quinta-feira, dezembro 26, 2013

Algumas considerações sobre o "Punk Rock" e o documentário "Botinada - a origem do 'punk' no Brasil"


Assisti ao excelente documentário Botinada - a origem do punk no Brasil, 2006, dirigido pelo polivalente Gastão Moreira. O documentário busca retratar a história do movimento punk dos anos de 1976 a 1984 aqui no Brasil. Foram reunidas mais de 200 horas de vídeo; 77 pessoas foram entrevistadas ao longo de quatro anos de um trabalho árduo a fim de reunir documentos - fotografias, reportagens, imagens raras, depoimentos das personagens que fizeram a história do punk no Brasil.

É importante dizer que o punk apesar de ter surgido como movimento em meados dos anos 70, teve a sua gestação com bandas como MC5, com suas letras repletas de veneno político. É só ouvir a maravilhosa Kick out of the jams. Está tudo lá! Outra importante banda são os The Stooges, a banda do imortal Iggy Pop, que se consagrou pelo som ruidoso, de letras fáceis, melodia pegajosa e irreverência louca no palco. É só ouvir Down on the street, 1969, I wanna be your dog. Ou ainda o The Kinks e a maravilhosa All Day and All of the Night. Ou seja, podemos afirmar que essas e outras bandas são responsáveis por um proto-movimento que criava uma estética de irreverência, agressividade, tonalidades pegajosas, letras provocantes que "agrediam" o mainstream.

Mais para frente, por volta de 1971 ou 1972, o New York Dolls, que possuía uma estética bastante provocante foi formado. Algumas de suas músicas atestam isso como, por exemplo, Personality Crisis ou Jet Boy. O New York Dolls influenciaria uma série de bandas, entre elas o The Ramones. Devem ser citados ainda Blondie, Johnny Thunders and the Heartbreakers, The Cramps, Talking Heads.

Todavia, o que fermentou a explosão do Punk na Inglaterra? Pode se afirmar entre outras causas: a década de 70 enfrentava uma séria crise econômica. O Estado keynesiano havia entrado em agonia. Não havia possibilidade de continuá-lo. Era preciso "enxugar" o social do Estado. Foi a época de fundação do neoliberalismo por Margaret Tchatcher, que tornaria primeira ministra da Inglaterra em 1979. Entre as medidas adotadas por ela estavam a desregulamentação do setor financeiro, privatização das empresas estatais, flexibilização das leis e do mercado de trabalho. Ou seja, as consequências das medidas tomadas mais tarde por Tchatcher já vinham sendo experimentadas pelos jovens em anos anteriores. Deriva daí a premissa social do punk. Ou seja, os jovens queriam por meio da rebeldia e de uma estética plástica "apavorante" protestar contra o sistema capitalista. O desemprego, o empobrecimento, as políticas sociais sendo desmanteladas pelos tentáculos do noliberalismo jogou milhões na miséria. Era necessário "chocar" e subverter a ordem. 

É nesse contexto que vão surgir duas bandas que revolucionariam os destinos do punk: o The Sex Pistols e o The Clash. Outras bandas surgidas nesse mesmo contexto inglês foram importantes. Entre elas ressaltam-se o The Damned e Buzzcocks. Estas bandas, rapidamente, exportaram uma atitude provocativa para o mundo. As roupas eram rasgadas; broches pela roupa; em alguns, era possível maquiagens anômalas; cortes de cabelos aberrantes; um palavreado eivado por palavrões; e muita, mas muita atitude. O The Sex Pistols, por exemplo, representa o que foi a atitude punk. Vale falar ainda do The Clash, que tinha uma vertente mais política e que se enveredou por outras sonoridades. O álbum London Calling, de 1979, é considerado um dos maiores discos da história.

O punk era uma estação necessária contra o rock alternativo. Pode se afirmar que a opção pela música barulhenta, rápida, de acordes fáceis e letras simples e provocativas estão firmadas em um voluntarismo estético. Um exemplo disso é o primeiro disco do The Ramones, de 1976, que possuía quatorze músicas em vinte nove minutos. Fazer uma música com essa tessitura era uma forma de insultar o quadro comercial oficial.

O punk se desintegra rapidamente. Das suas entranhas brotou a New Age, ou nova onda, que trazia uma estética mais comportada. Mas é possível observar que outras bandas deram seguimento àquilo que era necessário ao movimento punk: ou seja, a sonoridade e a contestação. Um exemplo disso são bandas como Dead Kennedys, Bad Brains, The Germs, Black Flag, entre outras. A New Wave é aquilo que pode se chamar de versão comercial do punk. Uma enxurrada de bandas surgiram nessa época: Elvis Costello, The B-52's, The Jam, Tears for Fears, Duran Duran, Devo; e bandas que inaugurariam um movimento mesclado por um visual gótico-surrealista: Echo and the Bunnymen, Joy Division, The Cure, New Order, The Smiths, U2, The Sonic Youth. O punk continuaria a destilar o seu poder e influenciaria o Grunge da década de 90. O que são bandas como Alice in Chains, The Melvins, Mudhoney ou Nirvana e suas respectivas estéticas, senão uma continuidade desse movimento?

Este cenário serve de pano de fundo para mostrar como se deu o nascimento do movimento punk aqui no Brasil. As primeiras bandas surgiram em 1977, influenciadas por aquilo que estava acontecendo na Europa e nos Estados Unidos. No documentário fica claro que o nascimento do punk se deu em São Paulo, embora outras cidades como Brasília e Salvador reivindiquem essa origem. Entre as bandas que são responsáveis por isso podem ser apontadas a Banda do Lixo e o Joelho de Porco

Mais tarde, surgiriam as bandas que sedimentariam o punk como um movimento com identidade aqui no Brasil. Inocentes, AI-5, Ratos de Porão, Olho Seco, Condutores de Cadáver, Lixomania, Cólera, Garotos Podres, Os Replicantes, Aborto Elétrico etc.

O documentário é relevante por levantar informações sobre esse movimento que avocar atitude, pois o punk é movimento, conforme a sua gênese, sócio-cultural. Existe uma inflexão política. Um elemento contestatório. A vertente mais famosa do punk a promover justamente essa atitude é anarcopunk, que promove anarquismo como filosofia operante.

Dois fatos me chamaram a atenção:

(1)  A mobilização da mídia com a finalidade de enfraquecer e deturpar o movimento. A responsabilização por acontecimentos variados. A confusão com nomes. Os primeiros grupos eram confundidos com nazistas. Ou seja, uma profunda ignorância, já que uma das lutas do movimento é justamente contra os totalitarismos, entre eles o nazismo.

(2) O que me chamou a atenção no documentário, também, é como se encontram aqueles que fizeram o movimento aqui no Brasil. Estão subempregados. Lutando pelo pão de cada dia. Longe do mainstream. Isso serve para mostrar o quanto o movimento é marginal. Botinada é um importante documento a favor dessas personagens.

Pode ser visto no Youtube.


quarta-feira, dezembro 25, 2013

Cento e trinta anos depois, ainda Marx?

Excelente o texto! Traz à baila justamente a questão do posicionamento anti-marxista, antes mesmo que se conheça Marx. Criticar Marx sem que se tenha lido uma única página de Marx é uma baita de uma ignorância. A regra geral é que aqueles que fazem a crítica, geralmente desarrazoada, absorvem os argumentos daquilo que foi feito em nome de Marx. É o exemplo mostrado no texto. A ignorância histórica leva a associar o marxismo a práticas totalitárias. "Existem fatos históricos que podem explicar essa associação, sendo que o principal deles é a associação entre Marx e o regime estalinista da União Soviética. O problema é que entre as ideias de Marx e as práticas totalitárias existe uma série de mediações históricas, políticas e de ideias que são deixadas de lado. Assim, se chega a uma conclusão análoga a algo como atribuir a Einstein a responsabilidade pela bomba atômica". A teoria social desenvolvida por Marx é ampla, complexa e abarca a totalidade. Os reducionismos anti-marxistas nem resvalam na superfície do pensamento de Marx. O pensador buscou superar as contradições da materialidade, trazendo no bojo ideias como libertação, humanização e liberdade. Isso, sim, é Marx! O resto é caricatura e ignorância!

Cento e trinta anos depois de sua morte, Karl Marx continua causando polêmica. Poucos meses atrás, em Porto Alegre, foi veiculada a notícia de que ‘livros marxistas’ teriam sido apreendidos como documentos incriminadores. Pouco depois, o responsável pelas operações afirmou que isso não teria ocorrido. Enquanto isso, um estudante de relações internacionais ganhou notoriedade nacional ao se recusar a escrever sobre Marx em sala de aula. O que esses fatos mostram, antes de tudo, é que Marx continua vivo no debate político ideológico.

