domingo, abril 29, 2012

Cinema egípcio e literatura latina - numa noite

(1) Ontem tive a grata experiência de assistir ao filme egipício, que se encontra no Espaço Itáu Cinema aqui em Brasília, Cairo 678. Eu e minha esposa gostamos bastante da obra do diretor Mohamed Diab. O filme é de dois 2010, mas somente chegou ao Brasil por agora. Mohamed Diab narra a difícil realidade das mulheres em seu país. O filme é excelente. Numa sociedade machista, na qual os homens desde pequeno são ensinados a silenciarem e cometerem abusos sexuais contra o sexo feminino no espaço público, três mulheres corajosas buscam se posicionar contra essa opressão. O aviso inicial de que a selvageria cometida contra as mulheres é baseada em fatos reais, deixa-nos com um amargor enorme na boca. Diab consegue reter nossa atenção, prender-nos à poltrona para que sintamos as possibilidades de um cinema que tem a finalidade de ser uma importante arma de denúncia.

Para que se alcanse o respeito, um alto preço é pago. E e justamente o que o diretor tenta mostrar. Uma sociedade egípcia caótica, patriarcal, na qual os homens abusam das mulheres no meio da rua e quando as mulheres buscam denunciar são infamadas. Segundo as informações finais da obra, a selvageria cometida contra as mulheres teve uma atenuante, quando da publicação de uma lei que proíbe o abuso. Belíssima a película. Serve para quem quiser conhecer um pouco mais sobre Oriente. E nos tirar do "lugar-comum". Ou seja, o padrão Hollywood.

Fiquei observando as filas enormes que se formavam para ver o The Avengers (Os vingadores), aquela porcaria hollywoodiana, com heróis com o nome da América e outros parafernálias fantasiosas. As sessões estavam esgotadas. Quando cheguei à sala em que ia passar o filme de Diab, constatei "os gatos pingados". Talvez alguns estivessem ali por não conseguirem ingressos para a sessão dos musculosos heróis. Vivemos uma vida sem poesia. Estéril de impressões artísticas. Falta de sentido. A sensação de enxergar aquilo que gostaríamos de ser, acaba volatizando a consciência de si e nos empurra para a fantasia dos efeitos especiais, com heróis que voam, destroem prédios, sofrem dilemas e salvam o pleneta contra forças infernais.

(2) Outro fato significativo é que fui à Livraria Cultura e comprei três livros que há muito desejava: (1) Chamadas Telefônicas e Monsieur Pain, ambos do escritor chileno Roberto Bolaño; e a biografia da kafkafiana Clarice Lispector, Clarice, escrita no ano passado por Benjamin Moser. Fiquei feliz com a minha noite dividida entre o Oriente distante e proximidade latina de Bolaño.

quarta-feira, abril 25, 2012

Graciliano Ramos, a literatura feita com cipó

Após ter lido as memórias biográficas de Ricardo Ramos ("Graciliano - Retrato Fragmentado", Editora Globo) sobre o pai Graciliano Ramos, bateu-me um senso de proximidade com o escritor alagoano, o maior escritor brasileiro do século XX, junto com Guimarães Rosa. Estou cogitando há alguns dias escrever alguma coisa sobre o autor de Vidas Secas. Mas enquanto início a redação dessas parcas palavras, minha mulher me chama para um compromisso social-familiar. Lamento. Embora tenha que sair, fica-me a certeza de que em Graciliano Ramos, no meio do caminho tinha uma estilo pedra, estilo cipó, estilo sertão.

quinta-feira, abril 19, 2012

“…su cadáver estava lleno de mundo” - por Rubem Alves

Recordo-me que li este texto nos idos de 2003. A primeira vez que o li, fui pertubado pela reflexão contudente e sensata que ele carrega. Estava em um seminário protestante. Estudava para ser um clérigo e após várias leituras que vinha fazendo, cheguei a algumas reflexões. Fui sendo libertado pelo valor da lógica. "O menor contato com lógica, dissolve os raciocínios falhos" (Victor Hugo).  Mas este texto possui um valor sentimental. Quando o li, as minhas convicções e suspeições mais profundas foram estremecidas. Todas vezes que volto a lê-lo, fico com a impressão que esta é uma reflexão com um corte metaliguístico. Encho-me de um saudosismo existencial. Ele fala de mim. É como se ele explicasse a minha jornada. A minha caminhada de ente apaixonado. Mas não se tratava de uma paixão consequente. Eu, simplesmente, não sabia o porquê de estar apaixonado. O peso desse texto passou por cima dos meus eflúvios sentimentais e me deixou em posição indigesta.

