quinta-feira, julho 29, 2010

O intelectual, entre mitos e realidades

Convertido em objeto de estudo, no momento mesmo em que o modelo do intelectual engajado, na versão francesa, perde a sua eficácia, esse novo ator histórico vem suscitando debates e questionamentos. Presente na luta política ao longo dos três quartos do século XX, portanto, participando ativamente da História, o intelectual engajado desaparece da cena pública no início dos anos 1980, em razão mesmo das mudanças de paradigmas intelectuais e das transformações conjunturais. O enfraquecimento das ideologias do progresso e a ascensão dos valores individualistas explicam, em grande parte, o final de um modelo de intelectual que buscava, através de seus atos públicos, aliar moral e política. Na verdade, o engajamento intelectual, sob a forma de combates políticos (contra as opressões e as injustiças), pretendeu reduzir a distância que separa pensamento e ação.

Voltaire, Diderot e os Enciclopedistas constituem a gênese dos denominados “intelectuais” que, defendendo valores universais (justiça, verdade), se organizam como grupo social no final do século XIX, no momento do “caso Dreyfus”.[1] Por intelectuais são, então, designados artistas, professores, escritores, ou seja, pensadores que, já tendo uma notoriedade, intervêm no debate público, em nome de valores morais e políticos.

Desempenhando um papel ético e político, os intelectuais franceses participam da marcha de História, situando-se tanto à esquerda como à direita do jogo político. A luta contra o nazismo os predispõe a passar à ação. Conseqüentemente, a partir do final da Segunda Guerra, a prática do engajamento transforma-se em uma doutrina da ação.

Através de um primeiro manifesto, publicado no primeiro número da revista Les Temps Modernes (outubro de 1945) [2], Sartre lança as premissas para uma ação por parte dos intelectuais. Situando-se em seu tempo, o intelectual engajado deve se definir pela sua posição crítica em relação ao mundo, afirmando-se como o representante das forças progressistas e como o defensor de uma causa humanitária.

No entanto, a abnegação dos princípios morais em detrimento das paixões políticas parece ter sido uma constância na história dos intelectuais franceses, a partir desse momento. A conjuntura histórica no final da Segunda Guerra (o constato mesmo da derrota da razão em Auschwitz, a vitória do comunismo sobre o fascismo) configura um novo esquema de pensamento e uma nova maneira de se pensar uma ação intelectual. A partir de então, uma nova prática intelectual passa a ser adotada; o moralismo do passado transforma-se em uma práxis coletiva: o engajamento político. Mas, se o engajamento pressupõe uma ação do intelectual na História, visando a contribuir para mudar a sociedade, essa ação só poderá se realizar a partir de um projeto revolucionário. O engajamento será, portanto, uma resposta dos intelectuais à mística do comunismo. O intelectual francês engajado do pós-guerra posiciona-se, então, ora a serviço do partido (os “intelectuais orgânicos”), ora em sua periferia (os “compagnons de route” [3]). Simpatizando com o partido sem aderir a ele, Sartre encarna, admiravelmente, nos anos 1940 e 1950, esse último modelo. Variante do engajamento, o profetismo intelectual será portador de uma utopia revolucionária.

Se no momento das guerras de descolonização (na Indochina e na Argélia), os intelectuais franceses assumem verdadeiramente uma missão (de serem consciência moral), engajando-se na defesa dos oprimidos da História, por sua vez, no período stalinista, uma grande parte dos mesmos pecam pela sua omissão na denúncia dos crimes e dos gúlags.

Ora, a morte das utopias, assinalando o final desse modelo, é responsável pela crise de representação do intelectual. Assim, desde os anos 1980, os intelectuais franceses denunciam não só o sistema totalitário soviético e a teoria teológica-política, mas realizam uma verdadeira autocrítica responsabilizando, particularmente, Sartre pelos erros e desvios intelectuais.

Nesses tempos atuais de “desencantamentos” políticos e de imprevisibilidades históricas, como, então, apreender a missão atribuída ao “intelectual”? Desprovido de sua função de oráculo, o intelectual francês como membro de um grupo social afasta-se da política, voltando-se para a sua principal tarefa: a de produção e de transmissão do conhecimento.

