quarta-feira, janeiro 28, 2009

Algumas palavras introdutórias e O Relógio do Hospital

Segundo Massaud Moisés, “a origem da palavra conto estaria na forma latina commentu (m), com significado de invenção, ficção”[1]. O conto como estilo literário está dentro romance. Situa-se abaixo da novela no sentido de complexidade de elementos do enredo. O conto não se preocupa em revelar detalhes, em agudizar descrições, fomentações ambientes. É uma visão unívoca, univalente, que revela um ponto e explora a singularidade desse ponto.

Frei Betto no programa Sempre um Papo, disse certa vez que o conto tem por finalidade revelar um pedaço de acontecimento da realidade. A proporção redundaria no seguinte: romance é a porta da realidade totalmente aberta; já o conto é o olhar pela fechadura da realidade. Ou seja, aquele pedaço de fato é o espaço do conto. Moisés acrescenta que o conto “constitui uma unidade dramática, uma célula dramática. Portanto gravita em torno de um só conflito, um só drama, uma só ação”
[2]. O conto é uma paisagem fotográfica. Assim como o fotógrafo concentra sua atenção num ponto, num detalhe, querendo privilegiar mais um aspecto da realidade, do que a totalidade do real, o conto também se prende a um elemento e faz disso a matéria a ser explorada.

O conto, numa linguagem massaudiana, “aborrece” a digressão, a prolixidade. Todos os seus elementos narrativos e literários convergem para uma única via. O tempo, o passado, o futuro, são nulos, não necessários. A estrutura do conto não busca se prender a cronologias.


Mas surge uma pergunta: por que se escreve contos? Massaud diz algo belo: “Se a paz reinasse entre as personagens, não haveria conflito, portanto, nem história. E mesmo que se viesse a escrever um conto acerca do tema tranquilidade de espírito, é certo que malograria esteticamente. A bem-aventurança medíocre produzida pela satisfação dos apetites primários não importa à Literatura, pois mesmo fora da Arte as pessoas “felizes” são monótonas e desatraentes: somente a dor, o sofrimento, a angústia, a inquietude criadora, etc, faz que as criaturas se imponham e suscitem interesse nos outros. A literatura opera exatamente no plano em que o homem encara a vida como luta, tomada a consciência da morte e da precariedade do destino humano: não se acomoda, não se torna feliz; e quanto mais indaga, mais se inquieta, num permanente círculo vicioso. Aí entra a Literatura”
[3].

A Literatura não busca se ater aos aspectos ditos da “normalidade”. Ela lida necessariamente com o conflito. Com a visão heterodoxa a que estamos desacostumados. Pode está no beco como disse Manuel Bandeira ou pode está “longe do estéril turbilhão da rua”, num mosteiro, como apregoou Olavo Bilac; ou ainda como Drummond o disse: “Vai ao mundo das palavras. Lá estão os poemas que ainda não foram escritos”. A argamassa da literatura é a palavra. Drummond diz que “lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos mal rompe a manhã”. Ou seja, esse é o ofício do escritor – ser o profeta de um mundo em que a palavra é a definidora do tempo e do futuro. Em assertiva drummondiana: “Não serei o poeta de um mundo caduco”. O poeta, o escritor, é justamente o profeta que vaticina para o homem desafeito à arte, a imaginação e à beleza. O que o carpiteiro faz com a plaina ou o que o pintor faz com o pincel, o escritor, o poeta, o romancista, faz com a palavra – dá à luz ao engenho munido do verbo.


Por que escrevo tais palavras? Justamente porque decidi postar mensalmente um conto neste espaço. Ou seja, a cada mês quero colocar um conto, que é uma narrativa curta e que pode ser lida rapidamente. Escolherei contos que me marcaram, que provocaram em mim uma catarse no momento da recepção, da leitura. O primeiro conto é do escritor alagoano Graciliano Ramos, um dos meus mestres. Aprendi a gostar de literatura com ele. Ainda me recordo das primeiras leituras. Elas se deram no ensino médio. Li Vidas Secas, São Bernardo, Memórias do Cárcere, Angústia. Mais tarde: Linhas Tortas, Insônia, Infância. Reverencio o velho Graça, como era chamado, por conta do seu modo singular de escrever. Sua escrita é dura, seca, crua, nua, desjungida de sentimentalizações. Graciliano tirou os brincos, os faniquitos e os melindres da literatura e o mostrou o mundo como ele é. Seu realismo é sólido e encorpado.


