sexta-feira, janeiro 30, 2009

Das Lied von der Erde (1908)

Estava ouvindo há pouco "A canção da terra" (Das Lied von de Erde, em alemão) de Gustav Mahler. Achei este bom texto sobre a peça, uma das melhores do obsessivo Mahler, escrito por Isabel Assis Pacheco. O texto está AQUI. Inclusive com a tradução dos poemas. Imperdível!!!

Das Lied von der Erde (“A Canção da Terra”) (c. 1h. e 10 min.)


Artista intransigente, Mahler levou à obsessão o desejo de perfeição. Homem atribulado e desiludido, fugiu do mundo, da civilização e mergulhou no seio da natureza, em busca de conforto. São suas estas palavras: “Um grande exemplo para todas as pessoas criativas é Jacob, que se bate com Deus até que Ele o abençoe. Deus tão pouco quer conceder-me a Sua bênção. Somente através das terríveis batalhas que tenho de travar para criar a minha música recebo finalmente a Sua bênção”.

O complexo universo mahleriano, muitas vezes caótico, sofredor, povoado de sinais de morte, mas também pleno de realidades belas, não é senão uma projecção da própria vida humana.

Com uma produção quase exclusivamente constituída por sinfonias e ciclos de canções, Mahler descobre o seu horizonte criativo. O compositor opera nestes dois domínios musicais uma síntese genial e grandiosa: por um lado confere ao Lied uma dimensão sinfónica e, por outro lado, insere o Lied em várias das suas sinfonias. A fusão destas duas formas musicais atinge a culminância em obras como a 8ª Sinfonia e a sua derradeira obra Das Lied von der Erde (“A Canção da Terra”), classificada como “sinfonia com voz”.

No final de 1907, três duros golpes do destino marcaram profundamente Mahler: a morte da sua filha mais velha, a demissão de director da Ópera de Viena e o diagnóstico de uma grave doença cardíaca. Por essa altura, o seu amigo Theodor Pollak ofereceu-lhe uma colectânea de 83 poemas Die chinesische Flöte (“A Flauta Chinesa”) que Hans Bethge tinha adaptado das traduções inglesa, francesa e alemã dos originais chineses. Pollak expressara a ideia de que esses poemas poderiam ser musicados e Mahler identificou-se de imediato com o espírito dos poemas, concebendo a adaptação de alguns deles. A razão da escolha de seis poemas, de rara beleza, da autoria de Li–Tai–Po, Tchang–Tsi, Mong–Kao–Yen e Wang–Wei deveu-se aos temas apresentados. Poemas voltados para a terra, para a natureza e para a solidão do homem no seio desses elementos, foram a fonte criativa de um documento pessoal e profundamente comovente que abre o último período criador de Mahler — Das Lied von der Erde “uma sinfonia para tenor, contralto (ou barítono) e orquestra”. Bruno Walter classificou esta obra como “apaixonada, amarga e ao mesmo tempo, misericordiosa; o canto da separação e do desvanecimento”.

Obra onde se encontra a fusão perfeita do Lied e da sinfonia, A Canção da Terra está impregnada de tristeza e nostalgia indefiníveis, mas também da celebração da natureza. Mahler conseguiu evidenciar nesta obra todos os aspectos do seu génio.

Nela encontramos tanto a ambivalência de sentimentos, entre o êxtase, o prazer e a premonição da morte, que caracteriza o próprio compositor, como também todo o clima outonal do romantismo tardio. Terminada no Verão de 1908, a obra só viria a ser estreada seis meses após a morte do compositor, a 20 de Novembro de 1911, em Munique, sob a direcção Bruno Walter. Constituída por seis andamentos, a obra inicia-se com um Allegro pesante em Lá menor. Das Trinklied von Jammer der Erde (“Canção de Beber da Tristeza da Terra”), do poeta chinês Li–Tai–Po, advoga o vinho como o melhor remédio para os males humanos. Diante do absurdo da vida, a embriaguez é a única saída para a dor e para a revolta. Cada estrofe da canção termina com o terrível refrão: Dunkel ist das Leben, ist der Tod (“Sombria é a vida, é a morte”). Usando genialmente todos os recursos orquestrais a fim de aumentar a tensão, Mahler cobre toda a gama de emoções.

O segundo andamento indicado Etwas schleichend (um pouco arrastado) é na tonalidade de Ré menor. A imagem poética desta segunda canção, Der Einsame im Herbst, (“O Solitário no Outono”) cantada neste caso pelo barítono, é a tristeza do homem que chora sozinho com as suas recordações e para quem “o outono se prolonga demasiado no seu coração”. Mahler sublinha o verso Mein Herz ist müde (“O meu coração está cansado”). O andamento termina melancolicamente com uma coda orquestral de extraordinária beleza. De índole totalmente diversa é Von der Jugend (“Da Juventude”). Com poema de Li–Tai–Po, este Lied é tratado em forma de miniatura e descreve uma cena chinesa.

Deparamo-nos com um pequeno “pavilhão de porcelana verde”, uma “pequena ponte de jade” que se reflectem no espelho do lago. A frágil superfície encantada é traduzida por delicadas sonoridades que nos transmitem um efeito de fria emoção.

Um procedimento análogo caracteriza o quarto andamento: Von der Schönheit (“Da Beleza”). Indicado como comodo, dolcissimo, esta canção descreve, num estilo gracioso, jovens raparigas a colherem flores de lótus na margem de um rio.

Porém, o andamento anima-se cada vez mais quando em ritmo de marcha (o mais vivo e agitado de toda a obra) jovens cavaleiros montados em corcéis de fogo, perturbam a nostalgia da cena. No final do poema reencontramos a atmosfera inicial. Tratado como uma canção de embalar de grande beleza tímbrica, o poema termina sobre um murmúrio das flautas e violoncelos:


In dem Funkeln ihrer großen Augen,

In dem Dunkel ihres heißen Blicks

Schwingt klagend noch die Erregung Ihres Herzens nach.