Se, no contexto histórico francês, o seu papel de “guia espiritual” (no momento do pós-guerra) o induziu a pactuar com dogmas e com supostas “verdades”, o fim das ideologias do progresso o conduziu a um relativo silêncio. De “profeta” da revolução, (até metade dos anos 1970), o intelectual francês converteu-se em defensor (abstrato) dos direitos do homem.

O declínio do intelectual francês, diagnosticado através de numerosos estudos, deve-se, segundo os mesmos, às mutações conjunturais e intelectuais. Na opinião de Régis Debray [4], a inversão final de todos os valores que haviam inspirado o nascimento de sua história, faz com que o intelectual francês atinja o seu fim.

Em suma, a condição mesmo do intelectual, no contexto dos países ocidentais, ou seja, o seu papel na sociedade, derivando de conjunturas históricas precisas, evolui de acordo com as próprias mutações intelectuais e políticas. Desse modo, cada época parece fornecer um modelo específico de intelectual.

Fruto de uma realidade sócio-cultural específica, o intelectual, no sentido amplo do termo, encontra-se intimamente ligado a seu contexto histórico. Somente a particularidade desse contexto poderá revelar a singularidade desse intelectual. Para melhor apreendê-lo, torna-se, então, necessário mapear suas origens. Nos limites desse pequeno texto, apenas algumas questões podem ser colocadas. Como ele emerge em uma dada sociedade? Como ele pode ser entendido e definido? Trata-se de uma simples categoria sócio-profissional, pressupondo uma atividade intelectual ou de um simples grupo social (a elite erudita)? No estudo do caso brasileiro, o substantivo intelectual teria mais o valor de um conceito do que de um comportamento? A quem essa categoria se aplicaria?

Se na Europa Ocidental, o termo intelectual, tradicionalmente, designa uma larga fração de pensadores, constituída por pesquisadores, professores universitários, escritores, cineastas, etc., que exerce uma atividade criativa nas ciências e nas artes, nos Estados Unidos, esse termo se aplica, em geral, ao chamado mundo “acadêmico”, ou seja, àquele pesquisador e/ou professor universitário, responsável pela produção e transmissão do conhecimento. No Brasil, o termo parece hesitar entre esses dois modelos.

Sem tradição de engajamento, o intelectual brasileiro, que, aparentemente não reivindica uma função ética (de consciência moral) parece aproximar-se do modelo americano. Em geral, a produção de idéias e a transmissão do conhecimento são tidas como condições “sine qua non” para considerar como pertencentes à categoria de intelectual, os escritores, os acadêmicos e os cientistas.

No entanto, como afirma Umberto Eco, “o intelectual tem de ser a consciência crítica do grupo. Ele existe para incomodar”.[5] A esse propósito, algumas questões merecem ser levantadas. A primeira: os intelectuais brasileiros representariam, verdadeiramente, a consciência crítica de um grupo? A segunda: o pensamento crítico não deveria constituir o primeiro atributo para que acadêmicos, escritores e cientistas fossem designados intelectuais?

Sem dúvida, esses breves questionamentos remetem aos tradicionais debates que, desde o início do século XX, instigaram os intelectuais a enfocar sua relação com o poder.

Segundo A. Gramsci, exercer uma atividade intelectual pressupõe exercer um dever crítico da cultura. A principal tarefa dos intelectuais constituiria, então, em estabelecer uma relação crítica entre a cultura, as idéias e a política. Para Sartre, a ação do intelectual, enquanto consciência que escolhe livremente agir na sociedade, deveria produzir mudanças radicais na sociedade. Se, para Foucault, a função crítica foi plenamente exercida pelos intelectuais engajados no domínio político, entre o saber e o poder existiria uma correlação estreita. Ele, aliás, criticou, sistematicamente, o intelectual que se declara mestre da verdade e da justiça, aquele que pretende resistir aos efeitos repressivos do poder. Foucault denunciou, igualmente, a pretensão do discurso dos intelectuais de caráter profético e universal, insistindo sobre a idéia de que a verdade não é estranha ao poder.

Convém, no entanto, assinalar que o engajamento intelectual francês manifestou-se sob a forma de um contra-poder. Vigilantes em relação ao uso do poder, os intelectuais engajados de esquerda posicionam-se contra as formas de autoritarismo e os abusos do poder político. Privilégio de uma democracia, o contra-poder exprime-se em momentos particulares de tensões sociais e de crises políticas, visando a limitar o próprio poder.