O problema é que poucos se aventuram a entrar nos escritos deste controverso pensador. O que geralmente se vê são críticas feitas ao totalitarismo, ao despotismo e à falta de liberdades. Em entrevista repercutida no jornal Zero Hora, o estudante mencionado foi questionado e convidado a explicar por que se posicionava contra o marxismo. Não respondeu. Afirmou: “Minha educação sempre foi pela liberdade, pela vida, pela justiça acima de tudo. Os regimes totalitaristas se tornaram genocidas, trouxeram miséria e morte. Vejo que o Brasil caminha para ser uma Venezuela.” Se vê claramente que a pergunta não foi respondida, e isso é reflexo da ignorância generalizada acerca das ideias de Marx, já que o rótulo ‘marxismo’ traz consigo a ideia pronta e acabada que associa o marxismo com o totalitarismo.

Existem fatos históricos que podem explicar essa associação, sendo que o principal deles é a associação entre Marx e o regime estalinista da União Soviética. O problema é que entre as ideias de Marx e as práticas totalitárias existe uma série de mediações históricas, políticas e de ideias que são deixadas de lado. Assim, se chega a uma conclusão análoga a algo como atribuir a Einstein a responsabilidade pela bomba atômica. A questão que mais interessa, neste momento em que vivemos, não é mais essa, e sim por que o estudante que recusa o marxismo sem ter condições de responder por que é contra o marxismo, ganha notoriedade nacional? Perguntas como essa poderiam encontrar respostas na concepção filosófica do próprio Marx, para quem as ideias e as representações da consciência estão entrelaçadas com a atividade e as trocas materiais. Vivemos em 2013 momentos de contestação e questionamentos acerca das desigualdades sociais que assolam o País. A produção material da vida e as regras que determinam quem ganha e quem perde estão sendo questionadas, e esse embate se reflete também nas ideias e na consciência. Assim, para além de um posicionamento político, a teoria de Marx continua válida nos dias de hoje para explicar esses embates. No entanto, é necessário compreendê-la, e não aceitar acriticamente associações automáticas que se escondem sob o véu da ideologia. Quem perde com isso são aqueles que querem aprender, conhecer e entender o mundo.

Rafael Kruter Flores é Doutor em Administração/UFRGS

Daqui

terça-feira, dezembro 24, 2013

Pedra Bonita, de José Lins do Rego; e algumas memórias

 Terminei na última sexta-feira, a leitura de mais um dos romances do escritor paraibano José Lins do Rego. Minha intenção é ler toda a obra do autor de Menino de Engenho. Talvez, faltem uns quatro ou cinco livros. Tenho tido um êxito considerável. Não tenho seguido um script cronológico. Olho para os volumes disponíveis em minha biblioteca, saco-os e inicio a leitura. Muito simples. Seguindo essa lógica randomizante, o próximo livro a qual lerei será Cangaceiros, de 1953, um dos últimos romances escritos por José Lins; em seguida, pretendo ler Pureza, de 1937, primeiro romance escrito após o término do Ciclo da cana-de-açucar.

A cada livro que termino do escritor paraibano, surge-me uma pergunta: "O que me atrai a José Lins do Rego?". As suas produções são de cunho memorialístico. É estranho a Zé Lins a capacidade de criar a partir de elementos do não vivido, de inovar. As temáticas são recorrentes. Ou seja, aquilo que experimentou, que seus olhos captaram enquanto era moço na Paraíba, nos engenhos de açúcar, transformou-se em bagagem existencial que o seguiu pelo resto da vida. José Lins era um Balzac rural, um descritivista da vida do sertão nordestino. 

Quando penso essas coisas, talvez, encontre um pouco dos motivos que me prendem à sua narrativa. Cresci na zona da mata pernambucana. Vivi lá até os nove anos de idade. E ainda aprisiono dentro de mim as rutilâncias febris da infância: a autoridade dos mais velhos, principalmente do meu pai e do meu avô materno; as brincadeiras com objetos primitivos forjados pela necessidade; os imensos canaviais das terras dos meus avôs; os riachos para as quais eu ia me banhar, ficar horas e horas a fio na água poluta; as árvores variadas e suas estações frutíferas (jaqueiras, mangueiras, jenipapeiros, jambeiros, saputizeiros, cajueiros, ingazeiros, larajeiras etc); os cheiros variados nos invernos imensos; a água que escorria feroz nos meses de maio e junho de cada ano, alargando os fios anêmicos dos regatos; as biqueiras dos telhados que faziam despencar veios arteriais profusos; a sensação de espanto quando ia à cidade; os trabalhadores no corte da cana; a fragrância inconfundível da cana queimada; o barulho do vento na palha dos coqueiros.

Graciliano Ramos e José Lins do Rego
Ou seja, toda aquela planície ensolarada descortinada no texto de José Lins do Rego faz parte de mim. Está contida em galáxias interiores, neste vasto universo do meu ser. Esse cenário abrangente toma conta de mim. Cria conexões. Portas dimensionais são escancaradas e me fio por elas. Posso estabelecer um paralelo comparativo entre Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Com relação ao primeiro, entendo que se trata de um dos nossos maiores escritores de todos os tempos. Com relação ao texto, Graciliano era um depurador de palavras. Seu estilo é inconfundível. Seu texto possui as gradações corretas. A pontuação precisa com a finalidade de criar efeitos estéticos únicos. É um texto que caminha com os pés na terra, medindo cada passo para chegar a determinado lugar com bastante precisão e estudo. Admiro isso. Já José Lins é dono de uma prosa "descuidada". Comete atropelos quanto à regência. Em alguns momentos se delonga em excesso em descrições. Em outros, passa-me a impressão de que está cometendo divagações. Todavia, "os pedaços" dessa prosa singular são conectados e temos um texto que produz sensações elétricas. José Lins sabia contar uma história como ninguém. Talvez, em nossa literatura o caso mais parecido seja o escritor gaúcho Erico Veríssimo.

Terminei a leitura de Pedra Bonita, livro escrito em 1938.Trata-se de um livro de temática religiosa. Aborda um elemento vital do imaginário do povo nordestino: a superstição. A história se passa em algum lugar do estado de Pernambuco, pois as referências aludem a isso. Há a citação de cidades como Garanhuns, Limoeiro, Goiana e Recife, cidades pernambucanas. O vilarejo de Açu reconstitui a arquitetura tão rotineira nas cidades interioranas do Brasil: a vida pacata do povo que se reúne embaixo de uma árvore para especular sobre a vida dos outros; a paróquia no centro da cidade; os coronéis que mandam na cidade; os comerciantes; e a gente comum; a devoção exagerada à tradição erguida pela Igreja Católica.

Como protagonistas temos o padre Amâncio e Antônio Bento, cuja história se ligava a ecos de acontecimentos espetaculosos com a cidade de Pedra Bonita.O jovem Antônio Bento havia sido adotado pelo padre. Era intenção do sacerdote torná-lo padre, mas o sacerdote teve suas intenções inviabilizadas em decorrência das dificuldades econômicas. Antônio Bento, assim, torna-se coroinha da paróquia. Passa a assistir o padre nos trabalhos da igreja. Todavia, a maior parte do povo de Açu não gostava do jovem. Ele era discriminado. Sofria com os debiques dos moradores da cidade.

O fato é que ao final da história, Antonio Bento se ver dividido entre ajudar o padre Amâncio, que estava em seu leito de morte, aguardando outro padre para fazer a confissão; ou se juntar aos seus patrícios de Pedra Bonita, que seriam vitimados pelas tropas do Estado que vinham com fúria para alijar do tumulto gerado por mais um frenesi messiânico. 

O livro possui um realismo duro. O Estado parece como força tirana. Os militares batem sumariamente nas pessoas sem que estas possuam direito ao contraditório. Espancam velhos. Buscam à toda força, lançar por terra os cangaceiros que, também, surgem na história como força antitética aos desmandos do governo. Todavia, acabam se constituindo em mais um "flagelo" do sertão, pois defloravam moças, saqueavam os moradores da terra, alastravam pânico e a especulação de medo por onde quer que passassem.

Em dados momentos do texto, os infortúnio do tempo parecem acometer ao personagem Antonio Bento. A realidade parece sufocar a sua existência. Não há saídas. Existe uma espécie de fado do tempo histórico que é maior do que ele. Antonio Bento não tem saídas. Ele parece ser um joguete do destino. O céu está contra ele; os homens estão contra ele; a história está contra ele. Esse neorrealismo com pitadas de naturalismo, liga Pedra Bonita a Zola ou Aluísio de Azevedo, escritores do século XIX. 