“No brilho dos seus olhos,

no calor do seu olhar sombrio,

ainda traem a emoção dos seus corações.”


Esta atmosfera é quebrada pelo quinto andamento, Der Trunkene im Frühling (“O Bêbado na Primavera”). Em forma de scherzo em Lá Maior, é um novo hino aos prazeres da bebida. O despreocupado e jovial Allegro inicial muda poeticamente quando um pássaro (tema brilhante para o piccolo) desperta o ébrio e o informa que a primavera chegou durante a noite. O ébrio protesta e diz que não acredita ter nada a ver com a primavera ou o canto dos pássaros:


Und wenn ich mich mehr singen kann,

So schlaf’ ich wieder ein,

Was geht mich denn der Frühling an!?

Lasst mich betrunken sein!


“E se não posso mais cantar,

então durmo de novo,

que me importa a primavera?

Deixai-me com a minha embriaguez!”


O último Lied, de longe o mais importante, tanto pela duração como pela beleza, é Der Abschied (“A Despedida”) e resulta da conjugação de dois poemas com afinidades temáticas, de Mong–Kao–Yen e Wang–Wei e ainda de alguns versos do próprio compositor que funcionam, neste caso, como coda.

No primeiro, o poeta espera o seu amigo para com ele contemplar o esplendor do crepúsculo. Mahler inicia o andamento com um interlúdio orquestral em forma de marcha fúnebre, criando assim um ambiente fascinante, entoado em uníssono pelos violoncelos, contrabaixos, violas, harpas e contrafagote. Quando a voz entra, sustentada pelos violoncelos, o efeito é de uma alma perdida, impressão intensificada pela transferência do lamento do oboé para a flauta. O poema descreve o entardecer:


Die Sonne scheidet hinter dem Gebirge,

In alle Täler steig der Abend nieder

Mit seinen Schatten, die voll Kühlung sind...


“O sol desaparece por trás das montanhas.

O anoitecer e as suas sombras frescas

surgem nos vales...”


Um tremolo de dois clarinetes termina esta variação que se cinge aos três primeiros versos. A segunda variação constitui um momento muito comovente da obra. Numa melodia ascendente inesquecível, o barítono descreve a Lua “como um barco de prata sobre o mar azul do céu”. O Fá agudo na primeira sílaba de Silberbarke (barco de prata), é como que o culminar de um desejo que depois se recolhe sobre si próprio. A cantilena da voz prossegue, sublinhada pelos clarinetes e pela harpa que precedem o reaparecimento do gruppetto. As texturas orquestrais simplificam-se para criar um ritmo ondulante em quartas na harpa, secundada pelo bandolim quando o poema nos fala do canto do regato e da respiração da terra. A ideia de nostalgia e a beleza da terra é retomada num novo tema com o verso: Alle Sehnsucht will nun träumen (“Todo o desejo se transforma em sonho”). Trata-se da melodia da canção, Ich bin der Welt abhanden gekommen (“Afastei-me do Mundo”) utilizada por Mahler no famoso Adagietto da sua 5ª sinfonia.

O clímax central da primeira parte é a candente irrupção do êxtase. O tema do desejo reaparece depois do grito Lebewohl (“Adeus”). O tema de Ich bin der Welt subjacente, é agora tratado pentatonicamente ao começar o verso:


O Schönheit! O ewigen Liebens–, Lebens–trunk‘ne Welt!


“Ó beleza! Ó mundo ébrio de amor e vida eternos!”


Um longo interlúdio orquestral entre os dois poemas, construído a partir de motivos já ouvidos, torna-se o prenunciador de futuras catástrofes. Soberanamente orquestrado, o ritmo de marcha fúnebre prossegue, lúgubre e insistente, enquanto a voz descreve a chegada do amigo e a sua despedida:


Du, mein Freund,

mir war auf dieser Welt das Glück nicht hold!


“Meu amigo,

a felicidade não me foi propícia neste mundo!”


Neste verso, a música dolente, modula para o modo Maior. No momento em que o poeta refere que procura repouso para o seu solitário coração, Mahler cita Um Mitternacht (“À meia–noite”). O tema do “desejo” volta a ouvir-se nos versos:


Still ist mein Herz und harret seiner Stunde!


O meu coração está tranquilo e aguarda a sua hora!”


Começa assim a maravilhosa e insólita coda em dó Maior, com versos da autoria do próprio Mahler :


Die liebe Erde allüberall

blüht auf im Lenz und grünt aufs neu!

Allüberall und ewig Blauen licht die Fernen!


Ewig... ewig...

“Em toda a parte a amada terra

Floresce na primavera e torna a verdejar!

Por toda a parte e eternamente resplandece um azul luminoso!

Eternamente...eternamente...”


Quando a voz entoa as últimas palavras Ewig... ewig, a música parece dissolver-se imperceptivelmente num pianíssimo, sustentado pelas cordas e com arpejos da harpa e da celesta. A música dá lugar ao silêncio e a emoção é levada à sua plenitude.


Isabel Assis Pacheco


quarta-feira, janeiro 28, 2009

Algumas palavras introdutórias e O Relógio do Hospital

Segundo Massaud Moisés, “a origem da palavra conto estaria na forma latina commentu (m), com significado de invenção, ficção”[1]. O conto como estilo literário está dentro romance. Situa-se abaixo da novela no sentido de complexidade de elementos do enredo. O conto não se preocupa em revelar detalhes, em agudizar descrições, fomentações ambientes. É uma visão unívoca, univalente, que revela um ponto e explora a singularidade desse ponto.