Consciência moral e consciência crítica, o intelectual (da Europa ocidental) forneceu um modelo de intelectual que, embora inadequado e ultrapassado, poderia servir de referência na análise do papel do intelectual brasileiro. Ora, no Brasil, segundo Sérgio Miceli, “o estado sempre exerceu uma incrível atração sobre os intelectuais”.[6] Num país onde reina desigualdades e injustiças e onde o poder, seja ele qual for, tende a corromper a liberdade de pensar e de agir, a função do intelectual não deveria ser, antes de mais nada, crítica e ética?

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Por HELENICE RODRIGUES DA SILVA*

* Professora Adjunta da UFPR. Autora de: Texte, action et histoire – réflexions sur le phénomène de l’engagement. Paris, L’Harmattan, 1995. Fragmentos da história intelectual – entre questionamentos e perspectivas, Campinas, Papirus, 2002. Publicado na REA, nº 29, outubro de 2003, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/029/029csilva.htm

[1] De origem judia, o capitão Alfred Dreyfus foi acusado de traição pelas forças armadas francesas por atos de espionagem em favor da Alemanha. A denúncia dessa injustiça fornece a ocasião para uma manifestação pública envolvendo os “intelectuais” de diferentes tendências políticas. A publicação do artigo de Émile Zola, “J’accuse”, no jornal “L’Aurore”, pedindo a revisão do processo, inaugura, assim, a história política dos intelectuais franceses.

[2] Ver, Rodrigues da Silva, H. Texte, action et histoire: réflexions sur le phénomène de l’engagement.

[3] De difícil tradução, esse termo designa, grosso modo, os companheiros de uma aventura política.

[4] Régis DEBRAY. Suíte et fin. Paris, Gallimard, 2000.

[5] Umberto ECO. “A função dos intelectuais”; In: Ëpoca, 3 de fevereiro de 2003, pp. 22, 23.

[6] Veja –on line. Entrevista com Sérgio Miceli, http//veja.abril.com.br250/701/entrevista.html. (3/4/2003).

DAQUI

sábado, julho 24, 2010

Sobre livros e leitores

“Minha vida tinha tomado o caminho errado, e meu contato com os homens não era mais do que um monólogo interior. Havia descido tão baixo que, se tivesse que escolher entre ficar apaixonado por uma mulher e ler um bom livro, eu preferia o livro”. KAZANTZAKIS [1]

“Eu amo (…) a humanidade, mas admiro-me de mim mesmo. Tanto mais amo a humanidade em geral, quanto menos amo as pessoas em particular, como indivíduos”. DOSTOIÉVSKI [2]

“Chegamos a tal ponto que a “vida viva” autêntica é considerada por nós quase um trabalho, um emprego, e todos concordamos no íntimo que seguir os livros é melhor”. DOSTOIÉVSKI [3]

“Esses monges talvez leiam demais, e quando estão excitados revivem as visões que tiveram nos livros”. ECO [4]

Há livros que são perigosos. Os ditadores e censores de todos os tipos que o digam. Não obstante, talvez o perigo maior esteja em transformá-los em objetos de culto, em suspender a dúvida e acatá-los como a verdade a ser proclamada. O tratamento religioso dos livros não se restringe àqueles que fundamentam as religiões, os quais são assumidos como a doutrina inquestionável, a verdade revelada; há autores profanos transformados em profetas e seus livros religiosamente cultuados como a última verdade proferida. E ai dos hereges que duvidarem da palavra profetizada e interpretada pelos especialistas, os seus guardiões.

É perigoso tomar os livros como se fosse a realidade. Se na ficção há lugar para personagens como D. Quixote, é triste o quixotismo moderno dos que vivem com os pés no chão e a cabeça nas nuvens e se mostram sempre ciosos de abstrair e restringir a conceitos a realidade dos homens concretos, de carne e osso, com suas qualidades e imperfeições. Estes são transformados em abstrações e/ou dilemas a serem superados pelo debate teórico. Quando só se consegue experienciar a realidade pela ótica dos livros, seus personagens fictícios adquirem vida própria e os modelos conceituais existentes em nossas cabeças passam a delimitar os personagens reais que caminham sobre o mundo.

