sexta-feira, agosto 31, 2007

A mulher, o amor e...

Comentário livre ao texto “O casamento e o amor na Idade Média
Este pequeno texto é um comentário livre a um artigo que li para a aula da matéria de "Medievalismo e Renascimento" do curso de Letras. Quem quiser ler o artigo na íntegra clique no link a seguir: http://www.milenio.com.br/ingo/ideias/hist/casament.htm. A foto ao lado é de Sofonisba Anguissola, uma feminista que quebrou os clichês montados pela Igreja e pela mentalidade da época - excelente pintora e escultora de obras admiradas por reis e rainhas da época, Sofonisba consititui uma antítese a esse período controverso. Espero que o texto agrade. Um abraço carlino.


O texto bíblico do Gênesis afirma que quando se deu a consumação do “pecado original”, Deus teria sentenciado: “O teu desejo [mulher] será para o teu marido”. Desse modo foi construído ao longo da história de Israel um tipo de postura seriamente machista. O direito da mulher, em Israel, partia de uma compreensão da divindade descida para o homem. Por exemplo, o homem podia divorciar-se da esposa “por ter ele ter achado coisa indecente nela”, mas à esposa não era permitido divorciar-se do marido por nenhuma razão.

A Torá de Moisés afirmava que a esposa suspeita de ter relações sexuais com outro homem devia fazer prova de ciúmes. Contudo, não havia prova nenhuma contra um homem acusado de infidelidade contra a mulher. Um homem podia fazer um voto religioso e esse voto tornava-se válido; por sua vez, o voto feito por uma mulher podia ser anulado pelo seu pai (ou se ela fosse casada) pelo marido. Ou seja, uma menina era educada para obedecer o pai sem questionar. Depois, quando se casava, devia obedecer o marido da mesma forma. Quando se nascia uma filha, era bem menos recebida do que se fosse um filho. Os meninos eram ensinados a tomar decisões e a governar as suas famílias. As meninas eram criadas para se casar e ter filhos. A mulher podia ser comprada e vendida. A mãe lhe ensinava a cuidar da casa e a criar filhos. Esperava-se que ela desse muitos filhos ao marido. Se a mulher não tinha filhas, era tida como amaldiçoada ( TENNEY e at., 1988).

Paulo de Tarso, já nos tempos do Novo Testamento, afirma que “o homem era o cabeça da mulher, assim como Cristo era o cabeça da Igreja”. Em trechos de cartas do Novo Testamento o chamado apóstolo dos gentios, que foi responsável pelo bem-sucedido proselitismo no Império Romano, leva as suas concepções judaicas para o mundo Antigo. Paulo como bom judeu na carta que escreveu para ao seu discípulo Timóteo, diz: “A mulher aprenda em silêncio, com toda submissão. E não permito que a mulher ensine, nem exerça autoridade de homem; esteja, porém, em silêncio. Porque, primeiro, foi formado Adão, depois, Eva. E Adão não foi iludido, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão”( II Tm 2.11-14). Percebe-se com muita clareza que a lógica nos quais se enquadra o pensamento de Paulo deriva, antes de tudo, de uma forte base estrutural no pensamento judaico, que tinha a mulher como um ser inferior em relação ao homem.

Já no Timeu de Platão e na Política de Aristóteles foi atribuída à mulher uma natureza secundária em relação ao homem à semelhança dos judeus. O macho tinha prerrogativas absolutas em relação à fêmea. Para Aristóteles, a mulher não passava de uma “evolução detida”. Em suma, aquilo que estacionou estanquimente – evolução involuída. Em Roma, por exemplo, dizia Catão que se um homem surpreendesse a sua esposa em adultério se poderia matá-la. Não haveria culpa para o castigo. Porém se o adúltero fosse o homem, nem um direito teria a mulher, que não poderia tocar o homem – nem com o dedo. Os romanos contavam uma história apócrifa de um certo Egnatius. A mulher desse homem tinha sido surpreendida pelo marido no ato e beber certo licor precioso. Isso bastou para que o marido a matasse a pauladas (ROSA, s.d).

No Oriente também havia esse consenso. Na China, por exemplo, a mulher era tida como inferior ao homem, por acreditar-se ser ela inferior aos olhos dum Ser Supremo. Escreveu Confúcio: “O homem é a representação do ciclo e está por cima de todas as coisas; a mulher obedece às ordens do homem e o ajuda na realização dos seus princípios. Desse modo, nada pode resolver por si mesma e está sujeita à regra das três obediências: solteira, deve obedecer aos seus pais e aos seus irmãos maiores; casada, obedecerá ao seu marido; viúva, obedecerá aos filhos”(sic) (ROSA, idem).

Sob vários aspectos, a Idade Média constitui um dos períodos mais enigmáticos da História Ocidental. Vários escritos têm surgido com o fim de retratar e descrever esse período de forte religiosidade. O período conhecido como medieval esteve debaixo do tacão da Igreja como a grande instituição que resistiu às intempéries do desmantelamento do Império Romano. Ela consolida a fé cristã como a religião hegemônica do Ocidente. Para isso, utiliza-se de todas as armas e influências que passam a subjugar todas as mentalidades.

Podemos afirmar que o homem medieval era um ser assustado. Uma criatura amofinada. Crédulo numa realidade construída pela Igreja, como a Grande Mãe de todos os homens. A Igreja é Católica, porque é Universal. Ou seja, é a Igreja de todos os homens. Ela tem o poder de legislar sobre tudo o que dizia respeito à vida. Assim, todas as relações, produções, sistematizações deveriam passar pelo seu crivo. Por sua vez, as ações defendidas por Roma deveriam ser acatadas sem resmungos, oposição ou questionamento.