Hoje, olhando para trás, não indigno-me por tudo o que vivi. Muito pelo contrário, penso que aquilo foi necessário para que eu aprendesse alguns valores fundamentais. A história é a maior mestra que existe. Olhemos para ela e encontraremos as respostas mais sensatas para aquilo que fomos, somos e seremos. Como diz Rubem Alves: "Caminhante, não existem caminhos. Os caminhos se fazem ao caminhar".

Abaixo, segue o texto de grande valor sentimetal:

“…su cadáver estava lleno de mundo” 

Por Rubem Alves

Eu era jovem e andava por um caminho plano e seguro. Todos os seus detalhes me haviam sido ensinados. Ele estava todo sinalizado com tabuletas para evitar que alguém se perdesse. Em algumas tabuletas se liam “certezas”. Em outras, “proibições”. Certezas e proibições têm importantes funções psicológicas. As certezas nos dizem que já encontramos a verdade. Quem já encontrou a verdade deixa de procurar. As certezas, então, embalam a inteligência que se põe a dormir. É tranqüilizante saber-se possuidor da verdade. Eu vivia tranqüilo. As proibições, por sua vez, nos dizem o que não se pode fazer. Sabendo-se o que não se pode fazer somos libertados da terrível necessidade de tomar decisões. As decisões são necessárias quando nos defrontamos com uma encruzilhada, bifurcação, dois caminhos à nossa frente. Posso tomar o caminho da direita, posso tomar o caminho da esquerda. Mas não há nenhuma tabuleta indicando qual deles conduz ao fim desejado. Toda encruzilhada nos coloca numa situação de incerteza. E a incerteza produz ansiedade: é preciso decidir, sem saber ao certo… Mas se existe uma tabuleta num dos caminhos com a palavra “Proibido”, a dúvida se resolve. A proibição decide por mim. Livro-me, assim, da terrível condição de ser um ser moral – que é, precisamente, a condição de tomar decisões sem ter proibições que decidam por mim. Eu não tinha conflitos morais porque as proibições já haviam tomado as decisões por mim. Assim caminhava eu, dezenove anos, pelo caminho das certezas e proibições, tranqüilo, pelo caminho que levava aos céus. Pois os céus não são o destino dos homens? Tão convencido estava eu do caminho que estava seguindo que até me havia matriculado numa escola onde se ensinam certezas e proibições, um seminário, porque o meu desejo era conduzir as almas pelo caminho que eu seguia.

Aí, o inesperado aconteceu. Um homem apareceu no meu caminho, andando na direção contrária. Perguntei-me, espantado, se ele não se dava conta de estar andando na direção errada. Aí, ao nos aproximarmos, ficamos um diante do outro, e olhei bem dentro dos olhos dele, e vi, refletido como num espelho, um mundo que eu nunca havia visto, o mundo que estava atrás de mim, o mundo do qual eu fugia, em busca dos céus. Olhando bem vi que naquele mundo não havia caminhos. “Caminhante, não há caminhos! Os caminhos se fazem ao caminhar!” E também não havia nem certezas e nem proibições. O que havia eram horizontes, direções, possibilidades, liberdade. E o mundo muito bonito. Me convidava…

O estranho não disse nada. Mas os seus olhos apontaram. E os meus olhos se abriram. Experimentei então os medos e os risos das dúvidas. Pois não é isso que experimenta o alpinista que escala o Aconcágua? O risco da morte bem vale a emoção dos desafios! Os que não suportam dúvidas jamais escalam picos; eles ficam nas planícies andando pelos caminhos conhecidos e seguros. Experimentei a alegria e o sofrimento de ter de tomar decisões sem que ninguém me desse ordens ou proibições, tendo apenas o meu próprio coração como conselheiro. Troquei o caminho que leva aos céus pelos muitos caminhos que levam ao mundo. E assim tenho andado pela vida afora, sem certezas e sem proibições… Tudo por causa do olhar daquele homem…