Muito bom o livro, embora não seja um dos melhores de José Lins do Rego.

sexta-feira, dezembro 20, 2013

Uma música "endiabrada" de Charles Mingus

Esta música é um "estouro". Esse George Adams é um ser mágico, de outro planeta. Que voz! Que agonia e desespero elegantes. Que música!

quinta-feira, dezembro 19, 2013

"Habemus Papam" - Por Mauro Saytayana. Uma contribuição contra a imbecilidade

Quando vejo disposições "sacadas" do lugar comum contra Marx, vêm a mim dois sentimentos: primeiro de indignação e, segundo, de consciência da ignorância do oponente. O capitalismo conseguiu cooptar, por meio do deus mercado e da construção de um estilo de vida manco, a naturalização do niilismo e do individualismo massacrante. Tal estilo de vida tem levado o planeta ao colapso e, a humanidade, à barbárie. Confundem experiências ou tentativas de materialização do socialismo com a filosofia de Marx. Marxismo é acima de tudo uma força que busca a liberdade, a humanização e a dignificação do ser humano. Um excelente antídoto (texto) contra o fascismo e a imbecilidade.

 Habemus Papam

Por Mauro Saytayana. Extraído do site do Leonardo Boff.  

Acusado por um conservador norte-americano de ser marxista, Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, negou sê-lo, mas disse que não se sentia ofendido, por ter conhecido ao longo de sua vida muitos marxistas que eram boas pessoas.

A declaração do papa, evitando atacar ou demonizar os marxistas, e atribuindo-lhes a condição de comuns mortais, com direito a ter sua visão de mundo e a defendê-la, é extremamente importante, no momento que estamos vivendo agora.

A ascensão irracional do anticomunismo mais obtuso e retrógrado, em todo o mundo — no Brasil, particularmente, está ficando chique ser de extrema direita — baseia-se em manipulação canalha, com que se tenta, por todos os meios, inverter e distorcer a história, a ponto de se estar criando uma absurda realidade paralela.

Estabelecem-se, financiados com dinheiro da direita fundamentalista, “museus do comunismo”; surgem por todo mundo, como nos piores tempos da Guerra Fria, redes de organizações anticomunistas, com a desculpa de se defender a democracia; atribuem-se, alucinadamente, de forma absolutamente fantasiosa, 100 milhões de mortos ao comunismo.

Busca-se associar, até do ponto de vista iconográfico, o marxismo ao nacional-socialismo, quando, se não fossem a Batalha de Stalingrado, em que os alemães e seus aliados perderam 850 mil homens, e a Batalha de Berlim, vencidas pelas tropas do Exército Vermelho — que cercaram e ocuparam a capital alemã e obrigaram Hitler a se matar, como um rato, em seu covil — a Alemanha nazista teria tido tempo de desenvolver sua própria bomba atômica e não teria sido derrotada.

Quem compara o socialismo ao nazismo, por uma questão de semântica, se esquece de que, sem a heroica resistência, o complexo industrial-militar, e o sacrifício dos povos da União Soviética — que perdeu na Segunda Guerra Mundial 30 milhões de habitantes — boa parte dos anticomunistas de hoje, incluídos católicos não arianos e sionistas, teriam virado sabão nas câmaras de gás e nos fornos crematórios de Auschwitz, Birkenau e outros campos de extermínio.

Espalha-se, na internet — e um monte de beócios, uns por ingenuidade, outros por falta de caráter mesmo, ajudam a divulgar isso — que o Golpe Militar de 1964 — apoiado e financiado por uma nação estrangeira, os Estados Unidos — foi uma contrarrevolução preventiva. O país era governado por um rico proprietário rural, João Goulart, que nunca foi comunista. Vivia-se em plena democracia, com imprensa livre e todas as garantias do Estado de Direito, e o povo preparava-se para reeleger Juscelino Kubitscheck presidente da República em 1965.

1964 foi uma aliança de oportunistas. Civis que há anos almejavam chegar à Presidência da República e não tinham votos para isso, segmentos conservadores que estavam alijados dos negócios do governo e oficiais — não todos, graças a Deus — golpistas que odiavam a democracia e não admitiam viver em um país livre.

Em um mundo em que há nações, como o Brasil, em que padres fascistas pregam abertamente, na internet e fora dela, o culto ao ódio, e a mentira da excomunhão automática de comunistas, as declarações do papa Francisco, lembrando que os marxistas são pessoas normais, como quaisquer outras — e não são os monstros apresentados pela extrema-direita fundamentalista e revisionista sob a farsa do “marxismo cultural” — representam um apelo à razão e um alento.

Depois de anos dominada pelo conservadorismo, podemos dizer, pelo menos até agora, que Habemus Papam, com a clareza da fumaça branca saindo, na Praça de São Pedro, em dia de conclave, das veneráveis chaminés do Vaticano.

Um Papa maiúsculo, preparado para fortalecer a Igreja, com o equilíbrio e o exemplo do Evangelho, e a inteligência, o sorriso, a determinação e a energia de um Pastor que merece ser amado e admirado pelo seu rebanho.

terça-feira, dezembro 17, 2013

As viagens de Gulliver - algumas considerações pós-leitura

Consegui, após três meses de jejum, terminar a leitura de um romance. E não se trata de qualquer romance. Consegui concluí a leitura de As viagens de Gulliver. Tratava-se de um projeto antigo, mas que consegui realizá-lo esta semana. O livro está entre aqueles clássicos imortais da literatura universal. Foi escrito por Jonathan Swift em 1726 e revisado em 1735. Swift escreveu uma espécie de relato de viagem, muito comum à época, com a finalidade de realizar uma crítica cáustica à sociedade europeia - principalmente a inglesa.

É um livro leve, de texto agradável e de uma agudeza mordente. Swift narra as diversas viagens realizadas pelo personagem principal, Gulliver, e a visita inevitável a personagens curiosos que personificavam a sociedade do seu tempo. Com o primeiro naufrágio, Gulliver chegou a um lugar chamado Lilliput, cuja significação pode ser "o país tanto de mentes pequenas quanto de corpos pequenos". Os moradores de Lilliput mediam em média 15 cm. E eram marcados pela pequenez moral. Perdiam bastante tempo com fatos insignificantes. Gulliver acaba sendo traído pelos lilliputianos. Assim, o autor traça um retrato do seu país: da mediocridade e da pequenez que assolava a sua terra; da sociedade firmada em convenções, com um rei bobo e suscetível a influências variadas e perniciosas.

Em Lilliput
 Em seguida, visita a ilha de Brobdingnag, país que constitui uma antítese em relação a Lilliput.  Brobdingnag é a terra dos gigantes. É terra dos sujeitos autossuficientes. Pode ser interpretado que esses gigantes eram os realizados financeiramente e que, consequentemente, constituíam-se em  donos da verdade. Gulliver passa bastante tempo entre Brobdingnag. É exibido como uma animal de estimação.

A terceira viagem se dar a Laputa. Laputa era uma ilha voadora, cujos habitantes viviam assoberbados pelo pensamento, imersos nos cálculos matemáticos e na música. Com relação a Laputa, nota-se claramente a crítica feita aos intelectuais frívolos, que se alimentam de questiúnculas a fim de perpetuarem, com a necessidade de se autoafirmarem. Swift se dirige ao racionalismo científico alienado, mas essa reflexão é trans-histórica, pois em todas as épocas encontramos sujeitos enfatuados por causa  do saber, revestidos de perversidade e presunção. O muito conhecimento  ao invés de vestir determinados indivíduos de candura e humildade, pode fazer com estes mesmos sujeitos se tornem arrogantes e de má índole.
Em Laputa

Na sua quarta viagem, Gulliver encontrou os Houyhnhm, uma espécie de cavalos nobres que cultivavam a inteligência, os ideais de verdade e razão. E aqui nota-se que o livro vai assumindo um tom cético e niilista. No país dos Houyhnhm, Gulliver encontra os yahoos, uma metáfora clara dos seres humanos, movidos por instintos primitivos, gananciosos e irracionais. Nesse quarto bloco da história, Swift não constrói sua crítica apenas contra a sociedade inglesa ou francesa, mas à humanidade como um todo. Os yahoos exatificam aquilo que de mais brutal, banal, frívolo e baixo existe no ser humano. As viagens de Gulliver nesse sentido sai do campo da literatura infantil, como é classificado por muitos, para se tornar numa daquelas sátiras à la Luciano de Samósata, o filósofo romano do segundo século.
Entre os Houyhnhms

No último capítulo do livro, encontramos a seguinte passagem, a qual notamos a crítica explícita ao mundo europeu: "Navios são enviados na primeira oportunidade, os nativos são confinados ou destruídos, seus príncipes são torturados para que entreguem seu ouro; uma licença é dada a todos os atos de desumanidade e lúxuria; a terra fica fedendo com o sangue dos seus habitantes e aquela execrável tripulação de açougueiros empregadas em tão pia expedição é uma colônia moderna enviada para catequizar e civilizar um povo idólatra e bárbaro".

