terça-feira, dezembro 24, 2013

Pedra Bonita, de José Lins do Rego; e algumas memórias

 Terminei na última sexta-feira, a leitura de mais um dos romances do escritor paraibano José Lins do Rego. Minha intenção é ler toda a obra do autor de Menino de Engenho. Talvez, faltem uns quatro ou cinco livros. Tenho tido um êxito considerável. Não tenho seguido um script cronológico. Olho para os volumes disponíveis em minha biblioteca, saco-os e inicio a leitura. Muito simples. Seguindo essa lógica randomizante, o próximo livro a qual lerei será Cangaceiros, de 1953, um dos últimos romances escritos por José Lins; em seguida, pretendo ler Pureza, de 1937, primeiro romance escrito após o término do Ciclo da cana-de-açucar.

A cada livro que termino do escritor paraibano, surge-me uma pergunta: "O que me atrai a José Lins do Rego?". As suas produções são de cunho memorialístico. É estranho a Zé Lins a capacidade de criar a partir de elementos do não vivido, de inovar. As temáticas são recorrentes. Ou seja, aquilo que experimentou, que seus olhos captaram enquanto era moço na Paraíba, nos engenhos de açúcar, transformou-se em bagagem existencial que o seguiu pelo resto da vida. José Lins era um Balzac rural, um descritivista da vida do sertão nordestino. 

Quando penso essas coisas, talvez, encontre um pouco dos motivos que me prendem à sua narrativa. Cresci na zona da mata pernambucana. Vivi lá até os nove anos de idade. E ainda aprisiono dentro de mim as rutilâncias febris da infância: a autoridade dos mais velhos, principalmente do meu pai e do meu avô materno; as brincadeiras com objetos primitivos forjados pela necessidade; os imensos canaviais das terras dos meus avôs; os riachos para as quais eu ia me banhar, ficar horas e horas a fio na água poluta; as árvores variadas e suas estações frutíferas (jaqueiras, mangueiras, jenipapeiros, jambeiros, saputizeiros, cajueiros, ingazeiros, larajeiras etc); os cheiros variados nos invernos imensos; a água que escorria feroz nos meses de maio e junho de cada ano, alargando os fios anêmicos dos regatos; as biqueiras dos telhados que faziam despencar veios arteriais profusos; a sensação de espanto quando ia à cidade; os trabalhadores no corte da cana; a fragrância inconfundível da cana queimada; o barulho do vento na palha dos coqueiros.

Graciliano Ramos e José Lins do Rego
Ou seja, toda aquela planície ensolarada descortinada no texto de José Lins do Rego faz parte de mim. Está contida em galáxias interiores, neste vasto universo do meu ser. Esse cenário abrangente toma conta de mim. Cria conexões. Portas dimensionais são escancaradas e me fio por elas. Posso estabelecer um paralelo comparativo entre Graciliano Ramos e José Lins do Rego. Com relação ao primeiro, entendo que se trata de um dos nossos maiores escritores de todos os tempos. Com relação ao texto, Graciliano era um depurador de palavras. Seu estilo é inconfundível. Seu texto possui as gradações corretas. A pontuação precisa com a finalidade de criar efeitos estéticos únicos. É um texto que caminha com os pés na terra, medindo cada passo para chegar a determinado lugar com bastante precisão e estudo. Admiro isso. Já José Lins é dono de uma prosa "descuidada". Comete atropelos quanto à regência. Em alguns momentos se delonga em excesso em descrições. Em outros, passa-me a impressão de que está cometendo divagações. Todavia, "os pedaços" dessa prosa singular são conectados e temos um texto que produz sensações elétricas. José Lins sabia contar uma história como ninguém. Talvez, em nossa literatura o caso mais parecido seja o escritor gaúcho Erico Veríssimo.

Terminei a leitura de Pedra Bonita, livro escrito em 1938.Trata-se de um livro de temática religiosa. Aborda um elemento vital do imaginário do povo nordestino: a superstição. A história se passa em algum lugar do estado de Pernambuco, pois as referências aludem a isso. Há a citação de cidades como Garanhuns, Limoeiro, Goiana e Recife, cidades pernambucanas. O vilarejo de Açu reconstitui a arquitetura tão rotineira nas cidades interioranas do Brasil: a vida pacata do povo que se reúne embaixo de uma árvore para especular sobre a vida dos outros; a paróquia no centro da cidade; os coronéis que mandam na cidade; os comerciantes; e a gente comum; a devoção exagerada à tradição erguida pela Igreja Católica.

Como protagonistas temos o padre Amâncio e Antônio Bento, cuja história se ligava a ecos de acontecimentos espetaculosos com a cidade de Pedra Bonita.O jovem Antônio Bento havia sido adotado pelo padre. Era intenção do sacerdote torná-lo padre, mas o sacerdote teve suas intenções inviabilizadas em decorrência das dificuldades econômicas. Antônio Bento, assim, torna-se coroinha da paróquia. Passa a assistir o padre nos trabalhos da igreja. Todavia, a maior parte do povo de Açu não gostava do jovem. Ele era discriminado. Sofria com os debiques dos moradores da cidade.

O fato é que ao final da história, Antonio Bento se ver dividido entre ajudar o padre Amâncio, que estava em seu leito de morte, aguardando outro padre para fazer a confissão; ou se juntar aos seus patrícios de Pedra Bonita, que seriam vitimados pelas tropas do Estado que vinham com fúria para alijar do tumulto gerado por mais um frenesi messiânico. 

O livro possui um realismo duro. O Estado parece como força tirana. Os militares batem sumariamente nas pessoas sem que estas possuam direito ao contraditório. Espancam velhos. Buscam à toda força, lançar por terra os cangaceiros que, também, surgem na história como força antitética aos desmandos do governo. Todavia, acabam se constituindo em mais um "flagelo" do sertão, pois defloravam moças, saqueavam os moradores da terra, alastravam pânico e a especulação de medo por onde quer que passassem.

Em dados momentos do texto, os infortúnio do tempo parecem acometer ao personagem Antonio Bento. A realidade parece sufocar a sua existência. Não há saídas. Existe uma espécie de fado do tempo histórico que é maior do que ele. Antonio Bento não tem saídas. Ele parece ser um joguete do destino. O céu está contra ele; os homens estão contra ele; a história está contra ele. Esse neorrealismo com pitadas de naturalismo, liga Pedra Bonita a Zola ou Aluísio de Azevedo, escritores do século XIX. 

Muito bom o livro, embora não seja um dos melhores de José Lins do Rego.

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