Ele, o estranho com que me encontrei, viveu aqui em Campinas. E posso dizer que a minha vida se divide em dois períodos: antes de conhecê-lo, depois de conhecê-lo. O seu nome era Richard Shaull. Lembro-me perfeitamente bem: encontramo-nos pela primeira vez na avenida Brasil, próximo ao cruzamento com a rua Frei Antônio de Pádua. Era o ano de 1953. As casas eram poucas, os eucaliptos eram muitos. Não falava português; falava espanhol. Havia sido expulso da Colômbia, por ordens da hierarquia católica. Uma igreja construída sobre verdades e proibições não pode suportar a presença de alguém que ensina dúvidas e liberdade. Viera então para o Brasil como professor do Seminário Presbiteriano, à avenida Brasil, 1.200. Se me perguntarem: “O que foi que você aprendeu com ele?” – a resposta é simples: “Dick Shaull me ensinou a pensar.” Lembro-me de um prova que fiz em uma de suas disciplinas. Eu estava certo de que teria 10, porque a prova tinha sido completa, perfeita. Mas ganhei um 9.0. Fui reclamar. Aleguei que havia escrito precisamente o que ele havia dito nas aulas. Ele me respondeu: “Por isso mesmo. Você apenas repetiu o meu pensamento. Lendo a sua prova eu não aprendi nada. Eu esperava encontrar na prova o seu pensamento…”

Profetas não são videntes que anunciam um futuro que vai acontecer. Profetas são poetas que desenham um futuro que pode acontecer. Profetas sugerem um caminho. Richard Shaull falava de futuros com que nós nunca havíamos sonhado. Ele via o que ninguém mais estava vendo. Em seis meses ele já sabia muito mais sobre o Brasil do que eu. Foi ele que me apresentou a um catolicismo inteligente. Sugeriu que eu lesse A Descoberta do Outro e Lições de Abismo, livros dos anos de lucidez de Gustavo Corção. Foi através dele que fiquei sabendo dos movimentos de renovação que silenciosamente fermentavam dentro da Igreja Católica, a renovação bíblica, a renovação litúrgica, movimentos esses que haveriam de influenciar profundamente o Papa João XXIII – de saudosíssima memória! – e o Concílio do Vaticano II.

Pensador profundamente mergulhado na tradição da Reforma Protestante (celebrada no dia 31 de outubro, data em que Lutero afixou suas “95 Teses”, às portas da catedral de Wittenberg), ele nos ensinou a lição fundamental de teologia: “O problema do céu, Deus já o resolveu por nós. Não há nada que tenhamos de fazer. Resolvido o problema do céu, estamos livres para cuidar da terra, que é o nosso destino…”

Shaull tinha visões de um mundo diferente. Foi o primeiro que me falou da responsabilidade social dos cristãos. Se, para a igreja tradicional o mundo era o lugar da perdição do qual os cristãos deveriam fugir – foi isso que os monges fizeram –, para Shaull o mundo era o lugar da nossa vocação. É preciso estar presente no mundo para que ele se renove, ele dizia. Essa palavra, “presença”: como era importante no seu pensamento! E foi assim que ele liderou um projeto impensável: um grupo de seminaristas, durante as férias, trabalhando como operários numa fábrica na Vila Anastácio, em São Paulo. A inspiração para esse projeto veio de um movimento católico, os “padres operários” que, na França, resolveram parar de esperar que os trabalhadores fossem à igreja, e foram, eles mesmos, até onde eles viviam: as fábricas. Sem o saber, Shaull estava lançando as sementes da “teologia da libertação”.

Cerca de 10 anos antes do Concílio do Vaticano II ele já sonhava com o ecumenismo. Ecumenismo: essa palavra era maldita tanto para protestantes quanto católicos. Para os católicos, donos da verdade, maldita porque os protestantes eram apóstatas. Para os protestantes, donos da verdade, maldita porque os católicos eram idólatras. Inimigos irreconciliáveis, como poderiam católicos e protestantes se assentar para partilhar de uma fé comum e do mesmo ritual eucarístico? Pois o Shaull, andando na direção contrária como convém a um profeta, resolveu transgredir o proibido: organizou encontros secretos com os dominicanos de São Paulo e nos convidou, um pequeno grupo de seminaristas, a participar da conspiração. Sabíamos que se a conspiração fosse descoberta a punição seria certa: seríamos expulsos do seminário. E assim, com uma mistura de medo e de alegria, lá íamos nós com o Shaull, para uma experiência com que jamais havíamos sonhado. Foi bom descobrir que os católicos eram pessoas inteligentes, amantes da Bíblia, fraternas… Até então não sabíamos disso!

