terça-feira, fevereiro 11, 2020

"O Parasita" e a crítica às verticalidades


 
Sou um crítico do festival do Oscar. Todo início de ano, há uma imensa propalação do evento, como se este referendasse o que foi produzido em matéria de cinema. As produções indicadas são alçadas ao panteão insofismável das obras definitivas. Na minha limitada maneira de ver, apenas alguns dos filmes indicados podem ser colocados no rol das grandes obras. Há muito Hollywood e, em muitos casos, pouco cinema nessas obras. Resumindo: o Oscar é um festival feito para as produções estadunidenses. O objetivo é robustecer o imperialismo daquela sociedade, ou seja, sua indústria cultural.

Há cinema de qualidade sendo produzido em outros locais do Globo. Mas, num aceno de máxima sensatez, até mesmo os enfunados norte-americanos parecem reconhecer isso. Essa tese pode ser fortalecida com a concessão que foi feita ao excelente filme sul-coreano O Parasita (do diretor Bong Joon-ho), uma obra provocante e de grande qualidade; rica em metáforas; em possibilidades temáticas; repleta de simbolismos; e detalhes psicológicos, sociológicos, filosóficos, econômicos, urbanísticos etc.

Primeiramente, é preciso dizer que O Parasita é uma experiência perturbadora. O filme nos passa a ideia inicial de uma comédia de mal gosto. Aos poucos, vai ganhando contornos dramáticos. Até ganhar cintilações trágicas. À medida que as cenas se desenrolam, há uma mal-estar provocado pela esperteza da família. São verdadeiros “parasitas” no sentido mais elementar. Aproveitam-se de um hospedeiro para extrair-lhe os nutrientes. Alimentam-se do organismo alheio, fazendo disso uma ação necessária, fundamental. Ignoram a condição do hospedeiro. Pensam apenas na satisfação de suas necessidades. Parasita é um nome forte, repleto de efeitos.

Um pai de família pobre, juntamente com a esposa e dois filhos (um casal), se equilibram financeiramente. Nesse sentido, há uma crítica sendo feita ao modo de organização social da, aparentemente, rica Coreia – ao contrária de sua irmã do Norte. A família vive em um espaço, como se fosse inseto, abaixo da superfície da rua, em Seul, capital da rica Coreia do Sul. A alimentação é irregular. Na luminosa e tecnológica Coreia, eles não têm serviço de wi-fi. Precisam capturar a senha dos estabelecimentos que oferecem o serviço gratuitamente aos clientes. Recebem os dejetos dos bêbados que urinam na rua.

Surge uma oportunidade para que um dos filhos da família desse aulas de inglês para a filha de uma família rica. É justamente nesse ponto que acontece o salto imaginativo e malandragem da família. Todos os integrantes da família assumem funções na casa da rica família após eliminarem os obstáculos de forma insensível. Os desdobramentos são os mais inusitados possíveis, tornando O Parasita uma obra cujas possibilidades da fantasia e do inverossímil são usados em doses certas.

É possível afirmar que as escadas possuem uma função fundamental na produção de Bong. Há um trabalho constante com a verticalidade. Há uma cena emblemática no filme que nos remete à metáfora da estruturação das sociedades capitalistas. Após uma chuva terrível que causa prejuízos inestimáveis para os pobres moradores das periferias da capital sul-coreana, o pai e os dois filhos descem uma escadaria. A cena sugere que eles sempre descem: do bairro rico para o bairro pobre; do ponto alto para o ponto baixo; do limite da rua, para a caserna onde moram. Trata-se da representação do esquematismo das classes sociais sob o capitalismo, fazendo lembrar a música do Chico Sciense e Nação Zumbi, A cidade.  “A cidade não para/ a cidade só cresce/ o de cima sobe/ e o debaixo desce”.

O Parasita ganhou o Oscar de melhor filme do ano de 2019. Até mesmo a autossuficiente Hollywood se dobrou diante da beleza e do emblematismo da obra.  Os americanos sempre defensores de que estão no ponto mais alto entre todas as sociedades globais, tiveram que descer à superfície e perceber que há outros olhares, além dos deles.