Frei Betto no programa Sempre um Papo, disse certa vez que o conto tem por finalidade revelar um pedaço de acontecimento da realidade. A proporção redundaria no seguinte: romance é a porta da realidade totalmente aberta; já o conto é o olhar pela fechadura da realidade. Ou seja, aquele pedaço de fato é o espaço do conto. Moisés acrescenta que o conto “constitui uma unidade dramática, uma célula dramática. Portanto gravita em torno de um só conflito, um só drama, uma só ação”
[2]. O conto é uma paisagem fotográfica. Assim como o fotógrafo concentra sua atenção num ponto, num detalhe, querendo privilegiar mais um aspecto da realidade, do que a totalidade do real, o conto também se prende a um elemento e faz disso a matéria a ser explorada.

O conto, numa linguagem massaudiana, “aborrece” a digressão, a prolixidade. Todos os seus elementos narrativos e literários convergem para uma única via. O tempo, o passado, o futuro, são nulos, não necessários. A estrutura do conto não busca se prender a cronologias.


Mas surge uma pergunta: por que se escreve contos? Massaud diz algo belo: “Se a paz reinasse entre as personagens, não haveria conflito, portanto, nem história. E mesmo que se viesse a escrever um conto acerca do tema tranquilidade de espírito, é certo que malograria esteticamente. A bem-aventurança medíocre produzida pela satisfação dos apetites primários não importa à Literatura, pois mesmo fora da Arte as pessoas “felizes” são monótonas e desatraentes: somente a dor, o sofrimento, a angústia, a inquietude criadora, etc, faz que as criaturas se imponham e suscitem interesse nos outros. A literatura opera exatamente no plano em que o homem encara a vida como luta, tomada a consciência da morte e da precariedade do destino humano: não se acomoda, não se torna feliz; e quanto mais indaga, mais se inquieta, num permanente círculo vicioso. Aí entra a Literatura”
[3].

A Literatura não busca se ater aos aspectos ditos da “normalidade”. Ela lida necessariamente com o conflito. Com a visão heterodoxa a que estamos desacostumados. Pode está no beco como disse Manuel Bandeira ou pode está “longe do estéril turbilhão da rua”, num mosteiro, como apregoou Olavo Bilac; ou ainda como Drummond o disse: “Vai ao mundo das palavras. Lá estão os poemas que ainda não foram escritos”. A argamassa da literatura é a palavra. Drummond diz que “lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã”. Ou seja, esse é o ofício do escritor – ser o profeta de um mundo em que a palavra é a definidora do tempo e do futuro. Em assertiva drummondiana: “Não serei o poeta de um mundo caduco”. O poeta, o escritor, é justamente o profeta que vaticina para o homem desafeito à arte, a imaginação e à beleza. O que o carpiteiro faz com a plaina ou o que o pintor faz com o pincel, o escritor, o poeta, o romancista, faz com a palavra – dá à luz ao engenho munido do verbo.


Por que escrevo tais palavras? Justamente porque decidi postar mensalmente um conto neste espaço. Ou seja, a cada mês quero colocar um conto, que é uma narrativa curta e que pode ser lida rapidamente. Escolherei contos que me marcaram, que provocaram em mim uma catarse no momento da recepção, da leitura. O primeiro conto é do escritor alagoano Graciliano Ramos, um dos meus mestres. Aprendi a gostar de literatura com ele. Ainda me recordo das primeiras leituras. Elas se deram no ensino médio. Li Vidas Secas, São Bernardo, Memórias do Cárcere, Angústia. Mais tarde: Linhas Tortas, Insônia, Infância. Reverencio o velho Graça, como era chamado, por conta do seu modo singular de escrever. Sua escrita é dura, seca, crua, nua, desjungida de sentimentalizações. Graciliano tirou os brincos, os faniquitos e os melindres da literatura e o mostrou o mundo como ele é. Seu realismo é sólido e encorpado.


O conto que escolhi chama-se “O Relógio do Hospital”. A primeira vez que li esse conto, no ano de 2004, eu escrevi o seguinte: “Notável!!! A forma com que Graciliano escreve faz-me senti as dores, os humores e o calor que acomete a personagem. O tique-taque do relógio rói as entranhas molestas da criatura infeliz visitada pela consciência de si, mergulhada no plasma absurdo da mente. O que me agrada em Graciliano é esse jeito esquerdo de escrever; esse realismo que nos diminui e nos mostra a miserabilidade, o desvalor daqueles momentos em que naufragamos nas águas escuras da solidão”. O conto se passa num quarto de hospital. Conforme está escrito, sentimos todo o abafamento, a agonia da personagem que se sente molestado pelo relógio do hospital e pela complacência lívida dos médicos e enfermeiros afeitos ao trabalho de cuidar de enfermos. Acontecimentos externos – choro de criança, o carro que passa na rua, o homem com cara enfaixada, o murmúrio de visitantes – atormentam o personagem. Todavia, nada é mais denso e conflitante do que a consciência viva e agudizada que possui de si.


Abaixo está o conto. Para possíveis leitores dessas palavras e do conto, um forte abraço. Uma última palavra: A Literatura pode não salvar o mundo, mas pode transformar os homens em seres melhores. Uma ótima leitura!


Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: quarta-feira, 28 de janeiro de 2009, 09:55:32


[1] MOISÉS, Massaud. A Criação Literária – Prosa – 9ª. Edição. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1979, p. 15.
[2] Idem, p.20.
[3] Idem.


O Relógio do Hospital


O médico, paciente como se falasse a uma criança, engana-me asseverando que permanecerei aqui duas semanas. Recebo a notícia com indiferença. Tenho a certeza de que viverei pouco, mas o pavor da morte já não existe. Olho o corpo magro estirado no colchão duro e parece-me que os ossos agudos, os músculos frouxos e reduzidos, não me pertencem.