Os que idolatram os livros não vêem a riqueza que há na simplicidade das relações humanas cotidianas concretas. O livro também induz à perdição, isto é, à perda do sentido do real. O apego exagerado aos livros é uma espécie de doença que potencializa a vaidade dos candidatos a gênios, os quais, cada vez mais, se isolam do mundo dos simples mortais. Os que se encontram no Olimpo, ocupados com a imortalidade, têm dificuldades de se reconhecer nos comuns, cujos pés e cabeça teimam em se firmar na terra.

Os que preferem os livros à companhia humana, ou que só conseguem dialogar com aqueles que se identificam com suas leituras, falam de amizade como se esta tivesse seu fundamento nas teorias, conceitos e ficções literárias. Eles são capazes de debater por horas sobre o significado da amizade, desde os clássicos da antiguidade, mas são incapazes de suportar o amigo de carne e osso se este o trás de volta à terra e lhe fala em linguagem espontânea e vulgar. Parece que se protegem contra os choques que as relações pessoais reais inevitavelmente causam. Uma coisa é discutir a dialética dos livros, outra é assumir as contradições inerentes ao humano.

Existe a necessidade das ilusões e os livros são um convite à imaginação. O ser humano é capaz de amar a humanidade em geral e até mesmo de se declarar disposto a morrer por esta, mas é profundamente incapaz de suportar o indivíduo concreto e específico. O próximo torna-se o distante, o conceito, a abstração. Há a dificuldade de assumir a realidade para si e nas relações com os demais. Precisa refugiar-se na imaginação e no devaneio da ficção.

Ler é importante, mas o fundamental ainda é tentar viver a vida plenamente.

[1] KAZANTZAKIS, Nikos. Zorba, o Grego. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1978, p. 97.

[2] DOSTOIÉVSKI, F. Os Irmãos Karamazov. São Paulo: Abril Cultural, 1970, p.48.

[3] DOSTOIÉVSKI, F. Memórias do subsolo e outros escritos. São Paulo: Editora Paulicéia, 1992, p. 185.

[4] ECO, Umberto. O Nome da Rosa. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de S. Paulo, 2003, p.117.

Extraído DAQUI

sábado, julho 17, 2010

A UDN vestida de azul e amarelo

Há 52 anos, um homem cunhou uma frase belíssima sobre um então candidato a presidente. “Juscelino não pode ser candidato, se candidato não pode ser eleito, se eleito não pode ser empossado, se empossado não pode governar.” O nome do sujeito era Carlos Lacerda. Homem absurdamente brilhante — certamente mais brilhante que a grande maioria da oposição de hoje –, mas também um dos maiores cancros que a sociedade brasileira já produziu. Felizmente, apesar dos apelos de Lacerda, Juscelino foi candidato, eleito, empossado e realizou um governo memorável.

O golpismo de Lacerda, no entanto, não acabou ali. Tinha atrás de si uma vitória, ser um dos principais responsáveis pelo suicídio de Getúlio Vargas. Já tinha conseguido alguma coisa. Nos dez anos seguintes, Lacerda pediu incessantemente o golpe militar. Foi atendido em 1964, mas foi também uma de suas primeiras vítimas.

Carlos Lacerda morreu em 1977, politicamente destruído, vários anos depois de o partido de que era símbolo, a UDN, ter sido extinto pela ditadura da qual foi um dos principais artífices. Os militares sabiam que não podiam contar com aqueles golpistas. Aquelas vivandeiras eram muito pouco confiáveis.

Mas agora, quase 30 anos depois, o seu cadáver de triste lembrança foi exumado pela oposição tucana. Desesperados diante do que tudo indica será uma derrota incontestável, os tucanos sobem às tribunas para pedir, sem nenhuma vergonha, o golpe puro e simples, como o venerável senador sergipano José Almeida Lima, ex-prefeito e homem hoje rico, que utilizou a tribuna do Senado na semana passada para declarar que “não podemos tolerar a vitória da corrupção” e que o governo de Lula “tem que ser interrompido”. Assim como a UDN naqueles tempos, o discurso tenta usar disfarces democráticos. Mas as entrelinhas são grandes demais. E são golpistas. O raciocínio é simples: se a gente não consegue ganhar no voto, vai ganhar no grito.