Não conheço ninguém que em tão curto espaço de tempo tenha semeado tanto. Não é possível contar tudo. Só posso dizer que um homem que anda na direção contrária não o faz impunemente. Os profetas são seres malditos. Nietzsche, um outro que caminhou na direção contrária, sabia o preço que se paga por ver o que os outros não vêem. Dizia ele: “Os fariseus têm de crucificar aquele que inventa a sua própria virtude”. Aqueles que não vêem odeiam aqueles que vêem. Richard Shaull foi crucificado. As igrejas não o suportaram: expulso da Colômbia, pelos católicos, expulso do Brasil, pelos protestantes…

Agora ele ficou encantado. Partiu. É certo que plantarei uma árvore para ele no meu lugarzinho solitário, no alto de um montanha, à beira de um vulcão, junto com as árvores de outros conspiradores… No silêncio, quando não houver ninguém por perto, as árvores conversarão entre si…

…“Sejamos simples e calmos/ como os regatos e as árvores,/ E Deus amar-nos-á fazendo de nós/ Belos como as árvores e os regatos/ E dar-nos-á verdor na sua primavera,/ E um rio aonde ir ter quando acabemos!” Alberto Caieiro.

* “…su cadáver estava lleno de mundo” . verso de César Vallejo

domingo, abril 15, 2012

A melancolia de um assunto teologal e Jacques Ellul

Jacques Ellul
Ontem fui a um casamento e encontrei um colega que não via há bastante tempo. Em tempos idos, conversavámos incansavelmente sobre teologia. Tratava-se de um grande prazer. Meu colega é um sujeito atilado, leitor curioso e inquiridor contumaz. No passado, anuía à maioria das suas ideias. Quando encontrou comigo já foi sacando seu séquito de novidades. 

Inseriu uma série de temas teologais. Falamos sobre o cenário evangélico. Mas nos fixamos mesmo foi em Jacques Ellul, teólogo, ativista e sociólogo francês, uma das mentes mais privilegiadas dos últimos cinquenta anos. Falou com entusiasmo sobre Ellul. Infelizmente ou felizmente eu nunca li nenhum livro do francês. Recordo-me que no passado fiz planos para ler os livros de o autor de Apocalipse, arquitetura em movimento editados em nosso país. O desejo foi esmaecido pela tempo. De modo que nem lembrava mais do projeto. Uma vez ou outra me vinha à mente o nome do ilustre ativista francês que lutou contra as forças nazistas durante a Segunda Guerra Mundial e se converteu ao cristianismo desde o 22 anos de idade.

Meu colega instigou-me a ler Ellul. Tentei desconversar e fui honesto ao afirmar que não suporto mais aquelas narrativas previsíveis da maioria dos autores intitulados cristãos. A gente sabe aonde aquele ramerrão vai dar. Atualmente, fujo de texto ruim. Ellul parece convincente. Odeio autores aos quais falta imaginação e um senso literário largo. Para não cometer os mesmos sortilégios do passado (e até dá uma chance ao novo), resolvi comprar imediatamente dois livros de Elull - Mudar de posição, o inelutável proletário e Apocalipse, arquitetura em movimento. Outro livro de Ellul a qual estou com uma ânsia muito grande de ler é Técnica e o desafio do século, livro este voltado para o campo da análise sociológica e lido nas principais universidades do nosso país.

Enquanto conversava com o meu colega, fiquei pensando que a teologia é um ramo do conhecimento humano que pode apresentar duas faces: (1) uma face monocromática, ou seja, repleta, arrogantemente, de supostas verdades e achismos peremptórios. É dessa faceta que estou fugindo. Não quero mais as supostas verdades de "cara feia". Aquelas supostas verdades que enfeiam a vida. Que a torna manchada. Repleta de culpa e impossibilidades. (2) a teologia pode se transformar em algo belo, que busca compreender o que é o homem e sua saga pela história, embora as respostas que venha a dar não sejam finalizantes, por que não são algo em si.