As viagens de Gulliver, dessa forma, tecem uma contundente crítica ao processo colonial e imperialista da sociedade inglesa - e extensível às demais nações europeias, que pilharam os continentes asiático, africano e americano. Há uma citação explícita ao nome de Fernando Cortez, espanhol que foi responsável pelo massacre às civilizações encontradas no México. Cortez subjugou o México em menos de dois anos. A crítica ferrenha à sociedade arrogante e irracional, fundada na moral capitalista, e em pleno auge da Revolução Industrial é clara.
Jonathan Swift

Tendo desenvolvido uma ojeriza aos yahoos (metafóra dos "seres humanos"), Gulliver passou a viver de acordo com as filosofias dos Houyhnhms. Aqui nota-se uma referência à razão iluminista, que tinha o objetivo de reformar a sociedade europeia por meio da razão e fundar uma época baseada na liberdade, igualdade e fraternidade. O resultado nós conhecemos. Assim, a crítica realizada contra os yahoos continua viva, permanente.

P.S. Segundo informação extra-oficial (li isso em algum lugar), As viagens de Gulliver era um dos livros prediletos de George Orwell, que o teria lido mais de onze vezes. 

terça-feira, dezembro 10, 2013

Mosaicos

Minhas férias começam oficialmente na sexta-feira. Mas, já começo a sentir os seus eflúvios soprando suavemente nos vales mais interiores de mim mesmo. Foi um ano cheio. Trabalhei muito. Excessivamente. Ainda estou vivo. O blog - esse espaço para minhas garatujas descompromissadas - anda às moscas. Voltarei a ler. Livros não faltam. Existe uma montanha me esperando: biografias (Tolstói, Malcom X, Hobsbawn, Marx etc); romances (Mario Vargas-Llosa, Swift - que já estou lendo -, José Lins do Rego, Brontë, etc); poesia (João Cabral de Melo Neto); história (Hobsbawn, Darcy Ribeiro, Boris Fausto) etc. Não sei se dará tempo de ler tudo isso. Sinto-me como uma criança numa loja de brinquedos. É muito estímulo, muitas possibilidades. 

Para tirar as teias de aranha deste espaço, resolvi colar um comentário que fiz lá no Facebook no dia de ontem, sobre uma reportagem que li sobre o resultado que o Brasil alcançou na prova do Pisa.

"Este texto assusta! E serve como ecplicação para uma série de problemas com os quais convivemos. O Brasil é um país firmado na desigualdade. E essa desigualdade acaba provocando consequências drásticas no processo formador de nossas escolas. Se por uma lado temos uma escola pública deficitária, com alunos pouco interessados ou mais preocupados com o percentual mínimo para passar de ano, temos por outro lado os filhos da classe média, que sofrem com os mesmos problemas de nossa educação deficitária - só que em escolas privadas(sic). Os mais privilegiados financeiramente buscam garantir por meio de mensalidades estratosféricas, em uma suposta instituição privada "decente", a vaga do filho nos estabelecimentos superiores públicos de educação, quando este terminar a educação básica. Todavia, tal fato não é uma garantia eficaz, pois temos um gargalo sócio-histórico que gera consequências alarmantes. E tais problemas vão desde o processo de formação dos professores, às avaliações que são aplicadas nas escolas. A profissão docente, no Brasil, tornou-se proletarizada; multiplicam-se as instituições de ensino que formam pessimamente os professores; a relação do professor com o aluno ainda é desarmoniosa; quando esta não está fundada na indiferença, está fundada no medo do aluno (cliente) "mandar" no professor (empregado, pois aquele paga o salário deste); ou mesmo de nossos currículos baseados no decoreba e que desestimulam o conhecimento historicamente produzido pela sociedade; ou ainda, problemas sociais sérios que acabam criando a evasão escolar, gerando como consequência uma horda de sujeitos que não entenderam a relevância histórico-cultural da escola. Assim, entendo que quando as políticas públicas são ineficazes no que tange à educação, o Estado se torna responsável por consagrar as desigualdades sociais. Ou seja, o Estado se torna criminoso, porquanto acaba jogando de forma acintosa os mais pobres na ignorância da inoperança histórica. A escola ainda é, para os mais pobres, a única forma de se conseguir a emancipação social. Como dizia Gramsci, é lá que deve atuar a figura do intelectual orgânico, capaz de fazer convergir forças para tornar pública e explícita uma "práxis" contra-hegemônica.

O texto abaixo serve para que reflitamos um pouco. Serve para mostrar o quanto a burguesia brasileira sempre tenta/tentou imitar os modelos estrangeiros. Todavia, essa empresa nunca foi bem-sucedida, pois a sociedade desigual baseada no modelo defendido por ela cria um processo de equidistância e retro-alimentação, colocando-nos numa roda-viva histórica.

O Brasil foi o país que mais evoluiu desde 2003 - período do governo do PT -, mas é preciso caminhar com compromisso e responsabilidade".

sábado, novembro 16, 2013

A contradição

Pela manhã, colei em meu perfil do Facebook uma reportagem extraída do sítio Viomundo sobre a prisão dos "mensaleiros". Alguém fez o seguinte comentário: "Esse Magistrado tem dado ao Brasil uma grande demonstração de amor à Pátria. Creio que ele será um marco divisório no STF. Antes de Joaquim Barbosa e depois de Joaquim Barbosa. Creio que suas atitudes inspirarão a muitos outros, inclusive em outras carreiras. Graças a Deus por isso, não é mesmo Carlos A. M. Albuquerque".

Respondi da seguinte forma, buscando não ser ofensivo: "Fico preocupado com determinadas afirmações que não se conectam com a globalidade da realidade, Edson Ferreira. O fato imediato não está deslindado de aspectos maiores, mais densos, que revela a tensão que existe na sociedade e na história. O debate em torno de um fato não deve ficar apenas na aparência. Deve ir, por sua vez, à essência. Não vejo Joaquim Barbosa como um modelo imparcial de conduta jurídica. Penso que sua consciência intencional tenha sido cooptada pelos interesses da mídia nativa brasileira. É muito estranho que Joaquim tenha sido tão rápido em fazer um julgamento sem ouvir os seus pares do STF. O Judiciário Brasileiro é um dos mais problemáticos do mundo. A Justiça Brasileira reza, ainda hoje, a cartilha dos interesses políticos. O Mensalão foi pintado como um dos escândalos mais assombrosos de nossa história. Acredita nisso quem não conhece a história do nosso país, que foi fundado sob a bandalheira, sob o império da violência contra os negros, contra os índios, contra as minorias, contra a mulher, contra " os de baixo". Analisar o Mensalão pelo prisma da aparência é abandonar a inteligência e se fiar por uma causa moralista que serve aos interesses da Globo, da Veja, da Folha de São Paulo; ao interesses de muitos setores do conservadorismo brasileiro. Joaquim, acredito, está do lado desse atraso, que tem se alimentado do sangue brasileiro há quinhentos anos. Joaquim não me orgulha. Envergonha-me, Edson. Ele tinha de tudo para ser um extraordinário jurista. Foi picado pela mosca azul da arrogância institucional. Há algum tempo atrás quando ele bateu boca com Gilmar Mendes, fiquei imensamente feliz com aquilo. Achei-o sensato. Ousado. Acreditava que ele era um quadro que traria um renovo ao Judiciário do Brasil. Todavia, nada melhor que o tempo para revelar as intenções dos homens. Acredito que o povo brasileiro esteja analisando o acontecido no dia de ontem apenas pela aparência. Mas a essência das coisas possui muito maior complexidade que o nosso olhar casual. Moralismo não promove mudanças na sociedade. Abração, Edson".


quinta-feira, novembro 14, 2013

Direito ao delírio...