O conto que escolhi chama-se “O Relógio do Hospital”. A primeira vez que li esse conto, no ano de 2004, eu escrevi o seguinte: “Notável!!! A forma com que Graciliano escreve faz-me senti as dores, os humores e o calor que acomete a personagem. O tique-taque do relógio rói as entranhas molestas da criatura infeliz visitada pela consciência de si, mergulhada no plasma absurdo da mente. O que me agrada em Graciliano é esse jeito esquerdo de escrever; esse realismo que nos diminui e nos mostra a miserabilidade, o desvalor daqueles momentos em que naufragamos nas águas escuras da solidão”. O conto se passa num quarto de hospital. Conforme está escrito, sentimos todo o abafamento, a agonia da personagem que se sente molestado pelo relógio do hospital e pela complacência lívida dos médicos e enfermeiros afeitos ao trabalho de cuidar de enfermos. Acontecimentos externos – choro de criança, o carro que passa na rua, o homem com cara enfaixada, o murmúrio de visitantes – atormentam o personagem. Todavia, nada é mais denso e conflitante do que a consciência viva e agudizada que possui de si.


Abaixo está o conto. Para possíveis leitores dessas palavras e do conto, um forte abraço. Uma última palavra: A Literatura pode não salvar o mundo, mas pode transformar os homens em seres melhores. Uma ótima leitura!


Por Carlos Antônio M. Albuquerque
Data: quarta-feira, 28 de janeiro de 2009, 09:55:32


[1] MOISÉS, Massaud. A Criação Literária – Prosa – 9ª. Edição. São Paulo: Editora Melhoramentos, 1979, p. 15.
[2] Idem, p.20.
[3] Idem.


O Relógio do Hospital


O médico, paciente como se falasse a uma criança, engana-me asseverando que permanecerei aqui duas semanas. Recebo a notícia com indiferença. Tenho a certeza de que viverei pouco, mas o pavor da morte já não existe. Olho o corpo magro estirado no colchão duro e parece-me que os ossos agudos, os músculos frouxos e reduzidos, não me pertencem.