Peter Berger diz que "Os significados projetados da atividade humana cristalizam-se num gigantesco e misterioso 'outro mundo', que paira sobre o mundo dos homens como uma realidade alheia". Essa projeção que é criação passa a ter um domínio sobre o homem. E partindo desse raciocínio que Nietzsche vai dizer que "a criação domina o criador". O elemento que cria "o outro mundo" acaba sendo dominado por ele. O fato é que toda esse radical desejo é construído com a linguagem. Ou seja, as palavras podem ser matéria-prima com que constroem mundos.

Richard Dawkins, uma das personalidades mais odiadas pelos religiosos do mundo de hoje, diz que "temos que nos contentar, ao olharmos para um jardim, em vê apenas o jardim". Diz o Dawkins que "há pessoas que inventam ou criam a necessidade de afirmar de que ali há fadas e duendes". Não chego a tamanho radicalismo. Sou daqueles sujeitos "desconfiados" - não no sentido moral. Pelo contrário, penso que há um lugar para a teologia, desde que ela não me venha com sofismas proponentes, pois como diz o Dawkins: sempre há aqueles que gostam de gnomos e fadas e exigem que você veja aquilo que ele está (ou não) vendo. E talvez resida aí o grande equívoco da posição daqueles que aludi acima no primeiro ponto sobre a teologia.


terça-feira, abril 10, 2012

Raul - o início, o meio e o fim - anotações e memórias

No último domingo fui ao cinema assistir ao documentário de Walter Carvalho - Raul - o início, o meio e o fim - e veio à minha cabeça boas recordações de minha adolescência. Durante dois ou três anos seguidos do meu ensino médio, o cantor que mais ouvi foi o Raul Seixas. Havia um colega em minha turma (o Ronivon), que era um verdadeiro maníaco pelo roqueiro baiano. Aquela influência acabou me contagiando. Mas aquela força aos poucos foi arrefecendo. O vento tempestuoso da vontade acabou sendo sofreado pelas investidas do tempo. 

Quando me converti, no final de 1999, ao protestantismo acabei abandonando muitas das músicas que ouvia. E o Raul foi uma dessas vozes que foram silenciadas. Após algumas caminhadas e reveses, esqueci-me de sua música, de sua poesia, de sua mística roqueira. Mas o documentário (que vou comentar mais à frente) fez reavivar em mim uma vontade enorme de revisitá-lo. 

Raul Seixas nasceu em Salvador, no ano de 1945. Quando ainda era adolescente foi abduzido pelo ritmo contagiante do rock n' roll. Tratava-se de uma energia que contaminava corações e mentes. Era uma época de inocência e sonhos. A força do rock fazia com que os jovens mudassem o modo de vestir, de falar, de andar e, principalmente, o modo de se comportar. Ser roqueiro era pertencer a uma contracultura contestadora. Era caminhar pela via oposta. Significava contestar o modus operandis da sociedade. As engrenagens da vida burguesa. Todavia, o rock mesmo era um movimento feito por burgueses e para burgueses. No fundo, era um ato de rebeldia contra os valores instituídos, mas realizado por aqueles que o criaram. Dizia respeito a uma vontade de dizer na cara dos pais: "A vida não é só casamento tradicional. Existem outras experiências a serem vividas". O rock transmitia essa força. Envidava "anarquismos" contra a ordem instituída.
O garoto Raul Seixas entrou em contato com a música de Elvis Presley e aquilo mudou a sua vida. Determinou uma trajetória de existência. O rock sempre esteve nas veias do maluco beleza Raul Seixas - até no dia de sua morte, em 1989. Ele viveu até as últimas consequências as implicações da fama e da queda.

O documentário de Walter Carvalho é imensamente sensato. Não busca caricaturar, nem fornecer uma imagem distorcida do compositor de Gita. Mostra como se deu início da carreira do roqueiro e o fim melancólico no Rio de Janeiro. O documentário buscou dar voz àquelas pessoas que estiveram ao lado do artista - Paulo Coelho, Caetano Veloso, Marcelo Nova, as várias esposas, amigos e tantos outros que fizeram parte da trajetória do roqueiro. 

A obra amplificou algumas reflexões sobre Raul Seixas. O compositor é um artista maldito. Envolveu-se com toda sorte de experiência - tanto as psíquicas, quanto as espirituais. Pode se dizer que Raul Seixas foi um dos maiores artistas da contracultura do século XX. Se fosse americano, quiça sua fama tivesse alcançado alturas mais significativas. Mas o fato é que Raul Seixas ainda é imensamente popular. Seus discos ainda são vendidos. Sua obra ainda é cantada e celebrada por milhares de fãs espalhados pelo país.