E assim cai o véu. O jogo democrático não interessa a eles. O discurso da vontade soberana do povo, para eles, é só isso: discurso. Vestindo a túnica puída da UDN, o PSDB sobe às tribunas pedindo o golpe. O povo, para eles, só sabe votar quando elege um tucano. Quando deixa claro que acredita no governo e que acha que, com Lula presidente, vai comer algo melhor que chuchu ao molho FHC, os neo-udenistas se acham no direito de recorrer ao golpe e à destruição da democracia. Essa é a nova UDN, vestida de azul e amarelo.

Durante os primeiros anos do governo Lula, o tucanato elevava a voz para falar do seu republicanismo. Dir-se-ia serem vestais a serviço da democracia. Se não havia diálogo com o governo, era porque o governo Lula tinha tendências autoritárias, tinha voltado as costas para o social (é engraçado e estranho ouvir o PSDB dizer isso, mas na oposição a gente pode falar o que quiser). Com o escândalo do mensalão, eles passaram a ter algo mais concreto nas mãos. Mas a verdade é que a nova UDN ainda não está acostumada a fazer oposição, e errou na medida.

Por isso o ódio udenista da oposição passou dos limites. Com sua histeria e ferocidade, acabaram criando uma certa repulsa por parte de quem interessa: o povo. O que as últimas pesquisas do Ibope, do Datafolha e do Vox Populi indicam é que, apesar de tudo, apesar de ano e meio de campanha cerrada, o povo continua dizendo não às múmias udenistas. Apesar de todos os ataques a Lula dos últimos meses, o povo brasileiro continua reconhecendo uma coisa simples: para ele, o governo Lula foi o melhor dos últimos tempos.

Enquanto a oposição bate há tempos e de maneira burra na tecla do baixo crescimento econômico do Brasil, o que o povo entende é outra coisa: que as classes mais baixas, nesses quatro anos, melhoraram e muito de vida. O que ele percebeu — e por isso é chamado de ignorante — é que há uma diferença ideológica clara entre o governo Lula e a nova UDN, diferença traduzida no crescimento econômico para quem mais precisa dele. É por isso que hoje, ao contrário do que acontecia até o início de 2005, a oposição abandonou o discurso de que Lula voltou as costas para os pobres. Não que tivesse algum pudor em apelar para isso: mas a dissonância cognitiva é tão grande que até eles, nesta reta de final de campanha tentando tirar o último caldo de virtualmente todos os escândalos acontecidos no país nos últimos tempos, sabem que não funciona mais.

Mas o pior, mesmo, é ver o deboche com que a nova UDN trata instituições que dizia sagradas, como o voto popular. São capazes de insinuar uma tragédia para o Brasil, a destruição de tudo o que foi construído nos últimos 20 anos — inclusive com a sua participação, por sinal nada desprezível — apenas para se ver novamente no poder. Aquele republicanismo tão propalado se revelou uma farsa, como a democracia udenista nunca passou de falácia, e como a recém-descoberta honestidade do PSDB é tão falsa quanto a crença no voto soberano.

Perdendo de vez seus escrúpulos, a nova UDN se igualou ao seu aliado, Garotinho (aliança justificada pelo príncipe dos sociólogos aos dizer que “eu também fiz alianças, assim como Lula”), cujos conselhos programáticos para Alckmin são os de deixar de usar fitinhas do Senhor do Bonfim e evitar tomar banho de pipoca, coisa de altíssimo nível político; o mesmo ser deletério e que há alguns meses tentou fazer do Brasil uma república de bananas, pedindo observação internacional para as eleições, em meio à greve de fome mais ridícula de todos os tempos.

A UDN que se alcunha PSDB, hoje, é uma vergonha para o Brasil.

Originalmente publicado em 23 de outubro de 2006

Extraído DAQUI

quinta-feira, julho 08, 2010

As Três Fontes e as Três partes Constitutivas do Marxismo

Acredito que Marx tenha concebido uma das doutrinas mais belas e reveladoras das relações do homem com a História. O marxismo tanta vezes rechaçado, mal compreendido, tido por ciência e tendência política de radicais e tiranos é, quando entendido e estudado, uma das concepções mais humanizantes que já surgiram. Ele explica o por quê da desigualdade entre os homens. Mostra acima de tudo que a história é feita de lutas. O mundo não possui uma configuração final, como se ele tivesse sido concebido assim por vontade, uma força absoluta e que não pode ser mudada. Marx mostra que o mundo não "é asssim", mas "está assim". Portanto, é possível transformá-lo por intermédio de uma praxis atuante e não conformativa. No texto abaixo, Vladimir Lenin, um dos principais pensadores do marxismo no século XX, nos dá uma aula extraordinária de onde emana o marxismo. Ou seja, quais sãos as suas fontes.