É a partir dessas prerrogativas de poder temporalmente eficaz, que a Igreja passa a arbitrar sobre a política – a Igreja tirava reis e colocava reis; sobre a religião – a Igreja era única, imaculada, imarcescível; o papa o grande juiz que se assentava na cadeira de Pedro e tinha o poder de mover céus e terra. Sobre as produções artísticas(cultura) – a arte produzida nesta época deveria representar as realidades metafísicas, invisíveis. Tudo aquilo que fosse material e terreno era impuro. Portanto, o corpo, a vida, natureza estavam manchados pelo pecado. A Igreja cria, baseada no pensamento de Platão, um mundo dual. Ou seja, um dualismo que estabelecia a existência de duas realidades distintamente classificadas: de um lado o mundo do clero, perfeito, santo, espiritual. Formado em sua essência pelos bispos e os clérigos em geral. Tal classificação criava uma classe de privilegiados. Daqueles que tratavam das coisas santas, espirituais. Esse tipo de pensamento ainda domina sob vários aspectos a mentalidade dos homens. Os religiosos ainda são vistos como modelos de virtude e excelência. Por outro lado, havia o mundo habitado pelos leigos. O mundo físico, da matéria. Nele estavam os homens comuns. Que realizavam atividades comuns. Que carpiam o campo, criavam animais. Essa fatia passou a ser chamada de leigos. O termo secular ou saeculorum foi cunhado nesta época. Dizia respeito às questões “mundanas”, “profanas”. Em suma, aquilo que estava fora da igreja; afastado do clero.

Em suma, a Igreja Católica e Apostólica Romana validou o pensamento da Antigüidade. Ela como grande instituição que herdou todo o séqüito cultural dos antigos. Muitos costumes se cristalizaram e se tornaram mandamentos. No que dizia respeito à concepção hebraica sobre como teria que se efetuar as relações maritais, a Igreja preservou em muito essa visão. Por exemplo, o bispo Tertuliano afirmava que a mulher era uma espécie de “porta do inferno”. No ano de 585 d. C, o concílio de Mâcon, reunido na cidade de mesmo nome, colocou em dúvida a possibilidade da mulher ter alma à semelhança dos homens(CUNHA, 1995).

Olhando sob este ponto de vista histórico, a Idade Média apenas reproduziu o consenso que havia em torno da figura da mulher. Sempre mal vista, a mulher como é observada hoje: ativa, buscando o seu espaço no mercado de trabalho, competindo de igual para igual com os homens, assumindo altos cargos em tribunais e várias outras corporações, é fruto de uma revolução recente. Podemos chamar de revolução, porque o presente momento para a mulher se configurou nos últimos 50 anos. Com o término da Idade Média, a situação da mulher continuou a mesma. Na Rússia dos czares, por volta de 1790, havia um ditado que dizia: “assim como uma galinha não é um pássaro; a mulher não é um ser humano”. (ROSA, idem).

De certo modo, podemos afirmar que as Cantigas de Amor Cortês que surgiram na Idade Média, cantigas essas feitas em homenagem a uma mulher(uma musa), não significavam em sua essência uma ação respeitosa em relação à mulher. A mulher era o mesmo ser pequeno, atrofiado que a história produziu. Tratava-se de uma enlevo poético possibilitado pela arte. A mulher era propriedade do seu marido. Com ela o marido podia fazer o que quisesse. Dirigia-se a ele com formas de tratamento respeitosas como "meu amo e senhor". Era permitida a agressão física a mulheres quando o marido achasse que ela o havia desobedecido e as histórias de mulheres que sofriam agressões eram contadas nas vilas em tom humorístico. As agressões não podiam causar a morte nem incomodar os vizinhos, entretanto, em caso de adultério flagrante, o marido tinha o direito até mesmo de matar a própria esposa. A lei não poderia intervir em nada.

A mulher das cantigas constituíam um símbolo poético, por assim dizer: afirmado na arte; negado pela realidade. Reduzida e negada pela realidade, a mulher só existia enquanto vinculada ao marido, só a referiam como mulher dele, parte dele. O próprio designativo feminino tem em sua etimologia uma expectação preconceituosa e redutora. Palavra de origem latina, reunia em sua formação as palavras fides e minus, que significa “menos fé”, “menos crença”. O casamento como um contrato não levava em conta sentimentos de afeição da mulher para com o homem e vice e versa. Essa estrutura não privilegiava o casal. Fazia as mulheres como objetos. O amor entre um homem deve ser alimentado pela caridade cristã, sem o desejo carnal. O sexo era visto como pecado, algo sujo, deturpado, resultado inegável dos descaminhos do pecado original.

Assim, podemos afirmar que a Idade Média constituiu-se como um período de morbidez para as relações. Homens e mulheres se mantiveram embaixo da tirania “ideais” da Igreja. Às mulheres restou o descalabro. De certa forma, a Igreja apenas repetiu um consenso que havia em torno das mulheres – as mulheres como objeto, como seres submissos à vontade dos homens. A Idade Média constitui de certa forma, apenas um estágio na condução preconceituosa em torno da mulher. O machismo ainda é um aspecto constituinte na sociedade contemporânea – seja no Ocidente, seja no Oriente.


REFERÊNCIAS:

BÍBLIA. Almeida Revista e Atualizada, Sociedade Bíblica do Brasil: São Paulo, 1994.

ROMERO, Elaine(org.), Corpo, Mulher e Sociedade, Editora Papirus, Campinas, 1995.

ROSA, Ubiratan (org), Enciclopédia do Conhecimento Sexual, Editorial Amadio, São Paulo, s.d.

TENNEY, Merril C.; PACKER J. I., WHITE JR., William, Vida Cotidiana nos tempos bíblicos, Editora Vida, São Paulo, 1988.

sexta-feira, agosto 24, 2007

Pequeno Comentário à Divina Comédia de Dante

ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia, Ed. Nova Cultural, São Paulo, 2003, pp. 430.