O documentário de Walter Carvalho, acredito, chega em hora oportuna, para que os mais jovens conheçam a importância artística de um homem como Raul Seixas e reflitam sobre a poética de suas músicas. 

Quando saí do cinema, no último domingo, a primeira coisa que fiz ao chegar em casa foi ouvir o disco "Há 10 mil anos atrás", de 1976. Muito bom! Recordo que na minha adolescência, um dos discos que mais ouvia era o "Abre-te Sésamo". Músicas como Ouro de Tolo, Só pra variar, Metrô Linha 743, Aluga-se, As minas do Rei Salomão, Meu amigo Pedro ou Eu também vou reclamar são verdadeiras impressões de um artista habilidoso e genial.

Foi bom ter assistido ao documentário. Possui cenas muito curiosas e engraçadas da vida do roqueiro. Dei boas gargalhadas. Raul Seixas conseguia fazer belas ironias e críticas mordazes em pleno regime militar. Ele era um "transgressor" nato. Um verdadeiro "maluco beleza", que vivia dentro da "loucura real".

segunda-feira, abril 09, 2012

Uma leitura sobre Marx

Capa do livro de Attali
Terminei a leitura do livro de Jascques Attali - Karl Marx: ou o espiríto do mundo. O título é bastante feliz para aquilo que Attali se propõe a debater e expor em sua obra. Marx é um dos nomes mais comentados e pleno de significações, radicalismos e achismos peremptórios. Aqueles que o refutam, acham que sua teoria é uma contradição, um mal, razão de desmazelos, ditaduras trágicas e a opressão de uma classe privilegiada sobre uma maioria padecente. Associam à pessoa de Karl Marx, figuras como Béria, Stálin, Pol Pot ou Ramón Mercader, o assassino de Trotsky. Ou, ainda, ambiguidades sistemáticas, contradições cômicas ou trágicas.

Já aqueles que o defendem, agarram-se a uma militância deificadora; numa espécie de entedimento quase que messiânico sob a figura do filósofo de Trier. Essa dicotomia apenas serve para dimensionar a importância desse que, de fato, é responsável pelo "espiríto do mundo". 

Marx e Engels
Umas das reflexões aludidas por Attali é sobre as várias interpretações que foram dadas à pessoa do escritor de O Capital. Como acontece aos grandes homens respresantivos, Marx é uma das figuras que mais passaram por adaptações caricaturescas. Attali afirma que até mesmo Engels foi responsável por uma "vulgarização" da pessoa de Marx. Outros nomes vieram em seguida, encetando este trabalho de adaptação do espiríto da teoria de Marx: Kautsky, Bernstein, Lênin, Stálin etc.

Curiosa é a citação que Attali faz sobre um espisódio, uma declaração de M. B. Mitin sobre Stálin: "Stálin desenvolveu mais, elevou a um nível mais alto o ensinamento do materialismo dialético e histórico. Ele se alinha com os trabalhos dos clássicos do marxismo-leninismo como O Capital de Marx, o Anti-Dühring de Engels e Materialismo e empirio-materialismo dialético e histórico de maneira extremamente compacta. O camarada Stálin procedeu nesse trabalho a uma generalização das constribuições de Marx, Emgels e Lênin sobre o ensinamento do método dialético e da teoria materialista. [...] Jospeh Vissarionovitch Stalin, continuador do imortal trabalho de Marx e Emgels, amigo e companheiro de Vladimir Ilitch Lênin e continuador dos seus trabalhos geniais, é o pensador de nossa época moderna, um tesouro da ciência marxista-leninista" (sic.) [ATTALI, 2005, pp.410-11]. 
Joseph V. Stálin
Afora o aspecto propagandístico da afirmação de Mitin, o tom que se ressalta é de semelhança ao acontece na Igreja, Marx passou a ser uma entidade que precisa de determinadas pessoas supostamente iluminadas para interpretar e dar sentidos aos seus textos. Ou seja, muito daquilo que foi feito em nome de Marx, o próprio Marx não defendeu em seus escritos. Por exemplo, o conceito de ditadura do proletariado foi deturpado; chega-se ao comunismo pela via democrática ou pela revolução. A experiência soviética não deve ser entendida como o marxismo em sua vasão e clímax. 