Pensata Matinal: como o "homo urbanus", subjugado pela força do capital e por um estilo de vida asfixiante e artificial está distante dessas palavras do uruguaio Eduardo Galeano. 

domingo, novembro 03, 2013

Mario Vargas-Llosa, um cidadão cosmopolita

Final de semana apenas de trabalho. Corrigindo provas. Elaborando testes para serem realizados nesta próxima semana que se inicia. Sem tempo para ler; para escrever. Apenas operando cálculos e sentenças que aturdem. Desemaranhando sentenças textuais. Acordando muito cedo. Dormindo muito tarde. O cansaço como companheiro infatigável. O mau humor como ferramenta de execução. Penso que esteja estressado. O que me salva é a música, que vou ouvindo para me des-alienar, para me desaturdir. Ai se não fosse ela, evocando Nietzsche e Schubert!!

Mas o fato de comparecer por aqui numa noite de domingo(sic.) é para falar sobre a entrevista que o escritor peruano Mario Vargas-Llosa realizou em maio último ao programa Roda Viva. Já tive a oportunidade de vê-la por duas vezes. E essa experiência me deixou impressionado. Separei duas vertentes do homem Vargas-Llosa após assistir à entrevista: 

(1) o político de posição liberal, crente na democracia como ela se apresenta. Nesse sentido, fiquei desconfiado dele. Não se trata de rechaçar completamente a sua posição; ou excluir completamente as suas ideias. Percebi a sua ojeriza a Hugo Chavez (e a Maduro, sucessor do líder bolivariano) e a Fidel Castro. A crítica aos regimes socialistas. Mas apesar de sua postura clara e honesta quanto a essas questões, o que me deixou impressionado foi a sua transparência, a capacidade de não esconder o seu pensamento político. Outro elemento importante no que diz respeito a isso, é o seu profundo conhecimento da América Latina. Quando menciona algo sobre o continente, fala na perspectiva da irmandade e do conjunto. Enxerga o continente latino-americano como um território que possui muitos elementos em comum.

(2) e o homem da literatura e é justamente esse homem que me fascinou. Apesar de possuir alguns livros dele: Batismo de Fogo, Pantaleão e as visitadoras, Os cadernos de Dom Rigoberto, Peixe na Água - memórias e A Guerra do fim do mundo. Este último é uma das minhas pretensões a futura leitura. O fato é que no próximo mês entrarei de férias e há uma programação com muitos livros a serem lidos: As viagens de Gulliver, umas três ou quatro biografias (Marx, Malcom X, Eric Hobsbawn, Rosa Luxemburgo, Gramsci etc) e muitos outros romances com o mesmo fim - espero que assim seja. Incluí nesta lista, comprei lá na Estante Virtual, Conversa na Catedral. Para muitos, esse é o maior romance escrito pelo peruano ganhador do Prêmio Nobel, em 2010.  Cada frase enunciada por Vargas-Llosa me encheu de admiração e prazer. É gostoso ouvi-lo falar. Suas enunciações revelam um amor profundo pela literatura.

Outra questão importante é o seu amor e conhecimento dos escritores latino-americanos. Falou de Cortázar, Garcia Marques, Neruda - são os que eu consigo lembrar. Cito de cabeça uma das suas frases sobre Borges: "Se existe um escritor latino-americano que, com certeza continuará a ser lido daqui a trezentos anos, este é Jorge Luis Borges". Vale mencionar ainda a sua paixão por escritores brasileiros. Citou pelo menos dois: Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, a quem teve a oportunidade de conhecer. Vargas-Llosa é dono de uma bonomia incrível. É um cosmopolita a serviço do bom senso e da literatura. Mesmo quando não concordamos com ele, baixamos a cabeça em sinal de respeito às suas afirmações claras, polidas, envoltas no mais puro requinte literário. 

Intenções de leitura a fim de conhecer um pouco mais sobre Mario Vargas-Llosa: A guerra do fim do mundo e Conversa na catedral. Oxalá venha a dar certo!

domingo, outubro 20, 2013

Dois filmes - A Culpa é do Fidel(2006) e Serra Pelada(2013)

(1) Passei uma semana em casa. A escola onde trabalho deu uma semana de recesso. Consegui descansar um pouco da labuta asfixiante. Amanhã, voltarei ao trabalho, rumo ao final de mais um ano letivo. Aproveitei, assim, a semana para ver alguns filmes. Entre eles, pude ver o excelente A culpa é do Fidel (2006), de Julie Gavras, filha do mitológico diretor grego Costa Gavras. O filme retrata a história de Anna (Nina Kervel) que quer compreender todo o celeuma político em que sua família está envolvida. Ela não se contenta com explicações parciais. Quer entender como os adultos que a cercam tratam as questões políticas. Quer saber o que é aborto, comunismo, solidariedade; o porquê dos homens lutarem por determinadas causas; o porquê de ser proibido cultuar determinada religião. A história se passa em Paris, no início dos anos 70, mas o pano de fundo é a luta contra o general Franco e a eleição de Salvador Allende, no Chile. O nome da obra - A culpa é do Fidel - já nos insere nesse universo de conflito contra a ética do socialismo e o mundo infantil. Nesse sentido, após tê-lo visto, fiquei com a certeza de que ele deve ser colocado ao lado de dois outros excelentes filmes, que retratam crianças como sendo o eixo que estabelece uma crítica - Pequena Miss Sunshine (2006) e A Língua das Mariposas (1999).

(2) O cinema nacional desde o alvorecer do século XXI tem realizado em média setenta produções por ano. Algumas dessas produções são medíocres; outras, nem tanto. É curioso que se no passado investíamos no gênero pornochanchada, mudamos substancialmente para outro apelo estético. As produções que se efetivaram como sucesso de bilheteria, foram aquelas que se fixaram na violência com ramificações gângsteres. Cidade de Deus, Cidade dos homens ou Tropa de Elite são exemplos bem chamativos daquilo que pode ser conhecido como estética da favela ou estética da fome. É um tipo de realismo que foca a miséria e a violência nossa de cada dia. É como se essas produções preenchessem um fetiche de nosso inconsciente coletivo. Ou de nossos medos mais extremos. Aquilo que tememos que nos ocorra no espaço secular da rua, enche nossos os olhos quando assistimos a isso no cinema ou na redoma sagrada e inviolável do lar. 

Na sexta, 18, por exemplo, fui assistir à estreia de Serra Pelada, de Heitor Dhalia, que já havia feito o excelente O Cheiro do Ralo, em 2007. Em O Cheiro do Ralo, Dhalia havia fugido dos convencionalismos e se fiado pela boa criação da ficção que nos enche os olhos. Em Serra Pelada, Dhalia resgatou uma das páginas mais dramáticas da história recente do Brasil, o garimpo de Serra Pelada, no estado do Pará, coração da Floresta Amazônica. O munícipio de Curionopólis, sul do estado do Pará, protagonizou uma corrida ao ouro no início dos anos 80. Estima-se que 30 toneladas de ouro foram extraídos do maior garimpo a céu aberto do mundo. Muitos brasileiros de todas as regiões do país correram em busca do tão propalado ouro. Muitos enriqueceram, mas outros continuaram pobres e tiveram seus sonhos enterrados pelas dificuldades materiais.

É justamente a partir dessa temática que o bom elenco de Serra Pelada recria o cenário. Juliano (Juliano Cazarré) e Joaquim (Júlio de Andrade) são os protagonistas, contando ainda com atores como Sophie Charlote (Tereza), Wagner Moura (Lindo Rico) e Matheus Nachtergaele (Coronel Carvalho). A obra recria o cenário do garimpo e nos joga numa trama na qual ganância, poder e violência vão sendo desenrolados como a lã de um novelo. Juliano torna-se uma espécie de Don Corleone da selva. Vai criando tentáculos a partir da sede que é despertada pela vontade de mais poder. E nesse sentido a obra nos alerta para os elementos psicológicos que fazem parte do mundo humano. Ou seja, como lidamos com o poder e quais são os caminhos construídos para se chegar até ele. Outro aspecto importante é o mundo marginal que existe em torno do garimpo - prostituição, violência, tráfico de drogas, homossexualismo, hedonismo como resultado do ganho fácil do ouro. O filme ainda nos aponta o fato de que nos tornamos reféns de circunstâncias que estão para além do nosso controle.

Embora reproduza a estética da miséria e da violência, criando uma trama hollyoodiana, a obra é significativa por retratar um evento importante da história do Brasil recente e trabalhar com aspectos tão singulares do mundo humano.

sexta-feira, outubro 18, 2013

Qual romance você está lendo?

Excelente texto do italiano Contardo Calligaris. Eu sabia que os normais são os que leem literatura ficcional!