Nenhum pudor. Alguém me estendeu uma coberta sobre a nudez.Como é grande o calor, descobri-me, embora estivessem muitas pessoas na sala. E não me envergonhei quando a enfermeira me ensaboou e raspou os pêlos do ventre.
Ao deitar-me na padiola, deixei os chinelos junto da cama; ao voltar da sala de operações, não os vi. O médico se dirige em linguagem técnica a uma mulher nova, e ela me examina friamente, como se eu fosse um pouco de substância inerte, diz que os meus sofrimentos vão ser grandes. Por enquanto estou apenas atordoado. Aquela complicação, tinir de ferros, máscaras curvadas sobre a mesa, o cheiro dos desinfetantes, mãos enluvadas e rápidas, as minhas pernas imóveis, um traço na pele escura de iodo, nuvens de algodão, tudo me dança na cabeça. Não julguei que a incisão tivesse sido profunda. Uma reta na superfície. Considerava-me quase defunto, mas no começo da operação esta idéia foi substituída por lembranças da aula primária. Um aluno riscava figuras geométricas no quadro-negro.
Morto da barriga para baixo. O resto do corpo iria morrer também, no dia seguinte descansaria no mármore do necrotério, seria esquartejado, serrado. Fechei os olhos, tentei sacudir a cabeça presa. Uma cara me perseguia, cara terrível que surgira pouco antes, na enfermaria dos indigentes. Eu ia na padiola, os serventes tinham parado junto a uma porta aberta - a grade alvacenta aparecera, feita de tiras de esparadrapo, e, por detrás da grade, manchas amarelas, um nariz purulento, o buraco negro de uma boca, buracos negros de órbitas vazias. Esse tabuleiro de xadrez não me deixava, era mais horrível que as visões ferozes do longo delírio.
O trabalho dos médicos iria prolongar-se, cacete, meses e meses, ou findaria vinte e quatro horas depois, no necrotério? Cortado em pedaços, uma salmoura esbranquiçada cheirando a formol, o atestado de óbito redigido à pressa, um cirurgião de mangas arregaçadas lavando as mãos, extraordinariamente distante de mim. Agora espero os sofrimentos anunciados. Um gemido fanhoso de relógio fere-me os ouvidos e fica vibrando. Insensível, olho as pernas compridas, a dobra que entre elas se forma na coberta. Outras pancadas vaga rosas tremem, abafando os cochichos que fervilham na sala. Parece-me virem juntas à primeira: a meia hora decorrida perdeu-se. Inércia, um vácuo enorme, o prognóstico da mulher nova ameaçando-me. Sono, fadiga, desejo de ficar só. Alguém se debruça na cama, encosta a orelha ao meu coração. Furam-me o braço, uma agulha procura lentamente a veia.
Escuridão, silêncio. Depois um instrumento de música a tocar, a sombra adelgaçando-se, telhados, árvores e igrejas esboçando-se à distância. Tenho a sensação de estar descendo e subindo, balançando-me como um brinquedo na extremidade de um cordel. A dormência prolongada pouco a pouco se extingue. Os dedos dos pés mexem-se, em seguida os pés, as pernas - e enrosco-me como um verme. Uma angústia me assalta, a convicção de que me aleijaram. Esta idéia é tão viva que, apesar de terem voltado os movimentos, afasto a coberta, para certificar-me de que não me amputaram as pernas. Estão aqui, mas ainda meio entorpecidas, e é como se não fossem minhas. As idas e vindas, as viagens para cima e para baixo, cansam-me demais, penso que uma delas será a última, que o cordel vai quebrar se, deixar-me eternamente parado.
Noite. A treva chega de repente, entra pelas janelas, vence a luz da lâmpada. Uma friagem doce. A chuva açoita as vidraças. Durmo uns minutos, acordo, adormeço novamente. Neste sono cheio de ruídos espaçados – rolar de automóveis, um canto de bêbado, lamentações dos outros doentes - avultam as pancadas fanhosas do relógio. Som arrastado, encatarroado e descontente, gorgolejo de sufocação. Nunca houve relógio que tocasse de semelhante maneira. Deve ser um mecanismo estragado, velho, friorento, com rodas gastas e desdentadas. Meu avô me repreendia numa fala assim lenta e aborrecida quando me ensinava na cartilha a soletração. Voz autoritária e nasal, costumada a arengar aos pretos da fazenda, em ordens ásperas que um pigarro interrompia. O relógio tem aquele pigarro de tabagista velho, parece que a corda se desconchavou e a máquina decrépita vai descansar.
Bem. Daqui a meia hora não ouvirei as notas roucas e trêmulas.Vultos amarelos curvam-se sobre a cama, que sobe e desce, levantam-me, enrolam-me em pastas de algodão e ataduras, esforçam-se por salvar os restos deste outro maquinismo arruinado. Um líquido acre molha-me os beiços. Serventes e enfermeiros deslocam-se com movimentos vagarosos e sonâmbulos, a luz esmorece, dá aos rostos feições cadaverosas.Impossível saber se é esta a primeira noite que passo aqui. Desejo pedir os meus chinelos, mas tenho preguiça, a voz sai-me flácida, incompreensível. E esqueci o nome dos chinelos. Apesar de saber que eles são inúteis, desgosta-me não conseguir pedi-Ias. Se estivessem ao pé da cama, sentir-me-ia próximo da realidade, as pessoas que me cercam não seriam espectrais e absurdas. Enfadam-me, quero que me deixem. Acontecendo isso, porém, julgar-me-ia abandonado, rebolar-me-ei com raiva, pensa rei na enfermeira dos indigentes, no homem que tinha uma grade de esparadrapos na cara.Silêncio. Por que será que esta gente não fala e o relógio se aquietou? Uma idéia acabrunha-me. Se o relógio parou, com certeza o homem dos esparadrapos morreu. Isto é insuportável. Por que fui abrir os olhos diante da amaldiçoada porta? Um abalo na padiola, uma parada repentina - e a figura sinistra começara a aperrear-me, a boca desgovernada, as órbitas vazias negrejando por detrás da grade alvacenta. Por que se detiveram junto àquela porta? Dois passos aquém, dois passos além - e eu estaria livre da obsessão.