Nenhum pudor. Alguém me estendeu uma coberta sobre a nudez.Como é grande o calor, descobri-me, embora estivessem muitas pessoas na sala. E não me envergonhei quando a enfermeira me ensaboou e raspou os pêlos do ventre.
Ao deitar-me na padiola, deixei os chinelos junto da cama; ao voltar da sala de operações, não os vi. O médico se dirige em linguagem técnica a uma mulher nova, e ela me examina friamente, como se eu fosse um pouco de substância inerte, diz que os meus sofrimentos vão ser grandes. Por enquanto estou apenas atordoado. Aquela complicação, tinir de ferros, máscaras curvadas sobre a mesa, o cheiro dos desinfetantes, mãos enluvadas e rápidas, as minhas pernas imóveis, um traço na pele escura de iodo, nuvens de algodão, tudo me dança na cabeça. Não julguei que a incisão tivesse sido profunda. Uma reta na superfície. Considerava-me quase defunto, mas no começo da operação esta idéia foi substituída por lembranças da aula primária. Um aluno riscava figuras geométricas no quadro-negro.
Morto da barriga para baixo. O resto do corpo iria morrer também, no dia seguinte descansaria no mármore do necrotério, seria esquartejado, serrado. Fechei os olhos, tentei sacudir a cabeça presa. Uma cara me perseguia, cara terrível que surgira pouco antes, na enfermaria dos indigentes. Eu ia na padiola, os serventes tinham parado junto a uma porta aberta - a grade alvacenta aparecera, feita de tiras de esparadrapo, e, por detrás da grade, manchas amarelas, um nariz purulento, o buraco negro de uma boca, buracos negros de órbitas vazias. Esse tabuleiro de xadrez não me deixava, era mais horrível que as visões ferozes do longo delírio.
O trabalho dos médicos iria prolongar-se, cacete, meses e meses, ou findaria vinte e quatro horas depois, no necrotério? Cortado em pedaços, uma salmoura esbranquiçada cheirando a formol, o atestado de óbito redigido à pressa, um cirurgião de mangas arregaçadas lavando as mãos, extraordinariamente distante de mim. Agora espero os sofrimentos anunciados. Um gemido fanhoso de relógio fere-me os ouvidos e fica vibrando. Insensível, olho as pernas compridas, a dobra que entre elas se forma na coberta. Outras pancadas vaga rosas tremem, abafando os cochichos que fervilham na sala. Parece-me virem juntas à primeira: a meia hora decorrida perdeu-se. Inércia, um vácuo enorme, o prognóstico da mulher nova ameaçando-me. Sono, fadiga, desejo de ficar só. Alguém se debruça na cama, encosta a orelha ao meu coração. Furam-me o braço, uma agulha procura lentamente a veia.
Escuridão, silêncio. Depois um instrumento de música a tocar, a sombra adelgaçando-se, telhados, árvores e igrejas esboçando-se à distância. Tenho a sensação de estar descendo e subindo, balançando-me como um brinquedo na extremidade de um cordel. A dormência prolongada pouco a pouco se extingue. Os dedos dos pés mexem-se, em seguida os pés, as pernas - e enrosco-me como um verme. Uma angústia me assalta, a convicção de que me aleijaram. Esta idéia é tão viva que, apesar de terem voltado os movimentos, afasto a coberta, para certificar-me de que não me amputaram as pernas. Estão aqui, mas ainda meio entorpecidas, e é como se não fossem minhas. As idas e vindas, as viagens para cima e para baixo, cansam-me demais, penso que uma delas será a última, que o cordel vai quebrar se, deixar-me eternamente parado.
Noite. A treva chega de repente, entra pelas janelas, vence a luz da lâmpada. Uma friagem doce. A chuva açoita as vidraças. Durmo uns minutos, acordo, adormeço novamente. Neste sono cheio de ruídos espaçados – rolar de automóveis, um canto de bêbado, lamentações dos outros doentes - avultam as pancadas fanhosas do relógio. Som arrastado, encatarroado e descontente, gorgolejo de sufocação. Nunca houve relógio que tocasse de semelhante maneira. Deve ser um mecanismo estragado, velho, friorento, com rodas gastas e desdentadas. Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a arengar aos pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia. O relógio tem aquele pigarro de tabagista velho, parece que a corda se desconchavou e a máquina decrépita vai descansar.
Bem. Daqui a meia hora não ouvirei as notas roucas e trêmulas.Vultos amarelos curvam-se sobre a cama, que sobe e desce, levantam-me, enrolam-me em pastas de algodão e ataduras, esforçam-se por salvar os restos deste outro maquinismo arruinado. Um líquido acre molha-me os beiços. Serventes e enfermeiros deslocam-se com movimentos vagarosos e sonâmbulos, a luz esmorece, dá aos rostos feições cadaverosas.Impossível saber se é esta a primeira noite que passo aqui. Desejo pedir os meus chinelos, mas tenho preguiça, a voz sai-me flácida, incompreensível. E esqueci o nome dos chinelos. Apesar de saber que eles são inúteis, desgosta-me não conseguir pedi-Ias. Se estivessem ao pé da cama, sentir-me-ia próximo da realidade, as pessoas que me cercam não seriam espectrais e absurdas. Enfadam-me, quero que me deixem. Acontecendo isso, porém, julgar-me-ia abandonado, rebolar-me-ei com raiva, pensa rei na enfermeira dos indigentes, no homem que tinha uma grade de esparadrapos na cara.Silêncio. Por que será que esta gente não fala e o relógio se aquietou? Uma idéia acabrunha-me. Se o relógio parou, com certeza o homem dos esparadrapos morreu. Isto é insuportável. Por que fui abrir os olhos diante da amaldiçoada porta? Um abalo na padiola, uma parada repentina - e a figura sinistra começara a aperrear-me, a boca desgovernada, as órbitas vazias negrejando por detrás da grade alvacenta. Por que se detiveram junto àquela porta? Dois passos aquém, dois passos além - e eu estaria livre da obsessão.
O relógio bate de novo. Tento contar as horas, mas isto é impossível.Parece que ele tenciona encher a noite com a sua gemedeira irritante.Doutor Queirós, principiando a falar, não acaba: é um palavreado infinito que nos enjoa, nos deixa embrutecidos, mudos, mastigando um sorriso besta de cumplicidade.Felizmente o homem dos esparadrapos vive. Repito que ele vive e caio num marasmo agoniado. No silêncio as notas compridas enrolam se como cobras, estiram-se pela casa, invadem a sala, arrastam-se devagar nos cantos, sobem a cama onde me agito apavorado. Que fim levaram as pessoas que me cercavam? Agora só há bichos, formas rastejantes que se torcem com lentidão de lesmas. Arrepio-me, o som penetra-me no sangue, percorre-me as veias, gelado.As vidraças, a chuva, os ruídos, sumiram-se. Há uma noite profunda, um céu pesado que chega até a beira da minha cama. As coisas pegajosas engrossam, vão enlaçar-me nos seus anéis. Tento esquivar-me ao abraço medonho, revolvo-me no colchão, grito. Aparecem de novo as figuras atentas, lívidas. A beberagem acre umedece-me a língua seca, dura como língua de papagaio. - Obrigado. Puxo a coberta para o queixo, o frio diminui. Há um rio enorme, precipícios sem fundo - e seguro-me a ramos frágeis para não cair neles.
