quinta-feira, julho 29, 2010

O intelectual, entre mitos e realidades

Convertido em objeto de estudo, no momento mesmo em que o modelo do intelectual engajado, na versão francesa, perde a sua eficácia, esse novo ator histórico vem suscitando debates e questionamentos. Presente na luta política ao longo dos três quartos do século XX, portanto, participando ativamente da História, o intelectual engajado desaparece da cena pública no início dos anos 1980, em razão mesmo das mudanças de paradigmas intelectuais e das transformações conjunturais. O enfraquecimento das ideologias do progresso e a ascensão dos valores individualistas explicam, em grande parte, o final de um modelo de intelectual que buscava, através de seus atos públicos, aliar moral e política. Na verdade, o engajamento intelectual, sob a forma de combates políticos (contra as opressões e as injustiças), pretendeu reduzir a distância que separa pensamento e ação.

Voltaire, Diderot e os Enciclopedistas constituem a gênese dos denominados “intelectuais” que, defendendo valores universais (justiça, verdade), se organizam como grupo social no final do século XIX, no momento do “caso Dreyfus”.[1] Por intelectuais são, então, designados artistas, professores, escritores, ou seja, pensadores que, já tendo uma notoriedade, intervêm no debate público, em nome de valores morais e políticos.

Desempenhando um papel ético e político, os intelectuais franceses participam da marcha de História, situando-se tanto à esquerda como à direita do jogo político. A luta contra o nazismo os predispõe a passar à ação. Conseqüentemente, a partir do final da Segunda Guerra, a prática do engajamento transforma-se em uma doutrina da ação.

Através de um primeiro manifesto, publicado no primeiro número da revista Les Temps Modernes (outubro de 1945) [2], Sartre lança as premissas para uma ação por parte dos intelectuais. Situando-se em seu tempo, o intelectual engajado deve se definir pela sua posição crítica em relação ao mundo, afirmando-se como o representante das forças progressistas e como o defensor de uma causa humanitária.

No entanto, a abnegação dos princípios morais em detrimento das paixões políticas parece ter sido uma constância na história dos intelectuais franceses, a partir desse momento. A conjuntura histórica no final da Segunda Guerra (o constato mesmo da derrota da razão em Auschwitz, a vitória do comunismo sobre o fascismo) configura um novo esquema de pensamento e uma nova maneira de se pensar uma ação intelectual. A partir de então, uma nova prática intelectual passa a ser adotada; o moralismo do passado transforma-se em uma práxis coletiva: o engajamento político. Mas, se o engajamento pressupõe uma ação do intelectual na História, visando a contribuir para mudar a sociedade, essa ação só poderá se realizar a partir de um projeto revolucionário. O engajamento será, portanto, uma resposta dos intelectuais à mística do comunismo. O intelectual francês engajado do pós-guerra posiciona-se, então, ora a serviço do partido (os “intelectuais orgânicos”), ora em sua periferia (os “compagnons de route” [3]). Simpatizando com o partido sem aderir a ele, Sartre encarna, admiravelmente, nos anos 1940 e 1950, esse último modelo. Variante do engajamento, o profetismo intelectual será portador de uma utopia revolucionária.

Se no momento das guerras de descolonização (na Indochina e na Argélia), os intelectuais franceses assumem verdadeiramente uma missão (de serem consciência moral), engajando-se na defesa dos oprimidos da História, por sua vez, no período stalinista, uma grande parte dos mesmos pecam pela sua omissão na denúncia dos crimes e dos gúlags.

Ora, a morte das utopias, assinalando o final desse modelo, é responsável pela crise de representação do intelectual. Assim, desde os anos 1980, os intelectuais franceses denunciam não só o sistema totalitário soviético e a teoria teológica-política, mas realizam uma verdadeira autocrítica responsabilizando, particularmente, Sartre pelos erros e desvios intelectuais.

Nesses tempos atuais de “desencantamentos” políticos e de imprevisibilidades históricas, como, então, apreender a missão atribuída ao “intelectual”? Desprovido de sua função de oráculo, o intelectual francês como membro de um grupo social afasta-se da política, voltando-se para a sua principal tarefa: a de produção e de transmissão do conhecimento.

Se, no contexto histórico francês, o seu papel de “guia espiritual” (no momento do pós-guerra) o induziu a pactuar com dogmas e com supostas “verdades”, o fim das ideologias do progresso o conduziu a um relativo silêncio. De “profeta” da revolução, (até metade dos anos 1970), o intelectual francês converteu-se em defensor (abstrato) dos direitos do homem.

O declínio do intelectual francês, diagnosticado através de numerosos estudos, deve-se, segundo os mesmos, às mutações conjunturais e intelectuais. Na opinião de Régis Debray [4], a inversão final de todos os valores que haviam inspirado o nascimento de sua história, faz com que o intelectual francês atinja o seu fim.

Em suma, a condição mesmo do intelectual, no contexto dos países ocidentais, ou seja, o seu papel na sociedade, derivando de conjunturas históricas precisas, evolui de acordo com as próprias mutações intelectuais e políticas. Desse modo, cada época parece fornecer um modelo específico de intelectual.