Sempre pensei que fosse sábio desconfiar de quem não lê literatura. Ler ou não ler romances é para mim um critério. Quer saber se tal político merece seu voto? Verifique se ele lê literatura. Quer escolher um psicanalista ou um psicoterapeuta? Mesma sugestão. E, cuidado, o hábito de ler, em geral, pode ser melhor do que o de não ler, mas não me basta: o critério que vale para mim é ler especificamente literatura --ficção literária. Você dirá que estou apenas exigindo dos outros que eles sejam parecidos comigo. E eu teria que concordar, salvo que acabo de aprender que minha confiança nos leitores de ficção literária é justificada. 

Algo que eu acreditava intuitivamente foi confirmado em pesquisa que acaba de ser publicada pela revista "Science" (migre.me/gkK9J), "Reading Literary Fiction Improves Theory of Mind" (ler ficção literária melhora a teoria da mente), de David C. Kidd e Emanuele Castano. Uma explicação. Na expressão "teoria da mente", "teoria" significa "visão" (esse é o sentido originário da palavra). Em psicologia, a "teoria da mente" é nossa capacidade de enxergar os outros e de lhes atribuir de maneira correta crenças, ideias, intenções, afetos e sentimentos. 

A teoria da mente emocional é a capacidade de reconhecer o que os outros sentem e, portanto, de experimentar empatia e compaixão por eles; a teoria da mente cognitiva é a capacidade de reconhecer o que os outros pensam e sabem e, portanto, de dialogar e de negociar soluções racionais. Obviamente, enxergar o que os outros sentem e pensam é uma condição para ter uma vida social ativa e interessante. 

Existem vários testes para medir nossa "teoria da mente" -- os mais conhecidos são o RMET ou o DANVA, testes de interpretação da mente do outro pelo seu olhar ou pela sua expressão facial. Em geral, esses testes são usados no diagnóstico de transtornos que vão desde o isolamento autista até a inquietante indiferença ao destino dos outros da qual dão prova psicopatas e sociopatas. Kidd e Castano aplicaram esses testes em diferentes grupos, criados a partir de uma amostra homogênea: 1) um grupo que acabava de ler trechos de ficção literária, 2) um grupo que acabava de ler trechos de não ficção, 3) um grupo que acabava de ler trechos de ficção popular, 4) um grupo que não lera nada. 

Conclusão: os leitores de ficção literária enxergam melhor a complexidade do outro e, com isso, podem aumentar sua empatia e seu respeito pela diferença de seus semelhantes. Com um pouco de otimismo, seria possível apostar que ler literatura seja um jeito de se precaver contra sociopatia e psicopatia. Mais duas observações. 

1) A pesquisa mede o efeito imediato da leitura de trechos literários. Não sabemos se existem efeitos cumulativos da leitura passada (hoje não tenho tempo, mas "já li muito na adolescência"): o que importa não é se você leu, mas se está lendo. 

2) A pesquisa constata que a ficção popular não tem o mesmo efeito da literária. A diferença é explicada assim: a leitura de ficção literária nos mobiliza para entender a experiência das personagens. 

"Como na vida real, os mundos da ficção literária são povoados por indivíduos complexos cujas vidas interiores devem ser investigadas, pois são raramente de fácil acesso."
"Contrariamente à ficção literária, a ficção popular (...) tende a retratar o mundo e as personagens como internamente consistentes e previsíveis. Ela pode confirmar as expectativas do leitor em vez de promover o trabalho de sua teoria da mente." 

Em suma, o texto literário é aquele que pede esforços de interpretação por aquelas caraterísticas que foram notadas pelos melhores leitores do século 20: por ser ambíguo (William Empson), aberto (Umberto Eco) e repleto de significações secundárias (Roland Barthes). Na hora de fechar esta coluna, na terça-feira, encontro a mesma pesquisa comentada na seleção do "New York Times" oferecida semanalmente pela Folha. A jornalista do "Times" pensou que a leitura literária, ajudando-nos a enxergar e entender os outros, facilitaria nossas entrevistas de emprego ou nossos encontros românticos. 

Quanto a mim, imaginei que, na próxima vez em que eu for chamado a sabatinar um candidato, não esquecerei de perguntar: qual é o romance que você está lendo? E espero que o candidato mencione um livro que conheço, para verificar se está falando a verdade

Daqui

terça-feira, outubro 15, 2013

In Utero, do Nirvana, 20 anos do lançamento - algumas considerações


Motivos iniciais - a fecundação do caos

Este texto, resultado de uma pensata pouco convincente, deveria ter saído há um mês atrás. Devido a circunstâncias pouco favoráveis eu não pude escrever. Mas vamos lá: há um mês atrás a indústria fonográfica mundial - dia 13/09 - comemorou 20 anos do lançamento do álbum In Utero, último disco de estúdio da banda de Kurt Cobain, lendário líder do Nirvana. Falar do Nirvana é lembrar a minha adolescência. É voltar ao início dos anos de 1990, época da explosão do movimento grunge, época esta também em que descobri o rock.

Quando me analiso e tento encontrar explicações plausíveis que expliquem o fato de até hoje ouvir a banda de Kurt Cobain, entendo que se trata de um apelo das emoções. A banda musicalmente era ruim. A voz de Kurt era um grunhido gritado. Em muitos momentos ele desafinava. As suas performances eram irracionais. Mas o selo da rebeldia estava em tudo aquilo e, talvez, esse fato seja um combustível para as nossas necessidades mais primitivas. 

Alex Ross em seu excelente livro Escuta Só, diz que Cobain escolheu voluntariamente "um caminho para a morte". Ou seja, sua trajetória estava marcada e traçada por conta de uma vida de abandono e instabilidade emocional desde o início de sua carreira. Charles Cross, por sua vez, na biografia Mais pesado que o céu, livro este em que é pintada com cores bem vivas a conturbada e cinzenta vida do líder do Nirvana, deixa muito claro o sujeito complexo e emocionalmente instável que era Kurt Cobain. Para entendê-lo é necessário mergulhar em sua história familiar. Na separação dos pais. A mãe Wendy e seu pai Don, formaram um casal instável. Parecia haver uma condição psicológica perturbada na família da mãe de Cobain. Segundo Cross, Wendy separou-se de Don sem maiores explicações e a partir daí começa a desagregação existencial de Kurt.

Passou a viver de favores na casa de amigos. A receber salários ordinários em sub-empregos. Kurt não era muito disposto ao trabalho. Gostava mesmo era de rock. O movimento punk em alta no final dos anos 70 e início dos anos 80 era sua grande atração. Sua vida era "vagabundar" pelos bairros de Aberdeen, sua cidade natal, no estado de Washington, extremo oeste americano. 

Ao formar o sua primeira banda, a Fecal Matter ("Matéria Fecal"), em 1985, nota-se o tom de escracho e ao mesmo tempo, de insubordinação adolescente e que seria a sua marca. Tal alusão subjacente foi cantada inconscientemente em Smell like teen spirit ("Cheira a espírito adolescente"). A Fecal Matter não fez nenhum show. Foi uma proto-ideia daquilo que mais tarde seria o Nirvana. O certo é que Kurt sempre mostrou-se introspectivo. Mesmo antes de se tornar famoso, sempre mencionava a possibilidade do suicídio.

Bleach e Nervemind - organizando o caos

Em 1989, Cobain lançaria o disco que seria uma espécie de panfleto de sua estética. É um disco muito importante para o movimento grunge. Ele consolida aquilo que já vinha sendo feito por bandas como Melvins ou Mudhoney. O disco foi gravado pela famosa e marginal gravadora Sub-Pop, que logo em seguida despejaria para o mundo uma quantidade de bandas desconhecidas, acreditando que no meio desse caudal haveria "outros nirvanas". Bleach é um disco barulhento, de som sujo e gritado. As músicas possuem uma marca que seguiria a banda em sua trajetória efêmera: o som se amalgamava com a voz feita sob encomenda de Kurt Cobain. Os solos de guitarra são desarmônicos. Existe uma não-linearidade nesse sentido, como se a banda quisesse formar uma nova plástica musical. Outras duas músicas chamam a atenção pela "violência plástica": Paper Cuts e Negative Creep.

Era um bofete em bandas hegemônicas do mainstream como Guns n' Roses, Metallica ou Iron Maiden. Aquilo era cru e sujo ao extremo. Um exemplo disso (a música que escuto agora enquanto digito essas linhas) é Floyd the Barber, que trazia um som encorpado, pegajoso, untado pela voz desesperada de Kurt. A música nos transmite uma forte impressão de que se trata de uma algo feito por colegiais que resolvem se divertir na garagem para desespero dos pais. Àquela altura, Kurt já tinha 22 anos de idade. Começava a fazer shows em vários locais dos Estados Unidos. Foi à Europa. Tocou na Inglaterra. Kurt Cobain ao vivo impressionava. Era um tipo diferente fazendo rock. Suas performances chamavam atenção. Sua música possuía uma energia extraída dos subterrâneos, de cavernas escuras. Era levada ao mundo por meio de vagidos agônicos. Músicas como Love Buzz ou School apareciam em momentos altos dos shows para delírio dos fãs, que quando não entendiam o espetáculo, ficavam a olhar os desvarios artísticos do profeta da nova geração, uma espécie de Jim Morrison redivivo.