Ouço trovões imensos. Volto a ser criança, pergunto a mim mesmo, que seres misteriosos fazem semelhante barulho. Meus irmãos pequenos iam deitar-se com medo, minhas tias ajoelhavam-se diante do oratória, a chama das velas tremia, as contas dos rosários chocavam-se como bilros de almofadas, um sussurro de preces enchia o quarto dos santos.Por que estão chiando aqui perto de mim? Estarão rezando? Não houve trovões. Nuvens brancas e altas correm por cima das árvores, das igrejas, do telhado da penitenciária. Olho os tipos que me rodeiam. Afastam-se, falam em voz baixa, presumo que me espiam desconfiados. Acham-me com certeza muito mal, pensam que vou morrer, procuram decifrar as palavras incoerentes que larguei no delírio. Envergonho-me. Terei dito segredos e inconveniências? Desejo atraí-Ias, conversar, mostrar que sou um indivíduo razoável e as maluquices do sonho findaram. Mas a linguagem foge. Procuro chamá-las com um gesto, a mão tomba-me sobre o peito, uma fraqueza paralisa-me.Certamente estou há dias entre a vida e a morte. Agora a febre diminuiu e os monstros que me perseguiam se desmancharam. As dores do ferimento são intoleráveis. Inclino-me para um lado e para outro, certifico-me de que não me trouxeram os chinelos, imagino que vou agüentar uma eternidade de martírios.Gritos agudos de criança rasgam-me os ouvidos, como pregos.
Querem ver que a minha operação foi ontem e ficarei aqui amarra do semanas ou meses? Uma balada corta-me o pensamento. Estremeço: parece que ela me chegou aos nervos através da ferida aberta, me entrou na carne como lâmina de navalha.Aqueles soluços desenganados devem vir da enfermeira dos indigentes, talvez o homem dos esparadrapos esteja chorando. Com esforço, consigo encostar as palmas das mãos nas orelhas. Desejo ficar assim, mas a posição é incômoda, os braços fatigam-me, o choro escorrega-me entre os dedos. Se não fosse isto, distrair-me-ia vendo as árvores, o céu, os telhados, falaria aos enfermeiros e aos serventes. Que desgraça estará sucedendo? Deixo cair os braços, os uivos lastimosos da criança recomeçam, as minhas dores crescem, dão-me a certeza de que os médicos atormentam um pequenino infeliz. Penso nos vagabundos miúdos que circulam nas ruas, pedindo e furtando, sujos, esfrangalhados, os ossos furando a pele, meio comidos pela verminose, as pernas tortas como paus de cangalhas. Talvez estejam consertando uma daquelas pernas.
Os gritos baixam, transformam-se num estertor.- Por que bolem com aquela criança?A enfermeira avizinha-se, espera que eu repita a pergunta. Aborreço me por não me haver feito compreender, viro-me com dificuldade e minutos depois ouço os passos da mulher, que se afasta nas pontas dos pés.Fará somente vinte e quatro horas que me deixaram aqui derreado? Somo: vinte e quatro, quarenta e oito, setenta e duas. Talvez uns três dias. Isto, setenta e duas horas. Os chinelos desapareceram: ficarei provavelmente um mês, dois meses. Multiplico: sessenta dias, mil quatrocentos e quarenta horas. Fatigo-me, e a conta se complica, ora apresenta um resultado, ora outro. Convenço-me afinal de que são mil quatrocentos e quarenta horas. É bom que a ferida se agrave e me mate logo. Dois meses de tortura, um tubo de borracha atravessando-me as entranhas, visões pavorosas, os queixumes dos indigentes que se acabam junto ao homem dos esparadrapos. Duas mil oitocentas e oitenta vezes o relógio caduco de peças gastas rosnará, ameaçando-me com acontecimentos funestos. Sessenta dias de imobilidade, o pensamento a emaranhar-me em cipoais obscuros.
Os gritos da criança elevam-se, o calor aumenta, as árvores e os telhados aproximam-se.Lá estão novamente as horas a pingar do corredor como de uma torneira, gotas pesadas escorrendo lentas.Gargalhadas na rua, barulho de automóvel, o pregão de um vendedor ambulante. Talvez o automóvel seja do médico que me vem fazer o curativo. Não é, passou com um ronco de buzina. Agora o que há são rufos de tambor, vozes de comando.O berro do vendedor ambulante caiu na sala de supetão e ficou rolando, misturado ao choro dos indigentes e ao rumor de ferros na autoclave.- Porcaria, tudo uma porcaria.
Zango-me. Não me tratam, deixam-me acabar à míngua, apodrecer como um corpo morto. Silêncio demorado. Penso na criança e no homem que se esconde por detrás da máscara de esparadrapo.- Como vai o menino?A enfermeira responde-me que vai bem, mas certamente procura iludir-me. Há um cadáver miúdo perto daqui, vão despedaçá-lo na mesa do necrotério, os serventes levarão a roupa suja para a lavanderia. Um colchão pequeno dobrado na cama estreita.As vozes de comando, os rufos, o pregão do vendedor ambulante o rumor dos ferros na autoclave, fazem-me falta. Convenço-me de que o silêncio é de mau agouro. Quando ele se quebrar, uma infelicidade surgirá de repente, não poderei livrar-me dela. O suor corre-me na cara. O primeiro som que vier anunciará desgraça, essa idéia desarrazoada não me larga. Reprimo um acesso de tosse, acredito que ele é indício de hemoptises abundantes.Começo a perceber um toque-toque surdo, tropel de cavalo cansado. Naturalmente é o sangue batendo-me nos ouvidos. Um coração quase inútil finda a tarefa maçadora.
O cadáver pequeno vai ser transformado em peças anatômicas.Toque-toque. Não é o sangue, é qualquer coisa que vem de fora, provavelmente do corredor. Duas pancadas próximas, uma distanciada, andadura irregular de bicho que salta em três pés. Ainda há pouco estava tudo calmo. De repente o relógio velho começou a mexer-se e a viver.Cerro os olhos, digo a mim mesmo que me fatigo à toa, bocejo, tento lembrar-me de fatos que julgo importantes e logo se tomam mesquinhos. Afinal não veio a desgraça. Vou restabelecer-me em poucos dias. Vou restabelecer-me, passear nas ruas, entrar nos cafés. Se não tivessem levado os chinelos, convencer-me-ia de que não estou muito doente. Procuro dormir, esquecer tudo, mas o relógio continua a martelar-me a cabeça dolorida. Espero em vão o fonfonar de um automóvel, a cantiga de um bêbado, as vozes de comando, o rumor dos ferros na autoclave. Tenho a impressão de que o pêndulo caduco oscila dentro de mim, ronceiro e desaprumado. Os infelizes calaram-se, todos os sofrimentos esmoreceram, fundiram-se naquela voz áspera e metálica.Os meus braços descarnados movem-se como braços de velho. Passo os dedos no rosto, sinto a dureza dos pêlos, as faces cavadas, rugas. Se tivesse um espelho, veria esta fraqueza e esta devastação. Velhinho, trocando as pernas bambas nas calçadas. Olho as pernas finas como cambitos. A vista escurece. Velhinho, arrimado a um cacete, balbuciando, tropeçando.
Toque-toque - o cajado a bater nos paralelepípedos. O pensamento escorrega de um objeto para outro. A barba crescida deve ter ficado branca, o pescoço engelhou como um pescoço de galinha. A mulher desapertava a roupa, despia-se cantando, e eu me conservava distante, encabulado, tentando desamarrar o cordão do sapato, que tinha dado um nó. Não podia descalçar-me e olhava estupidamente um despertador que trabalhava muito depressa. Os ponteiros avançavam e o laço do sapato não queria desatar-se. O professor explicava a lição comprida numa voz dura de matraca, falava como se mastigasse pedras. O político influente entregava-me a carta de recomendação. Eu gaguejava um agradecimento difícil, atrapalhava-me por causa da datilógrafa bonita, descia a escada perseguido pelos óculos de um secretário e pelo tique-taque da máquina de escrever.
Tudo se confunde. A rapariga que se despia, o professor, o político, misturam-se. A criança doente, os enfermeiros, os médicos, o homem dos esparadrapos, não se distinguem das árvores, dos telhados, do céu, das igrejas. Vou diluir-me, deixar a coberta, subir na poeira luminosa das réstias, perder-me nos gemidos, nos gritos, nas vozes longínquas, nas pancadas medonhas do relógio velho.