O relógio bate de novo. Tento contar as horas, mas isto é impossível.Parece que ele tenciona encher a noite com a sua gemedeira irritante.Doutor Queirós, principiando a falar, não acaba: é um palavreado infinito que nos enjoa, nos deixa embrutecidos, mudos, mastigando um sorriso besta de cumplicidade.Felizmente o homem dos esparadrapos vive. Repito que ele vive e caio num marasmo agoniado. No silêncio as notas compridas enrolam se como cobras, estiram-se pela casa, invadem a sala, arrastam-se devagar nos cantos, sobem a cama onde me agito apavorado. Que fim levaram as pessoas que me cercavam? Agora só há bichos, formas rastejantes que se torcem com lentidão de lesmas. Arrepio-me, o som penetra-me no sangue, percorre-me as veias, gelado.As vidraças, a chuva, os ruídos, sumiram-se. Há uma noite profunda, um céu pesado que chega até a beira da minha cama. As coisas pegajosas engrossam, vão enlaçar-me nos seus anéis. Tento esquivar-me ao abraço medonho, revolvo-me no colchão, grito. Aparecem de novo as figuras atentas, lívidas. A beberagem acre umedece-me a língua seca, dura como língua de papagaio. - Obrigado. Puxo a coberta para o queixo, o frio diminui. Há um rio enorme, precipícios sem fundo - e seguro-me a ramos frágeis para não cair neles.
Ouço trovões imensos. Volto a ser criança, pergunto a mim mesmo, que seres misteriosos fazem semelhante barulho. Meus irmãos pequenos iam deitar-se com medo, minhas tias ajoelhavam-se diante do oratória, a chama das velas tremia, as contas dos rosários chocavam-se como bilros de almofadas, um sussurro de preces enchia o quarto dos santos.Por que estão chiando aqui perto de mim? Estarão rezando? Não houve trovões. Nuvens brancas e altas correm por cima das árvores, das igrejas, do telhado da penitenciária. Olho os tipos que me rodeiam. Afastam-se, falam em voz baixa, presumo que me espiam desconfiados. Acham-me com certeza muito mal, pensam que vou morrer, procuram decifrar as palavras incoerentes que larguei no delírio. Envergonho-me. Terei dito segredos e inconveniências? Desejo atraí-Ias, conversar, mostrar que sou um indivíduo razoável e as maluquices do sonho findaram. Mas a linguagem foge. Procuro chamá-las com um gesto, a mão tomba-me sobre o peito, uma fraqueza paralisa-me.Certamente estou há dias entre a vida e a morte. Agora a febre diminuiu e os monstros que me perseguiam se desmancharam. As dores do ferimento são intoleráveis. Inclino-me para um lado e para outro, certifico-me de que não me trouxeram os chinelos, imagino que vou agüentar uma eternidade de martírios.Gritos agudos de criança rasgam-me os ouvidos, como pregos.
Querem ver que a minha operação foi ontem e ficarei aqui amarra do semanas ou meses? Uma balada corta-me o pensamento. Estremeço: parece que ela me chegou aos nervos através da ferida aberta, me entrou na carne como lâmina de navalha.Aqueles soluços desenganados devem vir da enfermeira dos indigentes, talvez o homem dos esparadrapos esteja chorando. Com esforço, consigo encostar as palmas das mãos nas orelhas. Desejo ficar assim, mas a posição é incômoda, os braços fatigam-me, o choro escorrega-me entre os dedos. Se não fosse isto, distrair-me-ia vendo as árvores, o céu, os telhados, falaria aos enfermeiros e aos serventes. Que desgraça estará sucedendo? Deixo cair os braços, os uivos lastimosos da criança recomeçam, as minhas dores crescem, dão-me a certeza de que os médicos atormentam um pequenino infeliz. Penso nos vagabundos miúdos que circulam nas ruas, pedindo e furtando, sujos, esfrangalhados, os ossos furando a pele, meio comidos pela verminose, as pernas tortas como paus de cangalhas. Talvez estejam consertando uma daquelas pernas.
Os gritos baixam, transformam-se num estertor.- Por que bolem com aquela criança?A enfermeira avizinha-se, espera que eu repita a pergunta. Aborreço me por não me haver feito compreender, viro-me com dificuldade e minutos depois ouço os passos da mulher, que se afasta nas pontas dos pés.Fará somente vinte e quatro horas que me deixaram aqui derreado? Somo: vinte e quatro, quarenta e oito, setenta e duas. Talvez uns três dias. Isto, setenta e duas horas. Os chinelos desapareceram: ficarei provavelmente um mês, dois meses. Multiplico: sessenta dias, mil quatrocentos e quarenta horas. Fatigo-me, e a conta se complica, ora apresenta um resultado, ora outro. Convenço-me afinal de que são mil quatrocentos e quarenta horas. É bom que a ferida se agrave e me mate logo. Dois meses de tortura, um tubo de borracha atravessando-me as entranhas, visões pavorosas, os queixumes dos indigentes que se acabam junto ao homem dos esparadrapos. Duas mil oitocentas e oitenta vezes o relógio caduco de peças gastas rosnará, ameaçando-me com acontecimentos funestos. Sessenta dias de imobilidade, o pensamento a emaranhar-me em cipoais obscuros.