Li há algum tempo atrás A Divina Comédia de Dante Alighieri. Dante é um escritor fascinante. A Divina Comédia é, simplesmente, inominável. O original é um poema matematicamente harmônico. A versão que li era em prosa. Mesmo assim, não perdi de forma alguma o encanto pelo poder da ficção elevada. Dante descreve com uma beleza singular fatos atinentes a uma experiência que possivelmente vivenciara. Não se tem certeza se tais fatos são concretos, se foram realidades palpáveis ou se são devaneios contemplativos de sua arte poética. Faz-me lembrar da afirmação do apóstolo Paulo: “Se no espírito ou no corpo, não sei” – quando se refere às experiências que tivera. O fato é que Dante nos deixa entender que se trata de um evento real. A sua excursão pelo Inferno, Purgatório e Paraíso traça um caminho – me parece – de auto-reflexão para o escritor. Os três estágios se enunciam com muita vivacidade, o que deixa a entender que se trata de uma jornada catártica.
A Divina Comédia é uma obra de arte que celebra o gênio da humanidade – assim como o é a Monalisa, A Capela Sixtina, as peças de Bach, Beethoven e Mozart, as pinceladas de Monet, de Rembrandt e Van Gogh; o estilo seco de Graciliano Ramos ou a genialidade de Borges. É importante salientar que Dante possui em seu trabalho as concepções imediatas do seu tempo. Ou seja, é o momento histórico se consagrando como universal. As realidades imediatas se manifestando na obra do escritor. Seguindo esta linha argumentativa, pode se verificar que a Divina Comédia funciona como um mapa ideológico do pensamento do homem da Idade Média. Escrito em 14 anos – de 1.307 a 1.321, ano da morte de Dante – o livro traduz as preocupações da concepção cristã medieval. Em alguns momentos é perceptível a filosofia de Aquino, de Aristóteles e as concepções dogmáticas da Igreja Católica que são defendidas com arte. Grandes poetas do mundo greco-romano são citados. Virgílio, seu condutor pelo Inferno e o Purgatório; Catão, Ovídio entre outros e o pensamento de Cícero.
Tal fato traduz a influência básica do pensamento dos antigos na educação do homem da Idade Média. Ou poderíamos afirmar que a Divina Comédia é um livro de Vanguarda na Idade Medieval, pelo fato de os movimentos e mudanças porque passa a Europa iria fazer ruir a catedral de pensamento construída durante 1000 anos. Iria fazer surgir o Renascimento que fez uma forte e sintomática releitura do legado cultural da Grécia Antiga e de Roma, como sucessora do pensamento da Antigüidade.
A obra de Dante foi consagrada como sendo um mapa fiel daquilo que se convenciona como sendo o destino final dos homens. A narração de A Divina Comédia sobre o Inferno, Purgatório e o Paraíso praticamente se inseriram na mentalidade do mundo Ocidental. Tornaram-se modelos – principalmente o Inferno. A referência para todos aqueles que pensam em mundo espiritual numa perspectiva cristã. Suas teses são defendidas por uma espécie de inconsciente coletivo. Mesmo não se sendo cristão e nem afeito aos temas mais gerais da Bíblia, não há como se ter uma noção derivada do pensamento de Alighieri. Suas idéias sobre castigo eterno, demônios e outros seres infernais permearam a cultura do Ocidente.
Do ponto de uma análise pessoal, julgo que dos três livros o que mais me excitou foi o Inferno. Pelo que me consta foi o livro que Dante mais demorou escrever. Dante utiliza-se de um veio descritivo, que faz vibrar e atentar àquele que se impregna com seus conceitos altos. Descendo por meio de degrau se chega ao fundo do Inferno. Cada degrau descreve os castigos que possuem características eminentemente geográficas. É como se no Inferno houvesse uma organização, um nomos que funciona como uma antítese ao que costumeiramente se convenciona. A sua geografia é cônica, espiralada e em cada estágio anuncia um castigo para o castigado. Há originalidade poética em cada página. No Canto III há estas palavras que de início me prendeu e me fez ler e reler diversas vezes:

“Por mim se vai à cidade das dores; por mim se vai à ininterrupta dor; por mim se vai à gente condenada. Foi Justiça que inspirou o meu Autor; fui feito por Poderes Divinais, Suma sapiência e Supremo Amor. Antes de mim, havia apenas coisas eternas, e eu, eterno, produto. Abandonai toda esperança, ó vós que entrais!”
Estas palavras, em letreiro escuro, vi escritas por cima de uma porta. Eu disse: “Mestre, o sentido delas me é obscuro”. (...) Tomando-me a mão [Virgílio] amigavelmente, animando-me com seus gestos, fez-me entrar no misterioso ambiente. Ali soavam queixas e lamentos; enchiam o ar, em meio à escuridão, e meteram-me medo por uns momentos. Diversas línguas, muita murmuração, gemidos, brados de ira e de dor, urros, sons de mãos chocando-se contra o corpo – tudo isso compunha um turbilhão que girava continuamente, como areia revolvida por tufão. Tal horror espicaçava-me a mente (...) Meus olhos fitaram uma bandeira que, tremulando, bem veloz corria, e a sua agitação não cessava. Uma multidão compacta a seguia: difícil crer que a morte arrebataria um dia tanta gente de entre os vivos. Já havia reconhecido alguns vultos. De repente, olhando, distingui a sombra daquele que fez a grande renúncia, torpemente. Logo compreendi se tratava da facção das almas envilecidas, que os mais detestam e que Deus repele. As desgraçadas – sempre estavam nuas, e as torturavam as aguilhoadas de vespas e tavões. As lágrimas regavam seus rostos, misturadas com sangue; e, caindo-lhes aos pés, serviam de alimento a abjetos vermes (pp. 17 e 18).

O Purgatório seria, para mim, em ordem de importância, o segundo livro mais interessante dos três. O Paraíso seria, em termos de significação, o menos interessante para mim. A sua narrativa abstrata se baseia mais em discursos de Beatriz, a musa de Dante, que substitui Virgílio nas portas do Paraíso, por este ser pagão.
De certa forma, A Divina Comédia é um dos livros mais belos e mais excitantes que já li em toda a minha vida. Ele possui uma matéria imperene. Sofisticação clássica. Uma estrutura grandiloquente, pomposa, típico das obras imortais. A sua leitura foi para mim profundamente profícua.

sexta-feira, agosto 17, 2007

A Sonata ao luar, eu e a humanidade

Impressões

Escutamos sons que se eterizam dentro de nós.
A música possui propriedades alucinógenas.
O estado de espírito se altera com aquilo que ouvimos.
Beethoven com sua sonata ao luar me enfeitiça.
Impregna elementos sensíveis dentro de meu espírito.
Os conceitos terrenos se abstraem de forma mística.
Uma densidade angustiada cresce como o vento
num ocaso de inverno.
Há uma carga de solidariedade silenciosa que canta à espécie humana.
Beethoven possuía um furacão, um ciclone na alma,
Que buscava se transformar em poesia maviosa.
E quando se sentava ao piano saíam peças como estas.
“A Sonata ao Luar”, a Moonlight Sonata, como também é conhecida
É entretecida pelos acordes doces, mergulhados numa disciplina
Poética, que simplesmente se derrama como a chuva que cai
Do céu numa tarde abandonada pela existência.
A solidão que permite sentir todas as dores acumuladas na história.
Esta sonata é mais do que simplesmente uma peça musical,
trata-se de um monumento à História da Humanidade.
Somente um grande homem como Beethoven poderia compô-la.
Pois somente possuindo uma alma como a dele – atribulada e cheia
De vida passional – para se entender os homens e traduzir suas emoções
Com o encanto mágico dos acordes de um piano.
Escuto-a diversas vezes e parece que ela se prende em mim com força
E resistência.
Sinto-me junto e distantes dos homens.
Estou para além das convenções do mundo.
Sou superior por causa dos vapores invisíveis da arte imortal
Que vêem à vida num movimento singelamente eterno.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

sexta-feira, agosto 10, 2007

Pequeno comentário a um texto de Engels - Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem

Tenho aprendido a usar e enxergar o materialismo como uma ferramenta essencial na leitura e compreensão da História. Marx e Engels produziram obras perenes, imortais.Verdadeiros monumentos para compreender como se desenvolvem as relações histórico-sociais. O ensaio inacabado Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem é uma exposição eloqüente sobre o papel trabalho como uma ferramenta criadora do homem. As palavras do filósofo: “... até certo ponto, podemos afirmar que o trabalho criou o próprio homem”.

Não foram os ideais que constituíram os homens ou a consciência como mais tarde trabalharam Marx e Engels em A Ideologia Alemã. Foi o trabalho que possibilitou a organização das sociedades, dos sistemas econômicos, das crenças, da linguagem, da cultura. Não é a consciência que transforma o trabalho, mas é o trabalho que transforma a consciência. Ou seja, foi a ação transformadora do trabalho que modificou a natureza. As várias necessidades forjaram ou imprimiram no homem um direcionamento. O homem não agiu por si só, todavia, agiu impulsionado pelos processos adversos que a natureza lhe apresentava. Não foram as idéias que transformaram o mundo. Foi a natureza que imprimiu no homem um modus de agir, que diferencia o homem de qualquer outro animal. A ação da natureza sobre o homem permitiu uma mudança metabólica no organismo humano. O cérebro do homem mudou substancialmente após esse sinergismo. Até mesmo a forma de lhe dar com o alimento mudou.

Quando houve uma sedentarização do homem por conta dos crescimentos comunais, passou a haver a necessidade de domestificação de animais. Os homens deixaram de ser vegetarianos básicos e passaram a ser herbívoros. Como afirma Engels: “Graças à cooperação da mão, dos órgãos da linguagem e do cérebro, não só em cada indivíduo, mas também na sociedade, os homens foram aprendendo a desenvolver ações cada vez mais complexas, a propor-se e alcançar objetivos cada vez mais elevados. O trabalho mesmo se diversificava e aperfeiçoava de geração em geração, estendendo-se cada vez a novas atividades”.

No caso especifico, Engels afirma que o que levou à transformação do macaco em homem foi justamente as novas condições sócio-históricas. Pelo que se parece, há um tipo de argumentação hipotética advinda da biologia de Darwin que Engels utiliza para exemplificar a existência histórica de uma espécie de primata primevo que teve que utilizar a mão para executar as suas ações – caçar, utilizar instrumentos, etc. Após esta ação, necessariamente, o homem criou a linguagem como um mediador simbólico. Ou seja, com isso verificamos que a tese de Engels rechaça os idealismos religiosos que definem o desenvolvimento do homem aprioristicamente. O homem não surgiu pronto - ex nihilo. A espécie humana não surgiu como um ente acabado. Muito contrariamente, há logicamente no pensamento de Engels, como um bom materialista histórico, a afirmação de que o homem em contato com a natureza vai se transformando, ao mesmo tempo em que a transforma. Esse dialogismo permite uma interação eficaz do homem sobre a natureza.

O crescimento ou alastramento das sociedades definiu um modo de produção baseado na desigualdade. Obrigatoriamente, criaram-se duas classes distintas: a classe dos que possuem a propriedade, porque necessariamente se apossaram dos meios de produção e a classe oprimida, que não possui os meios de produção.

Por Carlos Antônio Maximino de Albuquerque

sexta-feira, agosto 03, 2007

Nietzsche e o seu Anticristo



NIETZSCHE, Friedrich, O Anticristo – maldição do Cristianismo, Clássicos Econômicos Newton, Rio de Janeiro, 1996, pp. 96.