RAMOS, Graciliano. Insônia. São Paulo. Livraria Martins Editora. 1969. p. 47-61.

quarta-feira, janeiro 21, 2009

Obama e os americanos

O grande escritor argentino Jorge Luis Borges, considerado como um dos maiores escritores e intelectuais do século XX, tem uma obra extraordinária. Seus livros são resultado de um estilo único. São textos – ensaios, artigos, contos, poemas – crivados por uma linguagem simples e labiríntica, cheias de sentenças filosóficas, capazes de fazer pensar.

Certa vez lendo o conto “O outro”, conto este em que Borges escreve uma espécie de memória fictícia de um possível encontro consigo mesmo, achei uma frase que me fez pensar e até hoje a tenho comigo. A frase me aturdiu. Certamente a frase resume em poucas palavras um perfil da personalidade “caótica” e supersticiosa do povo americano. Borges usa a seguinte frase para se referir aos Estados Unidos: “a América, travada pela superstição da democracia”. Esta afirmação da alma da América, denuncia com bastante razoabilidade os aspectos religiosos de um dogma institucional – de que os EUA são um povo revestido por prerrogativas divinas. Tal fato dita o destino e a relação que o próprio povo americano estabelece com o mundo. Essa frase me fez pensar por muito tempo no momento em que a li.

