ela era professora de artes. Encontrava-me com ela uma vez por semana, às terças-feiras. Era pouco. Durante as aulas, ficava embevecido. Seus longos cabelos pretos. Sua voz melodiosa. Seus trejeitos tão singulares. Os ademanes da caminhada. Ainda posso vê-la. Ia para casa de ônibus. Um certo dia, resolvi verificar onde ela morava. Peguei o mesmo ônibus em que ela estava. Passei por baixo da catraca. Aboletei-me na última cadeira da condução. Ela ficou à frente, próxima ao cobrador. Certamente, ela me viu. Ignorou-me. Não disse nada.

                O ônibus seguiu a sua viagem. Ao chegar ao Centro de Taguatinga (Região Administrativa do DF), vi que ela se levantou. Passou por mim; nem olhou. Desceu do ônibus. Misturou-se à aglomeração de transeuntes. Sumiu no rio de pessoas como uma flor delicada que é empurrada pela correnteza. Fiquei distante a olhar. Voltei para casa após esse episódio arqueológico e nem consigo divisar o que pensava. Ao encontrá-la na escola em um dia qualquer, ela disse: “Oi! Carlos!”. Fiquei sem palavras, inexpressivo, como é comum à minha pessoa em inteirações sociais.

                Ao chegar à antiga quinta série, encontrei uma fauna docente bastante diversa. Havia professores que ensinavam bem; outros, nem tanto. Recordo-me de um professor de ciências cujo tom histriônico ficou impresso em minha memória. Suas aulas eram divertidíssimas. Ele se vestia sempre com roupas sociais – camisa social, calça social, sapato social. Parecia um corretor de imóveis com a sua valise escura. Fisicamente era magro e baixo; usava óculos. Fazia lembrar o político Éneas pela calvície.  Sua letra era milimetricamente desenhada. Seus esquemas coloridos feitos no quadro, beiravam à perfeição. Da minha cadeira, eu prestava atenção. Ele começava a falar de moléculas; de processos químicos; de transformações gasosas. De repente, fazia uma careta. Simulava gestos teatrais. Saía da sala. Ficávamos rindo. Algum tempo depois, voltava como se nada tivesse acontecido e nos empurrava para frente em sua jocosa viagem científica.

                Nessa mesma escola, havia uma professora cuja fama era das mais atrozes. Os alunos tinham medo dela. Ouvia a fama dela; punha a imaginação para funcionar. Ela parecia se alimentar dessa horrenda ressonância social. Na sexta série, tive o infortúnio de cruzar com ela. Era professora de ensino religioso. Quando a vi pela primeira vez, observei-a. Sua fama consolidou-se numa determinada aula. A sala não parecia um espaço de aprendizagem sobre as coisas divinas. Estava mais para um tribunal da inquisição. Não havia liberdade para falar. Todos alunos ficavam tensos. Perfilados marcialmente, reduzíamo-nos.  Apequenávamo-nos.  Transformávamo-nos em coisinhas insignificantes. Um olhar dela, congelava a alma. Parecia possuir um chicote de fogo nas mãos. Era magra. Um cocó no alto da cabeça. Usava uma dentadura amarelecida pelo tempo. Não sei se era tabagista. Quando falava, tinha a impressão de que a prótese dentária dançava em sua boca magra e babosa.

                Um colega olhou para o lado. Ela saiu do seu lugar, movimentou-se célere. Disse, olhando para o infeliz, que se comprimia na cadeira: “Por que você não põe uma melancia na cabeça!” “Está querendo aparecer?” Essas frases foram proferidas de uma maneira torrencial. Havia tempestades em seus olhos. Uma camada metálica em sua voz. Reduzi-me em minha cadeira. Sua pedagogia era a do pavor, do medo. Ela ficou como exemplo negativo daquilo que um professor não deve ser. Não sei aonde ela está. Aposentou-se?

                Seu filho estudava na mesma escola em que eu estudava. Vestia roupas compridas em pleno calor. Usava óculos. Ficava pelos cantos a ler a Constituição de 88. Olhava para ele. Tentava decifrá-lo. Ele era um para-raios; certamente, as borrascas inflamadas de sua mãe caíam sobre o seu corpo pequeno e mofino. Sua mãe era professora de religião. Mas era uma religião draconiana. Não a de Cristo.

                No ensino médio, encontrei outras figuras exóticas, singulares. Havia um professor de literatura que me fazia pensar nos textos de Nelson Rodrigues. Um toque de sátiro pulava de suas falas em certos momentos. Tratava-se de figura bastante cômica. Agradável. Era poeta. Tinha livro lançado. Membro da Academia Taguatinguense de Letras, fato que insistentemente surgia em conversas. Às segundas-feiras, nos dois primeiros horários, com certa recorrência, chegava atrasado. Quando estava do lado de fora da sala, via sua imagem aportar no corredor; deslocar-se com passos ligeiros, mas solenes. Uma parte do corpo franzino meio pensa. Cabelos penteados de lado. Óculos de grau. Uma mão no bolso e outra a segurar a valise. Caminhava de cabeça baixa. Parecia pedir desculpas com aquele gesto.

                Observava os seus olhos ainda inchados, da noite mal dormida, de quem saíra de casa atrasado. Quando se aproximava, notava o seu bafo etílico. Imaginava a pândega em que se metera ao longo do final de semana. Dizia possuir uma grande biblioteca. Ficava a imaginar. Vi nele a primeira figura de um grande erudito. Se isso não se confirmou ao longo das aulas, pelo menos a impressão não esmorecia.

                Poderia citar outras personalidades. Outros nomes dessas magnânimas figuras. Houve inúmeras com as quais cruzei. Todas dignas. Todas justas. Todas humanas. Como dizia a poetisa goiana Cora Coralina: “Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”. Acredito que tenha recebido um pouco de cada um deles, porque a prática os ajudou a aprender aquilo que ensinavam. Sendo professor, acredito que tenha me assenhoreado de um pouquinho de cada um deles, enquanto vou aprendendo a aprender aquilo que ensino.

2 comentários:

Frazec (vulgo Jean-Philipe Rameau) disse...

Carlinus,
Um texto com tantas memórias!
Você me fez viajar um pouco por elas e ver a humanidade em cada docente seu. Nossa humanidade às vezes (muitas vezes) pode atrapalhar, como no caso da sua contraditória professora de ensino religioso. Não sou religioso, mas tenho certeza, como você, que, se houver algum deus amoroso, não foi compreendido por ela.
A tarefa de ser docente, então, parece-me começar por filtrar os dragões e lobos de nossa humanidade interior para conseguirmos ressaltar o que há de melhor nela, mostrando-a aos alunos e às alunas.
Com seus blogs, você me faz crer que busca esse exercício diário.
Feliz Docência!

Carlinus disse...

Frazec, obrigado pelo comentário!

Suas palavras são precisas. Identificam coerentemente essa tentativa constante de observar os fatos e extrair lições sem fim de cada um deles.

Obrigado!