Li o Anticristo de Nietzsche e ainda sinto dentro de mim todo o veneno, acidez e a criticidade mordaz do poeta sensível. Melhor chamá-lo de filósofo-poeta. Durante muito tempo alimentei aversão contra o filósofo alemão. Julgava-o maldito. Recordo-me que a primeira vez que vi uma fotografia dele estampada num livro da Coleção os Pensadores, em uma loja de livros usados, foi um ato antipático. Fui acometido por pensamentos de repulsa. Analisei-o com in-deferência. De minha parte, claro, havia mesquinhez, ignorância e inocência. Olhei-o como um herege. Os seus bigodes espessos me pareceram profanos. Mirei-o como uma figura de outro mundo. Avaliei-o com os olhos da religião. Não deixei de pensar em Nietzsche como alguém que estava condenado aos suplícios infernais por ter desafiado o Deus dos cristãos. A sua frase proverbial (“Deus está morto”) durante muito tempo me aturdiu. Apanhei-a fora de contexto. Entorpeci-me com os gases emanados pela religião. A minha alma estava repleta de irreflexão. Não passava de um espírito louco. A minha lucidez havia se esvaído. Estava vazio para as grandes descobertas que somente podem ser achadas com a cautela e a humildade exigida pelo trabalho lento, mas poderoso da indagação. Segundo Nietzsche, como pude verificar, as intuições mais maravilhosas são tardiamente adquiridas. Há convicções e compreensões que são assentidas com o tempo.
De início me vem a frase poeticamente filosófica de Nietzsche: “Quando não se coloca o peso da vida na própria vida, mas sim no ‘além’, no nada, então se retira da vida toda a sua importância” (p.65). Essa frase tem ecoado dentro de mim como um grito de solidão numa noite escura. Pirilampos como olhos acesos agora brilham à semelhança de sóis numa galáxia tenebrosa, distante. Sou um indivíduo aturdido pelas intempéries intelectuais. Penso de mais. Sinto de mais. Sou um burguês emergente, na tentativa de ascensão, de distinção, mas ruído por um realismo decadente. Que procura se embrenhar, misturar-se com a poesia produzida por alguns homens que compreenderam isso e deram a luz à beleza. Afinal, é somente na tragédia que nos assenhoreamos da reflexão e da arte. Busco o meu espaço entre os outros homens. Procuro ser melhor que os outros – os homens agem por esse instinto. Mas aquilo que buscamos é pequeno, insignificante. Todos os homens são insignificantes. Todos estão condenados a serem de forma desconcertante párias de um mesmo rebanho. Enquanto penso isso, lá fora os homens seguem em cursos transviados, uniformes, zumbificados por aquilo que fizeram deles. O mundo morre de asfixia em seu egoísmo prudente e vil. É como diz o próprio Nietzsche: “O resto é somente a humanidade. – É preciso tornar-se superior à humanidade em poder, em grandeza de alma”. Tais estados mentais balançam o meu interior. Afinal, a vida é “isso aí” como bem afirmou Heidegger.
Penso em Pascal. Esse filósofo tem se inserido, assim como Nietzsche, como uma das mentalidades formadoras de minha maneira de ver, interpretar e me aturdir com o mundo e com os outros homens. Pascal foi um dos pensadores que mais refletiram sobre o homem e a sua condição. A sua frase: “A simples comparação entre nós e o infinito nos acabrunha” gera espanto e silêncio por todo espaço infinito da minha alma. Um lago negro, de águas turvas, possui segredos inacessíveis e invioláveis dentro de mim. Enquanto penso na minha condição e na dos outros homens, alimento-me com a expectativa e com os versos de Nietzsche. Seu pensamento tem gerado uma paixão e uma crítica superiores. É assim que o indivíduo se sente quando lê os textos do filósofo de Rocken. Ele nos aponta um caminho de liberdade, de superação, de autenticidade. É preciso ser esse homem emancipado de Nietzsche. Esse ser “liberto”, “livre” das idéias epiléticas, dos entendimentos curtos, da paralisia lógica. Acerca de si há a menção do filósofo: “nós mesmos, nós, espíritos livres, já somos a ‘transmutação de todos os valores’”.
A curiosidade tem me levado a entender e ler o grande poeta e filósofo alemão como uma das mentes mais brilhantes da História. Alguém que conseguiu com a sua pena livre e ousada gritar de cima dos telhados; vociferar contra os tolos, aqueles que são acorrentados pelas convenções mesquinhas. Protestar contra aqueles que defendem o não natural como natural. Na verdade, o natural foi des-naturalizado e aquilo que não era natural, por ser apenas um desejo de vingança, “do ressentimento e da raiva impotente” (p 69), tornou-se natural.
O filósofo com toda a sua sanidade intelectual no prefácio do seu Anticristo derrama profeticamente uma sentença consciente: “alguns homens nascem póstumos”. Como que a perceber a incompreensão daqueles que sofrem de um tipo de doença que leva à cegueira: a falta de “integridade intelectual”, daqueles que crêem, mas não refletem sobre aquilo que crêem, dos cínicos, dos fracos, dos incapazes de compreender um átimo da realidade. E diz num surto de ousadia incrível: “para me suportar é necessário possuir uma integridade intelectual levada aos limites extremos”. É o sentimento de quem possui convergentemente a alma do poeta que desafia a mediocridade da fé, da crença pueril, da certeza da verdade, nascida da irreflexão. O compromisso com a covardia sujeita os homens à fraqueza. Num dado sentido, a maioria dos valores sob as quais a humanidade se apóia são valores de decadência. O homem forte nasce com a consciência de quem ele é. A tendência do homem que não conhece a si mesmo é o afastamento de si. O homem que se mune “da verdade dos outros” não sabe quem de fato ele é. Vive à sombra da verdade alheia como um morcego que se esconde na treva. Os homens se abandonam aos seus próprios sentimentos. O homem perde poder quando se “compadece”.
Nietzsche vê com desconfiança toda a certeza. A certeza da verdade é mais perigosa que a mentira, pois arrimados dela os homens matam, trucidam e morrem. Os teólogos são os ventiladores que espalham o vento da mentira. “Tudo aquilo que o teólogo julga verdadeiro é necessariamente falso”. O grande filósofo diz que o sangue teológico contaminou a filosofia alemã. O pensamento alemão sofria de uma espécie de hemiplegia, de uma paralisia; o protestantismo é o próprio pecado original que imobilizou a filosofia. Por exemplo, Leibniz e Kant não passavam de moralistas. O homem da Prússia, Kant, manchou a integridade alemã com o seu imperativo categórico. Para Kant, “a virtude deve ser nossa invenção; deve surgir de nossa necessidade pessoal e em nossa defesa”. As máximas do filósofo idealista de Könisberg: “Sê justo, se queres ser respeitado”; ou “Age de tal maneira que o motivo que te levou a agir possa ser convertido em lei universal” é reprovada pelo pai de Zaratustra. Acerca disso diz Nietzsche: “Uma nação se reduz à ruína quando confunde seu dever com o conceito universal de dever”. A crítica do filósofo romântico de Rocken seria que a filosofia de Imanuel Kant, apesar de buscar cindir com as convicções dogmáticas que dominavam a filosofia alemã, na verdade, repetiu os princípios do evangelho. Por exemplo, Jesus disse que “todo o bem que eu quero para mim, deve partir primeiro de mim para o outro”. Ou seja, fazer o bem (o dever), para depois se ter a recompensa. Nada mais nada menos do que a porção mais eloqüente do imperativo categórico delineado por Kant. Nesse sentido, o filósofo de Könisberg não passa de um moralista, um homem de uma religiosidade enrustida, que reproduz a priori os fatos mais imediatos da realidade.
O homem Nietzsche é um apaixonado pelo homem, pelo ser humano. Há uma afirmação bem à semelhança daquelas que Montaigne faz em seus Ensaios: “o homem, relativamente falando, é o mais corrompido e doentio de todos os animais, o mais perigosamente desviado de seus instintos – apesar disso tudo, com certeza, continua a ser o mais interessante!” O homem é o único animal da natureza que se rebaixa à condição de animal – isso feito inconscientemente. Ele consegue criar “mundos” inimagináveis e se sentir criado por aquilo que criou; escravo de sua própria criação, posto que “nem a moral nem a religião têm qualquer ponto de contato com a realidade”, por apenas um elemento simbólico. Nesse sentido, podemos afirmar que a metafísica não tem contato com a realidade por ser apenas um símbolo, uma construção, uma criação, que existe apenas como idéia.
O cristianismo se apoiaria nessa irrealidade. Suas premissas são como uma fumaça, eteridade que se movimenta sem possuir um vínculo com a realidade – “Deus”, “alma”, “eu”, “espírito”, “livre-arbítrio”, todas essas criações ou idéias gerais que dominam a priori o cristianismo são fumaças metafísicas. Tais conceitos agridem os aspectos mais imediatos da natureza. A religião desnaturaliza as causas naturais. O homem é grato por existir, por isso precisa criar um Deus. Por isso para Nietzsche, acreditar em Deu é uma espécie de valorização ou reverência pelo irracional, por aquilo que não se pode entender. A religião dentro dessa contingência é uma gratidão. Para que se expliquem as tragédias da vida é preciso criar uma concepção maniqueísta da realidade. Assim, “a humanidade necessita igualmente de um Deus mau e de um Deus bom”.
Nietzsche acusa o cristianismo de ser um inimigo da verdade. “É cristão todo o ódio contra o intelecto, o orgulho, a coragem, a liberdade, a libertinagem intelectual; o ódio aos sentidos, à alegria dos sentidos...”. Toda expansão da mente é condenada. É possivelmente aqui que o filósofo deixe o seu conceito de dionisíaco e apolíneo.
No capítulo XXIII, ele afirma que há austeridade, honestidade e objetividade no budismo, algo que inexiste no cristianismo. Não há justificativas a fim de explicar, o sofrimento. Para o budismo o que é, é. As suscetibilidades do cristianismo o torna enfermiço. A verdade existe como algo absoluto. É preciso que apenas se creia que é verdadeiro. Quanto mais alta for a exigência, maior será a autoconsciência acerca do merecimento. A força que se apodera do homem derruba-o por completo. O homem de certa forma passa a ser um amante, um reverente por uma paixão que existe apenas dentro de sua percepção. Imbuído por uma construção sobre o amor o homem passa a tolerar os abusos e tiranias da realidade que o cerca. Afinal, “o amor é o estado no qual o homem vê as coisas quase totalmente como não são”(...) Porque de certa forma, “quando um homem está apaixonado sua tolerância atinge o máximo”. As feiúras são transformadas em virtude. A grande questão é apenas inventar uma religião na qual se pudesse amar: através disso o pior que a vida tem a oferecer é superado – a dor e as tragédias da vida sequer são notadas.