Apenas uma história antes do texto: Ontem fui a um shopping aqui de Brasília e, como sempre faço, decidi ir a uma livraria. Gosto das livrarias. O ambiente me permite ficar lá "vagabundamente" folheando os livros. Estava olhando os lançamentos quando me deparei com o seguinte título: "Lênin, Stálin, Hitler - A era da catástrofe social", do liberal americano Robert Gellately (CAPA). Não cheguei a folhear o livro, pois fui tomado de um asco terrível. Pensei: "Pôr em paralelo Lênin e Hitler... Liberal infame". Manipular fatos históricos e vender meias verdades é um ato criminoso. O leitor menos atento e que não conhece a história soviética acaba por colocar na mesma balança os três nomes que estão ligados inextricavelmente à história do século XX. Mas não me espanta quando eu vejo uma obra "tendenciosa" como esta. Quando olhei para o livro, lembrei da frase de Lênin presente no texto abaixo: "A doutrina de Marx suscita em todo o mundo civilizado a maior hostilidade e o maior ódio de toda a ciência burguesa (tanto a oficial como a liberal), que vê no marxismo um a espécie de "seita perniciosa". E não se pode esperar outra atitude, pois, numa sociedade baseada na luta de classes não pode haver ciência social "imparcial". De uma forma ou de outra, toda a ciência oficial e liberal defende a escravidão assalariada, enquanto o marxismo declarou uma guerra implacável a essa escravidão". Leiamos

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Por V. I. Lénine Março de 1913

A doutrina de Marx suscita em todo o mundo civilizado a maior hostilidade e o maior ódio de toda a ciência burguesa (tanto a oficial como a liberal), que vê no marxismo um a espécie de "seita perniciosa". E não se pode esperar outra atitude, pois, numa sociedade baseada na luta de classes não pode haver ciência social "imparcial". De uma forma ou de outra, toda a ciência oficial e liberal defende a escravidão assalariada, enquanto o marxismo declarou uma guerra implacável a essa escravidão. Esperar que a ciência fosse imparcial numa sociedade de escravidão assalariada seria uma ingenuidade tão pueril como esperar que os fabricantes sejam imparciais quanto à questão da conveniência de aumentar os salários dos operários diminuindo os lucros do capital.

Mas não é tudo. A história da filosofia e a história da ciência social ensinam com toda a clareza que no marxismo não há nada que se assemelhe ao "sectarismo", no sentida de uma doutrina fechada em si mesma, petrificada, surgida à margem da estrada real do desenvolvimento da civilização mundial. Pelo contrário, o gênio de Marx reside precisamente em ter dado respostas às questões que o pensamento avançado da humanidade tinha já colocado. A sua doutrina surgiu como a continuação direta e imediata das doutrinas dos representantes mais eminentes da filosofia, da economia política e do socialismo. A doutrina de Marx é onipotente porque é exata. É completa e harmoniosa, dando aos homens uma concepção, integral do mundo, inconciliável com toda a supertição, com toda a reação, com toda a defesa da opressão burguesa. O marxismo é o sucessor legítimo do que de melhor criou a humanidade no século XIX: a filosofia alemã, a economia política inglesa e o socialismo francês. Vamos deter-nos brevemente nestas três fontes do marxismo, que são, ao mesmo tempo, as suas três partes constitutivas.

I

A filosofia do marxismo é o materialismo. Ao longo de toda a história moderna da Europa, e especialmente em fins do século XVIII, em França, onde se travou a batalha decisiva contra todas as velharias medievais, contra o feudalismo nas instituições e nas idéias, o materialismo mostrou ser a única filosofia conseqüente, fiel a todos os ensinamentos das ciências naturais, hostil à supertição, à beatice, etc. Por isso, os inimigos da democracia tentavam com todas as suas forças "refutar", desacreditar e caluniar o materialismo e defendiam as diversas formas do idealismo filosófico, que se reduz sempre, de um modo ou de outro, à defesa ou ao apoio da religião.