Fruto de uma realidade sócio-cultural específica, o intelectual, no sentido amplo do termo, encontra-se intimamente ligado a seu contexto histórico. Somente a particularidade desse contexto poderá revelar a singularidade desse intelectual. Para melhor apreendê-lo, torna-se, então, necessário mapear suas origens. Nos limites desse pequeno texto, apenas algumas questões podem ser colocadas. Como ele emerge em uma dada sociedade? Como ele pode ser entendido e definido? Trata-se de uma simples categoria sócio-profissional, pressupondo uma atividade intelectual ou de um simples grupo social (a elite erudita)? No estudo do caso brasileiro, o substantivo intelectual teria mais o valor de um conceito do que de um comportamento? A quem essa categoria se aplicaria?

Se na Europa Ocidental, o termo intelectual, tradicionalmente, designa uma larga fração de pensadores, constituída por pesquisadores, professores universitários, escritores, cineastas, etc., que exerce uma atividade criativa nas ciências e nas artes, nos Estados Unidos, esse termo se aplica, em geral, ao chamado mundo “acadêmico”, ou seja, àquele pesquisador e/ou professor universitário, responsável pela produção e transmissão do conhecimento. No Brasil, o termo parece hesitar entre esses dois modelos.

Sem tradição de engajamento, o intelectual brasileiro, que, aparentemente não reivindica uma função ética (de consciência moral) parece aproximar-se do modelo americano. Em geral, a produção de idéias e a transmissão do conhecimento são tidas como condições “sine qua non” para considerar como pertencentes à categoria de intelectual, os escritores, os acadêmicos e os cientistas.

No entanto, como afirma Umberto Eco, “o intelectual tem de ser a consciência crítica do grupo. Ele existe para incomodar”.[5] A esse propósito, algumas questões merecem ser levantadas. A primeira: os intelectuais brasileiros representariam, verdadeiramente, a consciência crítica de um grupo? A segunda: o pensamento crítico não deveria constituir o primeiro atributo para que acadêmicos, escritores e cientistas fossem designados intelectuais?

Sem dúvida, esses breves questionamentos remetem aos tradicionais debates que, desde o início do século XX, instigaram os intelectuais a enfocar sua relação com o poder.

Segundo A. Gramsci, exercer uma atividade intelectual pressupõe exercer um dever crítico da cultura. A principal tarefa dos intelectuais constituiria, então, em estabelecer uma relação crítica entre a cultura, as idéias e a política. Para Sartre, a ação do intelectual, enquanto consciência que escolhe livremente agir na sociedade, deveria produzir mudanças radicais na sociedade. Se, para Foucault, a função crítica foi plenamente exercida pelos intelectuais engajados no domínio político, entre o saber e o poder existiria uma correlação estreita. Ele, aliás, criticou, sistematicamente, o intelectual que se declara mestre da verdade e da justiça, aquele que pretende resistir aos efeitos repressivos do poder. Foucault denunciou, igualmente, a pretensão do discurso dos intelectuais de caráter profético e universal, insistindo sobre a idéia de que a verdade não é estranha ao poder.

Convém, no entanto, assinalar que o engajamento intelectual francês manifestou-se sob a forma de um contra-poder. Vigilantes em relação ao uso do poder, os intelectuais engajados de esquerda posicionam-se contra as formas de autoritarismo e os abusos do poder político. Privilégio de uma democracia, o contra-poder exprime-se em momentos particulares de tensões sociais e de crises políticas, visando a limitar o próprio poder.

Consciência moral e consciência crítica, o intelectual (da Europa ocidental) forneceu um modelo de intelectual que, embora inadequado e ultrapassado, poderia servir de referência na análise do papel do intelectual brasileiro. Ora, no Brasil, segundo Sérgio Miceli, “o estado sempre exerceu uma incrível atração sobre os intelectuais”.[6] Num país onde reina desigualdades e injustiças e onde o poder, seja ele qual for, tende a corromper a liberdade de pensar e de agir, a função do intelectual não deveria ser, antes de mais nada, crítica e ética?

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Por HELENICE RODRIGUES DA SILVA*

* Professora Adjunta da UFPR. Autora de: Texte, action et histoire – réflexions sur le phénomène de l’engagement. Paris, L’Harmattan, 1995. Fragmentos da história intelectual – entre questionamentos e perspectivas, Campinas, Papirus, 2002. Publicado na REA, nº 29, outubro de 2003, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/029/029csilva.htm

[1] De origem judia, o capitão Alfred Dreyfus foi acusado de traição pelas forças armadas francesas por atos de espionagem em favor da Alemanha. A denúncia dessa injustiça fornece a ocasião para uma manifestação pública envolvendo os “intelectuais” de diferentes tendências políticas. A publicação do artigo de Émile Zola, “J’accuse”, no jornal “L’Aurore”, pedindo a revisão do processo, inaugura, assim, a história política dos intelectuais franceses.

[2] Ver, Rodrigues da Silva, H. Texte, action et histoire: réflexions sur le phénomène de l’engagement.

[3] De difícil tradução, esse termo designa, grosso modo, os companheiros de uma aventura política.

[4] Régis DEBRAY. Suíte et fin. Paris, Gallimard, 2000.

[5] Umberto ECO. “A função dos intelectuais”; In: Ëpoca, 3 de fevereiro de 2003, pp. 22, 23.

[6] Veja –on line. Entrevista com Sérgio Miceli, http//veja.abril.com.br250/701/entrevista.html. (3/4/2003).

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