Friedrich Nietzsche afirma que o cristianismo é uma conseqüência inevitável do judaísmo. É apenas mais um passo dentro da intimidade lógica dos judeus. Nesse sentido, Nietzsche parece adotar o princípio da dialética hegeliana para ler a História como uma série de eventos que se multiplicam numa lógica constante – tese, antítese e síntese. O cristianismo seria uma síntese das estruturas da religião judaica. Ele afirma contundentemente: “Os judeus são o povo mais notável da História, pois quando foram confrontados com o dilema do ser ou não ser, escolheram, através de uma deliberação excepcionalmente lúcida, o ser a qualquer preço: esse preço envolvia uma radical falsificação de toda a natureza, de toda a naturalidade, de toda a realidade, de todo o mundo interior e também o exterior”. Os judeus perverteram a História. Criaram uma psicologia capaz de contradizer o natural de sua verdadeira significação. “Psicologicamente, os judeus são pessoas dotadas da mais forte vitalidade, tanto que, quando se viram frente a condições onde a vida era impossível, escolheram voluntariamente, e com um profundo talento para a autopreservação, tomar o lado de todos os instintos que produzem a decadência – não por estarem dominados por eles, mas como que adivinhando neles o poder através do qual “o mundo” poderia ser desafiado”. Os judeus constituem uma espécie de gênio decadente e conseguiram se colocar à frente de todo o movimento decadente. São as mais altas expressões dessa realidade – o non plus ultra, ou seja, o não mais além, o inexcedível, aquilo que não se pode ultrapassar.
Os próprios israelitas teriam condicionado a atuação de Deus na História pela sua própria condução histórica. Assim, Javé manifestaria os “humores” imediatos do povo de Israel. A noção de um Deus terrível, poderoso, estaria atrelada aos dias de conquista. Os eventos históricos fizeram com que os filhos de Abraão diminuíssem “o poder de Deus” por um processo de perda de egoísmo. É a consciência, bem como o estado histórico que influência diretamente na noção e crença em Deus.
No que diz respeito a Israel, “toda a tradição e toda a realidade histórica, traduziram o passado de seu povo em termos religiosos, ou seja, converteram-no em um mecanismo imbecil de salvação, através do qual todas as ofensas contra Iavé eram punidas e toda devoção recompensada”. Nesse sentido, a história do povo judeu é a história de uma conduta moral. A moral explica a história e a história explica a moral. Nietzsche diz que algo como “vontade de Deus, a qual determina o que o homem deve ou não fazer; que a dignidade de um povo ou de um indivíduo deve ser medida pelo seu grau de obediência ou desobediência à vontade de Deus; que os destinos de um povo ou de um indivíduo são controlados por essa vontade de Deus, que recompensa ou pune de acordo com a obediência ou desobediência manifestadas”. O pastor, o ministro ou o padre seria uma espécie de parasita que vive à custa de toda a vida sã. O ministro profana e mancha a natureza, pois esse é o preço para que ele possa existir. A moral a que eles defendem deprecia os aspectos naturais da humanidade. O mundo se torna um lugar feio e sem sentido, um lugar perigoso, feio, totalmente pervertido e descaracterizado. Para que o padre continue a existir e tenha legitimidade na sociedade é necessário que hajam pecadores “os pecados são indispensáveis em toda a sociedade organizada sobre fundamentos eclesiásticos; são os únicos instrumentos confiáveis de poder; o padre vive do pecado; tem necessidade de que existam pecadores” (sic). O pecado avilta o homem: é um “envenenamento, difamação, negação da vida, desprezo pela vida, uma auto-violação do ser humano”.
Nietzsche entende que na psicologia dos evangelhos, pecado e culpa são anulados, o mesmo vale para a recompensa. A boa nova é que o Reino de Deus chegou e essa é a realidade que elimina todos os muros entre Deus e os homens. A criação da igreja é uma negação do evangelho. Como o próprio Nietzsche afirma: “um soco no olho do evangelho”. Os aspectos espirituais e simbólicos surgiram somente após a criação da igreja. A difusão do cristianismo o tornou mais baixo, pois absorveu toda a sujidade subterrânea do Império Romano. “Era o destino do cristianismo que sua fé se tornasse tão doentia, baixa e vulgar quanto às necessidades doentias, baixas e vulgares que tinha de administrar”. A palavra cristianismo é um grande mal entendido: só existiu um cristão e esse morreu na cruz. O Evangelho morreu na cruz com o seu inventor. O destino do evangelho foi decidido com a morte, ficou suspenso na cruz. “O cristão, isso que se chama de cristão há dois mil anos, é apenas um psicológico mal-entendido da própria personalidade”.
Paulo transformou a doutrina do evangelho num desevangelho. O apóstolo é um rabino que num piscar de olhos transformou o evangelho num desprezível promessa irrealizável, na vergonhosa doutrina da imortalidade pessoal... Paulo passou a pregar esses aspectos inautênticos como recompensa. O apóstolo por meio da transformação dos conceitos transmutados, criou doutrinas, símbolos para tiranizar as massas, transformá-las em rebanhos. Paulo transforma o evangelho em mentira, pois por sua causa as leis da natureza passam a ser transgredidas. Esse aspecto totalmente novo, portanto mentiroso, “conseguiu convencer exatamente todos os fracassados, os simpatizantes da insurreição, os mal-sucedidos, todo o lixo e a escória da sociedade. Houve a profusão ou disseminação de uma pregação acabava com “a distância entre os homens”. Nesse sentido, o socialismo com a sua premissa de igualdade se assemelha ao cristianismo. Marx era luterano, portanto, cristão na proposição de uma nova sociedade. Friedrich responde a uma pergunta retórica que faz para si mesmo: “Quem odeio mais sobre os membros dessa corja atual? A corja socialista, os apóstolos de Tschandala que com sua mesquinha existência enterram o instinto, o prazer, o sentimento de modéstia do trabalhador, que o tornam invejoso, ensinam-lhe a odiar... A injustiça não reside nunca nos direitos desiguais, reside na reivindicação de direitos ‘iguais’... O que é ruim? Digo-lhes imediatamente: tudo que deriva da fraqueza, da inveja, da raiva. O anarquista e o cristão têm a mesma origem...” O filósofo da filosofia do martelo afirma nesse sentido que o cristão e o anarquista são espíritos decadentes, ambos incapazes de produzir a não ser dissolução, envenenamento, vampirismo, ambos instintivamente cheio de ódio mortal; e acusa o cristianismo de ter sido o responsável por ter feito ruir o Império Romano, destruindo numa noite o tremendo feito dos romanos. Para Nietzsche, os romanos erigiram uma organização suficientemente sólida para manter no poder péssimos imperadores: a acidentalidade de pessoas não tem nada a ver com isso...”. Os cristãos, “esse bando de covarde, efeminado, e melífluo, conseguiu afastar, passo a passo, as almas dessa tremenda obra, essas naturezas virilmente nobres que tinham na causa de Roma sua própria causa, sua própria seriedade, seu próprio orgulho”. Assim, em consonância com Gibbon, que Nietzsche deve ter lido, há a acusação de que o verdadeiro responsável pelo infausto destino de Roma tenha a sua mola propulsora no soerguimento da moral cristã nas entranhas do Império.
Nietzsche chama os cristãos de “gentinha” por se arvorarem na defesa de uma megalomania arrogante: “uma pequena multidão disforme de hipócritas e mentirosos começou a monopolizar os conceitos de ‘Deus’, ‘verdade’, ‘luz’, ‘espírito’, ‘amor’, ‘sabedoria’, ‘vida’, como se fossem sinônimos, para com isso delimitar o ‘mundo’ com a respeito a si; os partidários da nova doutrina, maduros para toda espécie de manicômio, fazem girar os valores em torno de si, como se o cristão fosse o único sentido, o sal, a única e última medida de julgamento para o resto do mundo...” Toda a ciência é proibida. É “conhecimento do mundo”. A ciência iguala os homens a Deus. Acaba-se a necessidade dos deuses e dos sacerdotes. “Moral da história: a ciência é proibida em si, é proibida pelo próprio fato de ser conhecimento. A ciência é o primeiro pecado, a semente de todos os pecados, o pecado original. A moral é apenas essa! ‘Você não deve conhecer(...) O terrível medo de Deus não impediu que o homem fosse inteligente. Como é possível defender-se da ciência? (...) Resposta: fora do paraíso com o homem! A felicidade e o ócio levam aos pensamentos, todos os pensamentos são maus... O homem não deve pensar. E o sacerdote contido Nele inventou a necessidade, a morte, a vida em risco na gravidez, toda forma de miséria, a velhice, a fadiga, e sobretudo a doença, nada além de meios para combater a ciência! A necessidade não permite que o homem pense... E no entanto, que horror! A obra cognitiva empilha-se em direção ao céu, fazendo sombras aos deuses, o que fazer?! O Deus antigo inventa a guerra, divide os povos, faz com que os homens se aniquilem mutuamente (os sacerdotes sempre precisam da guerra...)”. Seguindo esse mesmo raciocínio, o filósofo alega que a idéia de pecado foi criada para infamar a capacidade humana. Nesse sentido, ele é uma “auto-violação do ser humano por excelência, foi inventado para tornar impossíveis a ciência, a cultura, qualquer forma elevada e nobre do homem; o sacerdote reina através da invenção do pecado”.
O cristianismo paradoxalmente é um hospital que cria doentes. Põe montanhas onde não há montanhas; obstáculos aonde não há nenhum. A fé cristã tem necessidade da doença, da mesma forma mais ou menos como os gregos tinham necessidade de saúde. A igreja é uma matriz criadora de enfermos e doentes. A igreja só santificou loucos impostores. O cristianismo é um inimigo do corpo. Fé é irracionalismo. Fé é oposição à essência da verdade, por arrogar já defender uma verdade. Para o cristianismo o que torna doente é bom. A verdade não pertence a uma classe de indivíduos pretensamente privilegiados, como afirmam ser os cristãos. Na concepção nietzscheana, “a verdade não é algo que alguns tenham e outros não”. As grandes mentes não são aquelas que alegam possuir a verdade. Não são aquelas que fogem de uma discussão por já possuir em si todo o sentimento da verdade. “As grandes mentes são céticas”. “Homens de convicção não devem ser levados em conta nas questões fundamentais de valor e desvalor. Convicções são prisões. Não enxergam suficientemente longe, não enxergam por baixo deles: mas para poder participar da discussão sobre valores e desvalores, deve se enxergar cinco convicções por baixo de si, atrás de si...”.Nietzsche faz, assim, a seguinte afirmação demonstrando os seus sentimentos sobre o evangelho:

Preciso acrescentar que, em todo o Novo Testamento, não aparece senão uma única figura merecedora de honra: Pilatos, o governador romano. Levar assuntos judaicos a sério – ele estava muito acima disso. Um judeu a mais ou a menos – que isso importa?... A nobre ironia do romano ante o qual a palavra “verdade” foi cinicamente abusada enriqueceu o Novo Testamento com a única passagem que tem qualquer valor – que é sua crítica e sua destruição: “Que é a verdade?”(p. 71).


“Moral da história: o sacerdote não mente; a questão do verdadeiro, ou do não-verdadeiro nas coisas do discurso do sacerdote não permite a mentira de forma alguma”.
O crente não se pertence. É uma figura clandestina. O crente é em suma uma criatura que não estabelece contato consigo mesmo. Apenas pode ser o meio para um fim; precisa ser consumido; precisa de alguém que o consuma. Seus instintos atribuem suprema honra à moral da despersonalização; tudo o persuade a abraçar essa moral: sua prudência, sua experiência, sua vaidade. Todo tipo de fé é em si mesma a expressão de uma despersonalização, de um alheamento de si...”. Um sistema de auto-afastamento, de auto-esvaziamento. O crente dessa forma não é treinado para responder questões atinentes ao verdadeiro e ao falso: ser honesto neste ponto causaria sua própria ruína. Para Nietzsche “a espécie mais comum de mentira é aquela com a qual nos enganamos a nós mesmos: mentir aos outros é algo relativamente raro”.
Nietzsche termina o seu discurso filosoficamente eloqüente afirmando que a Igreja é um parasita, que com seus ideais anêmicos de santidade, suga até a última gota de sangue, de amor, de esperança... contra a própria vida... E sentencia furiosamente: “Essa eterna acusação ao cristianismo, quero gravar em todas as paredes onde houver paredes; tenho letras que fazem até os cegos enxergarem... Chamo o cristianismo de uma grande maldição, única grande perversão interna, único grande instinto de ódio, para o qual nenhum meio é bastante venenoso, secreto subterrâneo, baixo; eu o chamo de mancha de vergonha imortal da humanidade”. Essas suas palavras atestam toda a ojeriza que ele sentia pelo que fizeram ao cristianismo.
Assim, na concepção de Nietzsche a moral cristã todas as instituições ocidentais. O socialismo, o anarquismo, o feminismo e maioria dos movimentos leigos são baseados na compaixão, ressentimento e indignação. São projetivos e nunca realidades que se assentam no presente. Esperam por um futuro que nunca se realizará. No socialismo, embora se conteste a idéia de Deus por causa dos princípios materialistas de sua epistemologia, os intelectuais tomam o lugar do padre. A utopia projetiva espera por “novos céus e uma nova terra”. O pensamento nitzscheneano recusa em sua latência o conceito de ideologia.
A postura mais sã do pensador deve ser o ceticismo. Ele permite a desconstrução daquilo que foi erguido pela tradição. Com ele permite-se o exercício da suspeita, supõe o desmarcaramento das fraudes, impede os movimentos retrógrados e obscurantistas, mas não pode cristalizar-se numa regra, numa lei, num princípio. A verdadeira liberdade do homem deve estar ausente de condicionamentos metafísicos.
Devo afirmar que O Anticristo de Nietzsche é um tratado que vocifera contra a mediocridade das convenções fingidas. O nome do livro não significa explicitamente tentando negar a figura de Cristo; ele tenta eliminar um tipo de cristianismo que construíram em nome de Cristo. Ele escreve, sim, contra um tipo de cristianismo que foi inventado para parasitar a humanidade dos homens. É justamente contra esse modelo falido e contra os homens que se aquietam e aceitam passivamente uma moral degradante e que diminui as potencialidades tão próprias do homem que ele grita. A coragem e o pensamento dialético são as verdadeiras armas do homem que pensa na transmutação de todos os valores.