Marx e Engels defenderam resolutamente o materialismo filosófico, e explicaram repetidas vezes quão profundamente errado era tudo quanto fosse desviar-se dele. Onde as suas opiniões aparecem expostas com maior clareza e pormenor é nas obras de Engels Ludwig Feuerbach e Anti-Dübring, as quais - da mesma forma que o Manifesto Comunista - são os livros de cabeceira de todo o operário consciente. Marx não se limitou, porém, ao materialismo do século XVIII; pelo contrário, levou mais longe a filosofia. Enriqueceu-a com as aquisições da filosofia clássica alemã, sobretudo do sistema de Hegel, o qual conduzira por sua vez ao materialismo de Feuerbach. A principal dessas aquisições foi a dialética, isto é, a doutrina do desenvolvimento na sua forma mais completa, mais profunda e mais isenta de unilateralidade, a doutrina da relatividade do conhecimento humano, que nos dá um reflexo da matéria em constante desenvolvimento. As descobertas mais recentes das ciências naturais - o rádio, os elétrons, a transformação dos elementos - confirmaram de maneira admirável o materialismo dialético de Marx, a despeito das doutrinas dos filósofos burgueses, com os seus "novos" regressos ao velho e podre idealismo.

Aprofundando e desenvolvendo o materialismo filosófico, Marx levou-o até ao fim e estendeu-o do conhecimento da natureza até o conhecimento da sociedade humana. O materialismo histórico de Marx é uma conquisto formidável do pensamento científico. Ao caos e à arbitrariedade que até então imperavam nas concepções da história e da política, sucedeu uma teoria científica notavelmente integral e harmoniosa, que mostra como, em conseqüência do crescimento das forças produtivas, desenvolve-se de uma forma de vida social uma outra mais elevada, como, por exemplo, o capitalismo nasce do feudalismo.

Assim, como o conhecimento do homem reflete a natureza que existe independentemente dele, isto é, a matéria em desenvolvimento, também o conhecimento social do homem (ou seja: as diversas opiniões e doutrinas filosóficas, religiosas, políticas, etc.) reflete o regime econômico da sociedade. As instituições políticas são a superestrutura que se ergue sobre a base econômica. Assim, vemos, por exemplo, como as diversas formas políticas dos Estados europeus modernos servem para reforçar a dominação da burguesia sobre o proletariado. A filosofia de Marx é o materialismo filosófico acabado, que deu à humanidade, à classe operaria sobretudo, poderosos instrumentos de conhecimento.

II

Depois de ter verificado que o regime econômico constitui a base sobre a qual se ergue a superestrutura política, Marx dedicou-se principalmente ao estudo deste regime econômico. A obra principal de Marx, O Capital, é dedicada ao estudo do regime econômico da sociedade moderna, isto é, da sociedade capitalista. A economia política clássica anterior a Marx tinha-se formado na Inglaterra, o país capitalista mais desenvolvido. Adam Smith e David Ricardo lançaram nas suas investigações do regime econômico os fundamentos da teoria do valor-trabalho. Marx continuou sua obra. Fundamentou com toda precisão e desenvolveu de forma conseqüente aquela teoria. Mostrou que o valor de qualquer mercadoria é determinado pela quantidade de tempo de trabalho socialmente necessário investido na sua produção.

Onde os economistas burgueses viam relações entre objetos (troca de umas mercadorias por outras), Marx descobriu relações entre pessoas. A troca de mercadorias exprime a ligação que se estabelece, por meio do mercado, entre os diferentes produtores. O dinheiro indica que esta ligação se torna cada vez mais estreita, unindo indissoluvelmente num todo a vida econômica dos diferentes produtores. O capital significa um maior desenvolvimento desta ligação: a força de trabalho do homem torna-se uma mercadoria. O operário assalariado vende a sua força de trabalho ao proprietário de terra, das fábricas, dos instrumentos de trabalho. O operário emprega uma parte do dia de trabalho para cobrir o custo do seu sustento e de sua família (salário); durante a outra parte do dia, trabalha gratuitamente, criando para o capitalista a mais-valia, fonte dos lucros, fonte da riqueza da classe capitalista.