Em 1991, o grupo gravava com a poderosa Geffen. Saía o disco comercial que consagraria a banda - Nevermind. Nevermind é um marco da indústria fonográfica. Impossível falar em rock sem mencioná-lo. Talvez esteja ao lado de discos como Sargent Peppers, dos Beatles, ou Led Zeppelin IV, do Led Zeppelin, em matéria de importância. Nevermind unia a semântica comercial ao som vocacionado para embalar uma geração. Era um disco feito sob recomendação. Os acordes iniciais de Smell like teen spirit, a música que abre o disco, era uma espécie de brincadeira. Mas a música era terrivelmente boa. A diferença de Nevermind em relação ao Bleach é gritante. A estética do grito foi substituída pelo uso convincente de letras fáceis e grudentas e uma harmonia que ficava presa na cabeça. Os sentidos pareciam exigir aquela música que trazia uma "fragrância nova", que "cheirava a liberdade". Parecia falar às necessidades dos jovens. Não percebíamos que tudo aquilo eram solilóquios, monólogos, de uma alma achacada. Kurt era um sujeito indefeso que encontrava nas drogas a sua válvula criadora. Ele parecia estar fazendo expiação às contradições do mundo burguês. A juventude que via nele o ícone de uma nova geração, não percebia que ali estava um sujeito que também pedia socorro. Os desencontros e as contradições geradas na sociedade de classe leva os homens a se automutilarem.


Com Nevermind, Kurt ganhou rios de dinheiro. Tornou-se herói. Mas tudo aquilo parecia ser insignificante para ele. Seu vício contumaz. Suas tentativas malogradas de largar as drogas. Sua personalidade introspectiva parecia dizer para o mundo que sua vida corria perigo. Ele era o seu pior inimigo.

In Utero - o paroxismo do caos

Em 1993, começava o projeto para gravar aquele que seria o terceiro disco de estúdio  - e último também. Kurt queria fugir dos clichês comerciais e propagandísticos do disco anterior. Queria regressar aos momentos iniciais da banda. Tanto é assim, que In Utero esteticamente está mais próximo de Bleach do que de Nevermind. A diferença é que In Utero está dentro de um invólucro de dor, de desespero, de ácidos sujos, de uma atmosfera doentia. Em quatro anos de sucesso constante e meteórico, a banda na pessoa de Kurt havia alcançado um "nirvana paradoxal". Não se tratava da quietude perpétua como apregoa a doutrina do budismo, mas o paroxismo do caos. Era a consagração do paradoxo. O disco nos coloca uma pergunta: "no útero de quê?" Talvez, tenhamos encontrado o enunciado mais verdadeiro e repleto de significados existenciais saído da garganta de Cobain.

In Utero começou a ser gravado em fevereiro de 1993. A banda escolheu Steve Albini, um mago do rock independente da cena americana. É curioso notar a mudança perpetrada no itinerário da banda. A sonoridade de In Utero é uma das coisas mais viscosas da história do rock. Um exemplo que pode ser contraposto é a On Plain, de Nevermind, e Milk It, do comentado disco. Enquanto aquela soa como uma lufada de vento "em uma planície", esta possui uma sonoridade sufocante, repleta de agonia e uma letra desconexa ("her milk is my shit/ My shit s her milk" ["O leite dela é minha droga/ Minha droga é o leite dela"].

Havia a desconfiança de que o disco não emplacaria. Mas aconteceu o contrário. A sua perspectiva lírica gira em torno de sexualidade, nascimento, morte, doença, vício. Era a agonia de Kurt. Sua alma, finalmente, mostrava-se. Vivera alguns anos querendo voar. O disco exatificava seus sentimentos. Dali para frente seria a derrocada. Tanto é assim que em 5 de abril (possivelmente) de 1994, ele atirou contra a própria cabeça com uma espingarda, pondo fim à sua curta história de fama e solidão existencial.

Os ecos do caos

O espectro de Kurt Cobain ainda assombra a muita gente. Sua voz ainda continua poderosa. Sua música encanta muitos jovens em torno do mundo. Ele derramou "o cheiro" de sua música por todos os cantos. O Nirvana ainda é uma banda comercialmente rentável. Estima-se que a banda tenha vendido mais de 50 milhões de discos em todo o mundo. Somente o In Utero já vendeu mais 10 milhões de cópias desde o lançamento. O disco está ao lado de discos dos Beatles, Bob Dylan, Rolling Stones, Queen, Led Zeppelin e Pink Floyd na lista dos cem discos mais importantes da história, segundo a revista americana Blender.

Curiosamente, continuo ouvindo Nirvana - especialmente o In Utero. Ao ouvi-lo, é como se eu voltasse no tempo. A primeira vez que o escutei foi em 1994. Comprei em uma loja de discos. Era um fita K-7. Não sei onde ela foi parar. Ouvi-a tanto... gritei tanto... Os ecos do caos continuam a produzir a sua música gritada e agônica - e o pior é que existe uma satisfação nisso tudo.

sábado, outubro 05, 2013

Pensata matinal de início de mês


Um gracejo matinal! 

Viver em uma sociedade capitalista é ser enredado em algumas armadilhas. Estamos presos à cotidianidade. Naturalizamos um determinado estilo de vida. É como se não existisse outro. Introjetamos a ideia de que quanto mais consumimos, mais realizados nós somos. Tornamo-nos susceptíveis a forças coercitivas - sejam elas reais ou simbólicas. Uma delas é o fetiche da mercadoria. Atualmente, o cartão de crédito é uma espécie de "passagem" para o mundo da possibilidade. O cartão possui um poder simbólico, pois quando o usamos, não temos uma noção imediata dos estragos a que estamos sujeitos. É como se adiássemos a prestação de contas e isso gera uma satisfação - pelo menos um apaziguamento na consciência. Todavia, lá no início do mês, os diques da realidade são rompidos e acabamos nos afogando em meio às exigências das instituições financistas. O salário exíguo vai embora. Escoa com a celeridade de um rio caudaloso. E aí, entramos mais uma vez, numa ciranda: consumimos e trabalhamos com o objetivo de quitar as obrigações criadas pela mercadoria. É o círculo nefasto, a roda-viva. E aí surge a pergunta: a vida é somente isso?

domingo, setembro 22, 2013

Hannah Arendt - Nós, o Brasil e a banalidade do mal - por Marcia Tilburi

Ando meio sem possibilidade de fazer minhas leituras queridas; sem possibilidade de escrever algumas garatujas. O tempo anda escasso. Faz um bom tempo que este espaço foi abandonado. As ideias até surgem, mas não tenho tempo para escrevê-las. Livros acumulados, revistas acumuladas, muitos artigos acumulados. Hoje, quebrei a regra. Fui a um salão cortar o cabelo e acabei levando a última edição (183) da Revista Cult, que compro todos os meses. Li o texto abaixo escrito pela Marcia Tilburi. A reflexão é contundente e toca em um aspecto relevante do pensamento de Hannah Arendt: a reflexão filosófica profunda de uma das mais importantes intelectuais do século XX. Tilburi comenta o filme de von Trotta, que tive a oportunidade de ver mês passado e até comentei por aqui.

Hannah Arendt, filósofa que dá nome ao filme de Margarethe von Trotta, é autora de uma das obras filósoficas mais importantes do século 20. A diretora opta por retrarar a filósofa como uma pessoa comum, a professora envolvida com seu trabalho acadêmico, suas aulas e pesquisas. Fixa o enredo do filme no período em que Hannah Arendt escreveu seu polêmico Eichmann em Jerusalém. Tenta mostrar o que se passava com a filósofa, o cenário que a motivou a escrever o livro cujo conteúdo foi tomado por muitos como um escândalo. O motivo era a análise desmistificatória de Adolf Eichmann, o carrasco nazista capturado na Argentina e julgado em Jerusalém em 1962. Esperava–se desse homem que fosse um monstro, um ser maligno, um louco, cruel e perverso. A percepção de Arendt acerca do caráter desse personagem histórico, de sua postura comum que o fazia igual à tanta gente, causou mal estar.