Apontei aqui apenas um aspecto sobre o livro do Attali. A obra é boa. O estilo possui uma fluência gostosa. A leitura escorre fácil. Apropriamo-nos com bastante facilidade dos conceitos e eventos históricos mais importantes que envolveram o comunismo, o socialismo e as ideias de Marx nos últimos 170 anos.

Marx nunca esteve tão vivo. E a melhor forma de descobri-lo não é por intermédio dos seus epígonos - unicamente. É preciso ir à própria fonte e se abeberar das águas puras e doces do rio caudaloso que é esse filósofo - "o espírito do mundo".

sábado, abril 07, 2012

Alguns filmes e Persona, de Ingmar Bergman

Meu feriado está sendo regado a um pouco de trabalho, música e filmes. Já vi alguns filmes muito bons e isso me dá uma sensação de refrigério e alívio. Penso apenas que poderia ter lido mais. Já tive a oportunidade, por exemplo, de ver Má educação (2004), do espanhol metido a polemista, Pedro Almodóvar; vi também Pecados Íntimos (2006), de Todd Field, um filme que me surpreendeu pela singeleza e pela qualidade; Star Wars - episódio 4: Uma nova esperança (1977), o épico filme de ficção científica que inicia a série, do papa dos efeitos George Lucas. Mas nada me chamou tanto a atenção quanto Persona (1966), de Ingmar Bergman. Isso filme que foge a qualquer classificação.

Confesso que após ter assistido ao filme hoje à tarde, ainda me encontro me refazendo da experiência. Trata-se de um filme curto - possui pouco mais de oitenta minutos. Mas, mesmo sendo curto, é uma filme que diz - diz muito. Bergman é um mistério. A começar pela fotografia, que é um deslumbramento, a obra precisa ser vista mais de uma vez para que nos apercebamos de detalhes. Tudo é feito em preto e branco - de uma beleza impecável - como em O Sétimo Selo (1957) ou Morangos Silvestres (1957).

A densidade e a  dramaticidade da obra nos lança num caleidoscópio de sensações espantosas. Tudo converge para tomadas quase inexplicadas. Um garoto de aspecto sofredor deitado numa cama num ambiente asséptico, tentado alcançar, tatear a imagem intangível numa tela. A cara plástica que muda de aspecto. A densidade de uma conversa, como a que acontece entre Alma (Bibi Andersson) e Elisabeth (Liv Ullmann), quando aquela conta a esta uma esperiência amorosa inexplicada numa praia deserta com um garoto. O aborto que segue e o sentimento impiedoso de culpa. O mutismo voluntário de Elisabeth. Seu silêncio nos atinge. Em dados momentos em que Alma tenta arrancar uma palavra de Elisabeth, indignamo-nos com a personagem de Liv Ullmann. Por que não falar?

E, afinal, o que querem significar aquelas cenas bizarras de entranhas sendo rasgadas ou uma mão sendo atravessada por um cravo enorme? Ou a equipe de filmagem aparecendo do nada no final do filme? O ainda o filme sendo queimado? Talvez, uma amostra surrealista da capacidade de dizer o inaudito com cenas deslocadas e, aparentemente, sem nexo. Fez-me lembrar de O espelho de Tarkovski. Assistir a um filme como esse é mergulhar numa viagem existencial e psicológica. O filme parece possuir uma força diabólica engolfante, que sufoca. Bergman nunca é claro num primeiro lance. A melhor palavra a qualificá-lo é "enigmático". Seu ofício: dizer muito, absurdamente, com poucas palavras e com diálogos densos. 

Em dado momento, as duas personagens acabam se fundido. O silêncio de uma e a loquacidade da outra parece se tornar um fenômeno complementar. Enquanto uma fala e a outra decide pelo silêncio, acabamos descobrindo mais fatos sobre aquela que nada diz. O que ela diz está nos gestos, no sorriso magistralmente esboçado. Uma questão fundamental levantada pelo filme é até que ponto podemos descobrir o nosso "eu", fechado pela cortina das aparências, que é viver em sociedade. Nossas personas serão os papéis que representamos? Como diálogo (descrito abaixo) entre Elisabeth e a terapeuta:

- Pensa que não entendo?  O inútil sonho de ser. Não parecer, mas ser. Estar alerta em todos os momentos. A luta: o que você é com os outros e o que você realmente é. Um sentimento de vertigem e a constante fome de finalmente ser exposta. Ser vista por dentro, cortada, até mesmo eliminada. Cada tom de voz, uma mentira. Cada gesto, falso. Cada sorriso, uma careta. Cometer suicídio? Nem pensar. Você não faz coisas desse gênero. Mas pode se recusar a se mover e ficar em silêncio. Então, pelo menos, não está mentindo. Você pode se fechar, se fechar para o mundo. Então não tem que interpretar papéis, fazer caras, gestos falsos… Acreditaria que sim, mas a realidade é diabólica (…).

Persona é uma obra aberta no sentido mais claro definido por Umberto Eco e por mais que se diga algo, ainda haverá muito por se dizer. Ou seja, por mais que se diga algo, aquilo que se diz será sempre aleatório. Somente assistindo ao filme para se entender essa experiência estupefaciente.

quarta-feira, abril 04, 2012

Koyaanisqatsi, a música de Glass e a tinta

Hoje, quarta-feira pela manhã, estou em casa, nesse prenúncio de feriado. Organizando algumas tarefas, resolvi ouvir a trilha sonora do filme Koyaanisqatsi, composta pelo americano Philip Glass. Um pintor está aqui no apartamento em que moro, aplicando algumas demãos nas portas e nas paredes. O cheiro forte da tinta provoca irritação. Escuto a música de Glass e sinto um leve torpor. Ainda estou lúcido (risos). O cheiro é nauseante. 

Apesar de ter minhas reservas com relação a Glass (acho que boa parte das composições do americano são discutíveis), penso que Koyaanisqatsi, junto com Powaqqatsi, sejam um dos os melhores momentos do compositor. Glass é considerado um dos "papas do minimalismo". Sua linguagem possui uma redundância açambarcante. Na trilha sonora do filme "As horas", por exemplo, parece que a música foi executada com uma só nota. Isso é curioso. Não que se trate de algo ruim. Às vezes, eu escuto a trilha sonora para o filme sobre a vida de Virgínia Woolf e acho-a misteriosa. É como se estivéssemos ouvindo o rumorejar da viagem de um rio. A música possui curvas sinuosas, mas é como se voltássemos ao mesmo ambiente, à mesma paisagem em toda viagem.

Na trilha sonora para Koyaanisqatsi, Glass parece ter por missão provocar um deslumbramento. A sensação é de transcendência. A mensagem é bela, porém dura e niilista. Aquele coro à la canto gregoriano promove uma experiência para o nefasto transfigurado. Nesse sentido, julgo essa composição extremamente feliz. Glass nos conduz por uma via espiritualmente orientalizante. O som do órgão é o motor da viagem espiritual. A voz "cavernosa" repete a palavra estática 'koyaanisqatsi', como se ela fosse cauterizar uma chaga aberta ou incutir um código-aviso sobre o caos - koyaanisqatsi, significa "um estágio que precisa de mudança". 

A música é bela. Ouvi-la é ser, necessariamente, arrebatado para um mundo de reflexão. Ela nos faz pensar em nossas dores. Nas experiências megalomaníacas da humanidade. Nos sonhos frustrados. No projeto mundial chamado de "civilização humana", resultante no trágico e na bárbarie. As cenas finais do filme Koyaanisqatsi, enquanto passa última música (Prophecies) é de deixar qualquer um de boca aberta. A massa sonora com os sons mínimos, produzida por párticulas musicais que se repetem, uma voz medonha que repisa  a mesma palavra e o órgão pesado, "roncando", como um monstro construído para amedrontar e emgrolar "enjoativamente" a mesma voz, é algo incrível. O cheiro da tinta continua forte, mas a música de Glass é múrmurio mínimo, capaz de produzir explosões caóticas em meu cérebro, pelo poder espiritual que carrega. 

A cena final (no vídeo abaixo) é atordoante. Um foguete enorme sobe ao céu, como se nele estivesse a nossa pretensão babelíca. Como se tivéssemos chegado ao alto, ao nosso clímax civilizacional.  A explosão do objeto fálico (símbolo da força) é uma metáfora da nossa própria bancarrota. Talvez aí resida o conteúdo niilista do música de Glass e do filme de Godfrey Reggio.