A teoria da mais-valia constitui a pedra angular da teoria econômica de Marx. O capital, criado pelo trabalho do operário, oprime o operário, arruína o pequeno patrão e cria um exercito de desempregados. Na indústria, é imediatamente visível o triunfo da grande produção; mas também na agricultura deparamos com o mesmo fenômeno: aumenta a superioridade da grande exploração agrícola capitalista, cresce o emprego de maquinaria, a propriedade camponesa cai nas garras do capital financeiro, declina e arruína-se sob o peso da técnica atrasada. Na agricultura, o declínio da pequena produção reveste-se de outras formas, mais esse declínio é um fato indiscutível.

Esmagando a pequena produção, o capital faz aumentar a produtividade do trabalho e cria uma situação de monopólio para os consórcios dos grandes capitalistas. A própria produção vai adquirindo cada vez mais um caráter social - centenas de milhares e milhões de operários são reunidos num organismo econômico coordenado - enquanto um punhado de capitalistas se apropria do produto do trabalho comum. Crescem a anarquia da produção, as crises, a corrida louca aos mercados, a escassez de meios de subsistência para as massas da população. Ao fazer aumentar a dependência dos operários relativamente ao capital, o regime capitalista cria a grande força do trabalho unido.

Marx traçou o desenvolvimento do capitalismo desde os primeiros germes da economia mercantil, desde a troca simples, até às suas formas superiores, até à grande produção. E de ano para ano a experiência de todos os países capitalistas, tanto os velhos como os novos, faz ver claramente a um numero cada vez maior de operários a justeza desta doutrina de Marx. O capitalismo venceu no mundo inteiro, mas, esta vitória não é mais do que o prelúdio do triunfo do trabalho sobre o capital.

III

Quando o regime feudal foi derrubado e a "livre" sociedade capitalista viu a luz do dia, tornou-se imediatamente claro que essa liberdade representava um novo sistema de opressão e exploração dos trabalhadores. Como reflexo dessa opressão e como protesto contra ela, começaram imediatamente a surgir diversas doutrinas socialista. Mas, o socialismo primitivo era um socialismo utópico. Criticava a sociedade capitalista, condenava-a, amaldiçoava-a, sonhava com a sua destruição, fantasiava sobre um regime melhor, queria convencer os ricos da imoralidade da exploração.

Mas, o socialismo utópico não podia indicar uma saída real. Não sabia explicar a natureza da escravidão assalariada no capitalismo, nem descobrir as leis do seu desenvolvimento, nem encontrar a força social capaz de se tornar a criadora da nova sociedade. Entretanto, as tempestuosas revoluções que acompanharam em toda a Europa, e especialmente em França, a queda do feudalismo, da servidão, mostravam cada vez com maior clareza que a luta de classes era a base e a força motriz de todo o desenvolvimento. Nenhuma vitória da liberdade política sobre a classe feudal foi alcançada sem uma resistência desesperada. Nenhum país capitalista se formou sobre uma base mais ou menos livre, mais ou menos democrática, sem uma luta de morte entre as diversas classes da sociedade capitalista.

O gênio de Marx está em ter sido o primeiro a ter sabido deduzir daí a conclusão implícita na história universal e em tê-la aplicado conseqüentemente. Tal conclusão é a doutrina da luta de classes.

Os homens sempre foram em política vítimas ingênuas do engano dos outros e do próprio e continuarão a sê-lo enquanto não aprendem a descobrir por trás de todas as frases, declarações e promessas morais, religiosas, políticas e sociais, os interesses de uma ou de outra classe. Os partidários de reformas e melhoramentos ver-se-ão sempre enganados pelos defensores do velho, enquanto não compreenderem que toda a instituição velha, por mais bárbara e apodrecida que pareça, se mantém pela força de umas ou de outras classes dominantes. E para vencer a resistência dessas classes só há um meio: encontrar na própria sociedade que nos rodeia, educar e organizar para a luta, os elementos que possam - e, pela sua situação social, devam - formar a força capaz de varrer o velho e criar o novo.

Só o materialismo filosófico de Marx indicou ao proletariado a saída da escravidão espiritual em que vegetaram até hoje todas as classes oprimidas. Só a teoria econômica de Marx explicou a situação real do proletariado no conjunto do regime capitalista. No mundo inteiro, da América ao Japão e da Suécia à África do Sul, multiplicam-se as organizações independentes do proletariado. Este se educa e instrui-se travando a sua luta de classe; liberta-se dos preconceitos da sociedade burguesa, adquire uma coesão cada vez maior, aprende a medir o alcance dos seus êxitos, temperam as suas forças e cresce irresistivelmente.

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