Foi justamente a postura de Eichmann que permitiu a Arendt cunhar a ideia tão curiosa quanto crítica relativa à “banalidade do mal”. Por banalidade do mal, ela se referia ao mal praticado no cotidiano como um ato qualquer. Muitas pessoas interpretaram a visão de Arendt como uma afronta à desgraça judaica, enquanto ela – filósofa descomprometida com qualquer tipo de facção, religião, partido ou ideologia – tentava entender o que
realmente se passava com a subjetividade de um homem como Eichmann.

Arendt não tomava sua condição de judia como superior à sua posição como pensadora comprometida com a compreensão de seu tempo. A condição judaica era, para ela, condição humana. Não menos, não mais. O problema da subjetividade, das escolhas éticas que implicam liberdade e responsabilidade, era a questão central no momento em que se tratava de pensar e realizar a política.

A performatividade da tese

No filme, fica claro que aqueles que se manifestaram furiosos ou ofendidos contra a tese de Arendt de fato não a compreenderam. Isso porque a tese da banalidade do mal é uma tese difícil, não por sua lógica, mas por seu caráter performativo. Aquele que é confrontado com ela precisa fazer um exame de sua consciência particular em relação ao geral e, portanto, de seus atos enquanto participante da condição humana. A banalidade do mal significa que o mal não é praticado como atitude deliberadamente maligna.  O praticante do mal banal é o ser humano comum, aquele que ao receber ordens não se responsabiliza pelo que faz, não reflete, não pensa. Eichmann foi caracterizado por Arendt como uma pessoa tomada pelo “vazio do pensamento”, como um imbecil que não pensava, que repetia clichês e era incapaz de um exame de consciência. Heidegger, o filósofo nazista que diz ter se arrependido de aderir ao regime, era, no entanto, um gênio da filosofia e, contudo, não era diferente de Eichmann.

Aterrador, no entanto, é que entre Eichmann, o imbecil, e Heidegger, o gênio, esteja o ser humano comum. Eichmann não era diferente de qualquer pessoa, era um simples burocrata que recebia ordens e que punha em funcionamento a “máquina” do sistema, do mesmo modo que cada um de nós pode fazê-lo a cada momento em que, liberado da reflexão que une, em nossa capacidade de discernimento e julgamento, a teoria e a prática, seguimos as “tendências dominantes” como escravos livres, contudo, de si mesmos.  Sair da banalidade do mal é fazer a opção ética e responsável na contramão da tendência à destruição que convida constantemente cada um a aderir.

A banalidade do mal é, portanto, uma característica de uma cultura carente de pensamento crítico, em que qualquer um – seja judeu, cristão, alemão, brasileiro, mulher, homem, não importa – pode exercer a negação do outro e de si mesmo.

Em um país como o Brasil, em que a banalidade do mal realiza-se na corrupção autorizada, na homofobia, no consumismo e no assassinato de todos aqueles que não têm poder, seja Amarildo de Souza, seja Celso Rodrigues Guarani–Kaiowá, uma parada para pensar pode significar o bom começo de um crime a menos na sociedade e no Estado transformados em máquina mortífera.

Disponível aqui

domingo, setembro 01, 2013

Algumas considerações sobre Paulo e um livro de Alain Badiou

Paulo, o apóstolo Paulo, é uma das figuras mais controversas da história. Sou intrigado com essa personagem por tudo aquilo que possivelmente foi e por tudo aquilo que ele representa. Paulo de Tarso é uma das figuras mais emblemáticas da Antiguidade. Esse desejo de conhecê-lo mais profundamente me fez ler o livro "São Paulo - a fundação do universalismo", de Alain Badiou, filósofo e historiador marxista francês. Quis sair do nicho traditivo e que defende de forma cega o dogma, para entrar em uma "arena" crítica.

Fico pensando se não houvesse os escritos de Paulo como seria o cristianismo como religião institucionalizada? Como seriam os dogmas? Os escritos de Paulo são pontos basilares que sustentam a catedral dourinária dos cristãos. Muitos pensadores já perceberam o quanto o texto paulino é inflexivo dentro do Novo Testamento. O apóstolo quebra completamente o aspecto biográfico e taumatológico dos evangelhos (Mateus, Marcos, Lucas e João; e do livro de Atos dos Apóstolos). Existem inúmeras versões para essa discrepância. 

Segundo certa parte dos estudiosos, os textos paulinos constituem os primeiros documentos da história do cristianismo. Das treze cartas sugeridas como escritas por Paulo, seis pelo menos são tidas como verdadeiramente paulinas (Romanos, 1° e 2° Coríntios, Gálatas, Filipenses e 1° Tessalonicenses). As demais (Efésios, Colossenses, 2° Tessalonicenses, Tito, Filêmon, 1° e 2° Timóteo) são de autoria questionável por conta dos extratos estilísticos e, segundo os estudiosos, foram agregadas ao corpus canônico posteriormente. 

Mas o que torna o texto paulino algo a ser investigado? As cartas de Paulo são narrativas pragmáticas. Elas foram escritas em contextos bastante específicos. É estranho que Paulo não insira quase nada em seus escritos sobre discursos de Cristo. O tema mais preponderante em seus escritos resvalam em alguns temas comuns aos evangelhos. Um exemplo é a eucaristia (a santa ceia). Enquanto os evangelhos estão assentados sobre milagres, eventos extraordinários, discursos e ensinamentos por meio de parábolas, eventos climáticos anômalos, ressurreições, os textos paulinos estão fundados em aspectos jurídicos, ou seja, arraigadamente teológicos em sua natureza. Paulo vai falar de justificação, redenção, glorificação, fé como força restauradora, predestinação, eleição, graça, ao contrário do que, por exemplo, defende a Carta de Tiago. Este defende as obras, aquele, a graça e a fé. Ou o Evangelho segundo Marcos que mostra um Jesus imensamente ativo e dinâmico em sua atuação.

Paulo talvez tenha escrito os seus textos nas décadas de 50 e 60 do primeiro século. Os evangelhos, quiçá, sejam escritos mais recentes do Novo Testamento. Suspeita-se que havia uma tradição oral transmissora dos eventos sobre a vida de Jesus, pois se os evangelhos fossem escritas concomitantes ao momento da vida de Paulo, é possível que ele tivesse inserido em seus textos alguns elementos conforme aventado acima. Cria-se assim uma dissociação entre o Jesus histórico dos evangelhos e o arcabouço doutrinário do apóstolo. 

Paulo possui um dogma antifilósofico: Cristo morreu e ressuscitou, por isso invistamos a nossa fé e expectativa nesse episódio. Em sua metafísica cabem potestades e principados. A luta entre o bem e o mal. Ele fia o seu discurso em outra realidade, estabelecendo assim, de forma paradoxal, um platonismo. Sua escatologia diverge daquilo que Jesus escreve nos capítulos finais do Evangelho de Mateus. Paulo fala do "homem da iniquidade" (o imperador romano?). Paulo deve ter atuado como cristão sob o regime de três marcantes imperadores: o terrível Calígula, o conformado Cláudio e o sanguinário Nero. Inclusive, ele foi morto sob a ordem de Nero, conforme a tradição da Igreja defende. 

Do ponto de vista político ele é conformista. Já que em sua pregação existe uma metafísica platônica, ou seja, separando o mundo real do mundo ideal, Paulo prega a submissão dos cristãos às autoridades como aparece explícito em sua carta aos Romanos. Ele não considera a autoridade sob o aspecto crítico. Sua intenção é sempre apontar para a "nova Jerusalém", para a outra vida. "Se a nossa vida se resume apenas àquilo que vivemos neste mundo, somos os mais miseráveis dos seres" (1 Coríntios 15). 

Segundo Badiou, Paulo é o fundador do universalismo da subjetividade da fé, já que a fé não é uma categoria quantificável. O apóstolo não coaduna a ideia de totalidade dos gregos ou de uma eleição judaica que diverge da lógica grega, obrigando tudo que existe a se harmonizar com aquilo que é. Paulo caminha na direção contrária disso. Ele coloca as suas sentenças acima dos condicionamentos da filosofia grega ou da lei judaica, apesar de possuir em sua práxis um profundo background judaico. Ver, por exemplo, a sua explicação para as prerrogativas do homem e "o silêncio da mulher". 

O livro de Badiou contribui com o debate em torno da figura de Paulo. Todavia, existem pelo menos quatro autores estudiosos da vida de Paulo que preciso ler: Adolf von Harnack, Ferdinand Christian Baur, Albert Schweitzer e Ernest Renan, apesar de toda a crítica negativa contra esse último.