A frase de Borges voltou à minha mente no dia de ontem enquanto assistia algumas cenas da posse presidencial de Obama. Fiquei ruminando pensamentos acerca da “paranóia”que habita a mente e o comportamento estadunidenses. Os americanos construíram uma sociedade alicerçada em valores religiosos. A América foi fundada por puritanos emigrados da Irlanda e da Inglaterra. Trata-se de uma sociedade com forte senso religioso moralista. O dólar americano vem com a inscrição: “Nós acreditamos em Deus”, não para proclamar um teísmo necessário, mas para apontar essa vinculação religiosa que resulta no moralismo e na superstição. O fato de Obama fazer o juramento com as mãos na Bíblia em que Lincoln também o fez é simbólico. Aquilo aponta para duas realidades: (1) a religiosidade cega a fim de defender os pressuspostos que se coadunam com a própria História dos americanos; o ato é justificante; e (2) o histórico que releva os feitos do passado com o objetivo de louvor dos heróis que fundaram a América. Os americanos evocam os heróis do passado como se esses fossem divindades. Em suma: para os americanos, a configuração social que alcançaram é fruto de um milagre. Um exemplo disso é a Constituição americana, admirada como se fosse escrita pelo próprio Deus. Essa superstição é a base dessa sociedade fragilizada pelos próprios ideiais que criou; uma sociedade que se escandaliza com acontecimentos da vida pública dos seus políticos e executivos e não se envergonha, por exemplo, com embargo econômico que direciona a Cuba ou às guerras violentas que defende.

Outro aspecto proclamado que me veio à mente é o ideal de liberdade criado como se fosse um mandamento celeste. Ou seja, a crença de que eles alcançaram uma sociedade perfeitamente livre cuja iniciativa individual não deve ser brecada ou encontrar obstáculos de qualquer ordem. É uma sociedade liberal, ausente de qualquer perspectiva coletivista. O único coletivismo que os americanos defendem é a unanimidade em afirmar a sua missão divina para governar o mundo. Obama disse algo assim no dia de ontem: “Estamos prontos, para mais uma vez, liderar o mundo”. Ou seja, tal afirmação possui subjancentemente o discurso da ética americana – de que eles possuem o modelo necessário, perfeito, responsável por guiar o mundo, por livrar o planeta inteiro de supostos inimigos. Trata-se com certeza de uma auto-consciência messiânica e remissora. Durante a “guerra contra o terror” promovida por Bush, ouviu-se a frase: “Quem não está do lado da América, está contra a América”. Dicotomizou-se o mundo em duas esferas: o bem e o mal, sendo que o bem era representado por aqueles que estavam ao lado dos americanos e o mal por aqueles que não eram pelos americanos.

Ao mesmo tempo em que se afirma algo dessa natureza, há o pensamento de que o mundo é perigoso, é bárbaro e espreitador da América. Segundo eles, em todo canto há hostilidades de toda sorte e, por isso, é legítimo o uso da força e do “power gun” (poder das armas). A limusine que transportava Obama era quase uma nave espacial mesclada com elementos de guerra. Falando sardonicamente, acredito que resistiria até a uma ataque nuclear – portava, por exemplo, sangue compatível com o de Obama; uma cabine oxigenada; blindagem capaz de suportar os mais potentes projetéis. Guardas treinados pela CIA andavam de um lado para outro com rádio, sobretudo preto, como num “matrix hollywoodiano”. Segurança militar por todos os lados – terrestre, aquática, áerea. Não duvido que houvesse radares espaciais apontados para qualquer lugar do planeta com o objetivo de neutralizar o ataque inimigo.

A eleição de Obama gerou uma espécie de comoção internacional. Um dos elementos responsáveis por quebrar os obstáculos e abrir as portas para Obama é o fato de ser um candidato de boa oratória, ter carisma, ter os holofotes da mídia sobre ele e ser negro. Ou seja, esses aspectos dão a ele um favor que o inclina como sendo uma nova espécie de herói. Em tempos de crise é comum os homens saírem à cata de heróis. E nesse sentido, elege-se aquele que outrora não detinha os atributos mais unânimes. A História dos EUA mostram isso. Os negros durante muito tempo foram vítimas históricas. Pode se afirmar que a questão racial ainda é um fator sério. Os negros ainda são menos favorecidos. Têm os piores empregos. São donos de rendas inferiores em relaçãos aos brancos. Moram em guetos. Mas o que é interessante é que a eleição serviu para apontar no espírito americano de que se vive numa sociedade onde o sujeito que luta, que se esforça é capaz de grandes feitos. É a capacidade de auto-promoção do sujeito, um dos fatores de louvor nesse momento. A individualidade constrói a coletividade e não o contrário. Para os americanos, a América só é grande porque a ação individual, o poder de iniciativa pessoal, é capaz de levantar a nação. Esta crença também é um dogma que traz patologias coletivas seríssimas. Os romanos também acreditavam que o império que construíram jamais seria vencido. O tempo mostrou que tudo o que é sólido, desmancha no ar.

O otimismo mundial será arrefecido pelo tempo. Virão os dias, que revelarão implacavelmente que Obama é apenas um homem e não uma divindade como se queria. Entendo que carisma racial é insuficiente para promover as mudanças de que o mundo necessita. Não falo em perspectivas catastrofistas ou alarmistas, mas penso que teremos o mais do mesmo. Os americanos continuarão com os seus dilemas, com suas “paranóias”de ordem coletiva. Ou seja, de como foram favorecidos pela divindade com uma História tão rica em feitos e acontecimentos simbólicos capazes de fazer dobrar o mundo.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: quarta-feira, 21 de janeiro de 2009, 16:22:15