quarta-feira, agosto 01, 2007

Convite à solidão do mundo


Convite à solidão do mundo

A luz surgiu pela manhã.
Veio louçã.
Irradiou os cimos das montanhas afastadas.
Raios verticais se inclinavam até beijar os montes.
Embevecia-me com o silêncio magestático do dia nascente.
Um parto natural, ali, a realizar-se sob os meus olhos.
Encantado pela manhã.
Sorridente pela manhã.
O êxtase se dá em silêncio, solitário.
Os convites que temos são para a turba.
Não estou acostumado às aglomerações.
Quem vive em bando é bicho por uma questão meramente
De sobrevivência.
O isolamento de um animal selvático é perigoso.
Não sou bicho, sou homem.
Gosto do silêncio das montanhas imaginárias.
Sou livre para pensar os meus mundos.
Vejo árvores mágicas que se erguem até o céu.
E daí, se elas existem somente para mim!?
Os aglomerados são barulhentos, afetados.
Por que precisam tingir o mundo dessa forma?
Prefiro as minhas cores, são alegres, solitárias.
Caminho pela rua e me julgam.
Julgo também.
Às vezes me comisero.
Apegamo-nos de maneira enigmática ao impensado.
Somos reprodutores de idéias desajustadas.
Cantarolamos, mas não sabemos porque agimos assim.
Pressinto, nutro desconfianças contra o mundo
E seus agastamentos.
Chamam-me para o centro.
Prefiro subir a montanha e estar além das visões
Medíocres da luxúria que atravessa o vale.

Por Carlos Antônio M. Albuquerque