Os gritos da criança elevam-se, o calor aumenta, as árvores e os telhados aproximam-se.Lá estão novamente as horas a pingar do corredor como de uma torneira, gotas pesadas escorrendo lentas.Gargalhadas na rua, barulho de automóvel, o pregão de um vendedor ambulante. Talvez o automóvel seja do médico que me vem fazer o curativo. Não é, passou com um ronco de buzina. Agora o que há são rufos de tambor, vozes de comando.O berro do vendedor ambulante caiu na sala de supetão e ficou rolando, misturado ao choro dos indigentes e ao rumor de ferros na autoclave.- Porcaria, tudo uma porcaria.
Zango-me. Não me tratam, deixam-me acabar à míngua, apodrecer como um corpo morto. Silêncio demorado. Penso na criança e no homem que se esconde por detrás da máscara de esparadrapo.- Como vai o menino?A enfermeira responde-me que vai bem, mas certamente procura iludir-me. Há um cadáver miúdo perto daqui, vão despedaçá-lo na mesa do necrotério, os serventes levarão a roupa suja para a lavanderia. Um colchão pequeno dobrado na cama estreita.As vozes de comando, os rufos, o pregão do vendedor ambulante o rumor dos ferros na autoclave, fazem-me falta. Convenço-me de que o silêncio é de mau agouro. Quando ele se quebrar, uma infelicidade surgirá de repente, não poderei livrar-me dela. O suor corre-me na cara. O primeiro som que vier anunciará desgraça, essa idéia desarrazoada não me larga. Reprimo um acesso de tosse, acredito que ele é indício de hemoptises abundantes.Começo a perceber um toque-toque surdo, tropel de cavalo cansado. Naturalmente é o sangue batendo-me nos ouvidos. Um coração quase inútil finda a tarefa maçadora.
O cadáver pequeno vai ser transformado em peças anatômicas.Toque-toque. Não é o sangue, é qualquer coisa que vem de fora, provavelmente do corredor. Duas pancadas próximas, uma distanciada, andadura irregular de bicho que salta em três pés. Ainda há pouco estava tudo calmo. De repente o relógio velho começou a mexer-se e a viver.Cerro os olhos, digo a mim mesmo que me fatigo à toa, bocejo, tento lembrar-me de fatos que julgo importantes e logo se tomam mesquinhos. Afinal não veio a desgraça. Vou restabelecer-me em poucos dias. Vou restabelecer-me, passear nas ruas, entrar nos cafés. Se não tivessem levado os chinelos, convencer-me-ia de que não estou muito doente. Procuro dormir, esquecer tudo, mas o relógio continua a martelar-me a cabeça dolorida. Espero em vão o fonfonar de um automóvel, a cantiga de um bêbado, as vozes de comando, o rumor dos ferros na autoclave. Tenho a impressão de que o pêndulo caduco oscila dentro de mim, ronceiro e desaprumado. Os infelizes calaram-se, todos os sofrimentos esmoreceram, fundiram-se naquela voz áspera e metálica.Os meus braços descarnados movem-se como braços de velho. Passo os dedos no rosto, sinto a dureza dos pêlos, as faces cavadas, rugas. Se tivesse um espelho, veria esta fraqueza e esta devastação. Velhinho, trocando as pernas bambas nas calçadas. Olho as pernas finas como cambitos. A vista escurece. Velhinho, arrimado a um cacete, balbuciando, tropeçando.
Toque-toque - o cajado a bater nos paralelepípedos. O pensamento escorrega de um objeto para outro. A barba crescida deve ter ficado branca, o pescoço engelhou como um pescoço de galinha. A mulher desapertava a roupa, despia-se cantando, e eu me conservava distante, encabulado, tentando desamarrar o cordão do sapato, que tinha dado um nó. Não podia descalçar-me e olhava estupidamente um despertador que trabalhava muito depressa. Os ponteiros avançavam e o laço do sapato não queria desatar-se. O professor explicava a lição comprida numa voz dura de matraca, falava como se mastigasse pedras. O político influente entregava-me a carta de recomendação. Eu gaguejava um agradecimento difícil, atrapalhava-me por causa da datilógrafa bonita, descia a escada perseguido pelos óculos de um secretário e pelo tique-taque da máquina de escrever.
Tudo se confunde. A rapariga que se despia, o professor, o político, misturam-se. A criança doente, os enfermeiros, os médicos, o homem dos esparadrapos, não se distinguem das árvores, dos telhados, do céu, das igrejas. Vou diluir-me, deixar a coberta, subir na poeira luminosa das réstias, perder-me nos gemidos, nos gritos, nas vozes longínquas, nas pancadas medonhas do relógio velho.

RAMOS, Graciliano. Insônia. São Paulo. Livraria Martins Editora. 1969. p. 47-61.

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