segunda-feira, janeiro 19, 2009

Quase diário III

Contaram-me que a agenda em que se escreve os
Problemas por estes tempo de idas e vindas, perdeu
Completamente a capacidade de alojar palavras e
Direcionamentos no seu seio.
Vês, hoje um novo diário se apresenta a ti?
Hoje não tenho palavras para escrever no meu Dário.
Hoje eu pretendi viver sem leis prévias, sem itinerários,
Sem apontamentos, sem destino.
Quero hoje me filiar ao des-compromisso.
Quem sabe para onde vou?
É quase diário que tenhamos que decidir por onde ir.
Chega-se ao entroncamento de uma encruzilhada e se tem
Duas possibilidades, dois caminhos.
Paro para pensar e chego a conclusão que todos nós estamos
Perdidos, mas não estamos perdidos porque perdemos o caminho.
Estamos perdidos, pois achamos que temos o caminho.
Imagino se tantas curvas que surgem nos dá a condição
de termos certezas de fazermos ou pensarmos alguma coisa.
O fato é que decidimos pensar e seguir e o nosso seguir não
Dá em lugar nenhum.
Os caminhos dos homens são enigmáticos, cheios de incertezas e surpresas.
É diário o período da decisão.
Algumas idéias surgem sem identidade.
Todavia, o diário sem linhas, sem traços, sem norteios ou estratégias
Claras se apresenta, se avoluma e diante
Dele eu tenho uma página branca.
Por onde devo seguir nesta minha luta quase diária?

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: 27/4/2004 08:52:37, terça-feira.

terça-feira, janeiro 13, 2009

Quase diário II

Vês, olha para aquelas árvores em que
Penduras as tuas angústias.
Existe uma floresta onde escondes
As tuas dores de parto.
São dores lancinantes, cortantes, fumegantes.
É quase diariamente que tens que te sobressair
Por sobre a dor de ser diário.
A vida estaria dentro dessa selva?
Escondo apenas as minhas dores nesse
Ninho tecido pela minha imensa e necessária
Engenhosidade.
Eu quase que busco me encontrar por trás dos hortos.
Existe um desejo em mim de ser diário.
O fato é que eu sou.
Devo assumir a minha incrível necessidade de ser diário?
Sim!
Existo por que penso ou penso por que existo?
Tanto faz.
O fato é que tenho uma história para continuar
A escrever sobre mim?
Ou escrevem acerca de mim e eu não participo?
Eu sou um comercial, uma propaganda da divindade.
Loucura.
Não pode ser.
Não é assim que contam os textos sagrados.
Há funcionalidade no meu ser.
Existe autonomia detida, controlada.
Eu sou quase diário, porque nos outros dias em que não sou,
Tento entender o que sou – eu sou diário?

Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: 23/3/2004 09:14:23, terça-feira.

sábado, janeiro 03, 2009

O mito do herói na Grécia Antiga

A Antigüidade Clássica constitui um dos centros formadores dos arquétipos do Mundo Ocidental. A Grécia em específico, com sua filosofia, seu ideal de homem perfeito, de democracia, de civilização, de investigação das ciências naturais, de cidadania, forjou o modelo investigativo que segue o homem do Ocidente há quase 3 mil anos. Uma análise mais detida sobre o legado grego, faz enxergar o quanto os helenos foram responsáveis por constituir a gênese do pensamento analítico dos indivíduos ocidentais.
Tratando-se dessa civilização extraordinária, não é de se desprezar como os gregos interpretaram a realidade. Muitas das inquirições iniciadas ou sugeridas pelos filósofos gregos ainda continuam sendo pensadas. É o caso singular dos filósofos pré-socráticos, responsáveis por interpretarem a natureza filosófica e cientificamente. Há quem já disse que após Platão e Aristóteles não há mais o que se pensar. Que todo o pensamento que surge após estes filósofos não é original, mas uma derivação daquilo que eles pensaram. Os gregos souberam mais do que ninguém retratar filosoficamente os problemas atinentes ao ser humano. Construíram modelos singulares e complexos que ainda servem de base para o homem se entender e se interpretar.
Isso pode ser verificado no que diz respeito ao que eles pensaram sobre a figura do herói. O herói grego é um ente complexo. Carrega em si as potencialidades do trágico. O herói ao vir ao mundo, tem um destino inexpugnável, inescusável. Tal força determinada que o segue precisa ser preenchida, cumprida. O herói cumpre a sua missão quando tem contra ou a favor, as sentenças arbitrárias do destino. Trata-se de uma lei marcial, não separativa, vinculada àquilo que é. O herói é uma árvore solitária que atrai para si os fatídicos raios dos fatos. Assim como a gravidade constitui-se numa lei com regras objetivas e absolutas – e por isso se constitui numa lei – esse caráter incondicional segue a existência do herói e delineia aquilo que poderia ser chamado de “fado heróico”.
A personalidade complexa do herói é outra questão a ser considerada. O herói possui uma “liberdade” para ser/reunir em si o paradoxo – o bem e o mal. A luminosidade e a escuridade persegue-o. Suas ações, oriundas da psique, não são previsíveis, nem sugestionáveis. Hércules é o herói que mata os filhos e as esposas, e, para se redimir, necessita realizar 12 trabalhos ou tarefas. Aquiles é a máquina melindrosa e implacável da guerra. Possui uma força invencível, mas um ponto fraco esdrúxulo (o calcanhar) que sela o seu destino na hora do combate. Morre na peleja, pelas mãos de Páris, o mais covarde dos filhos de Príamo, rei de Tróia. O seu ponto fraco não é apenas um ponto fraco apenas. Constitui uma característica paradoxal na existência do herói. Aquiles é a força, a impetuosidade, mas a fragilidade também.
Os heróis em geral carregam em si os desejos inconscientes de determinada sociedade. Ou seja, o herói constitui um tipo de representação necessária. Seguindo essa lógica, pode se afirmar que em toda sociedade há a necessidade de heróis. Projeta-se no herói as necessidades dos indivíduos que compõem esta mesma sociedade. Assim, o herói é também produto dos anseios. Os gregos ao construírem esses modelos singulares, complexos, sabiam disso. A inevitabilidade da sina do herói constitui a própria busca de respostas aos dilemas do existir humano.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque
Data: Segunda-feira, 24 de novembro de 2008.