terça-feira, maio 26, 2020

O editorial do Estadão e a canalhice de uma mídia caolha


O editorial do Estadão de hoje é de provocar repulsa. Ele procura criar um paralelo, usa o termo "siameses" para igualar Lula a Bolsonaro. É o cúmulo da canalhice. Lula é um dos estadistas mais respeitados do mundo. Ele não é perfeito. É um homem passível de erros. Mas, impressiona o ódio das elites a tudo o que Lula representa para o país. Lula é o maior líder popular da nossa história.

O Estadão não faz uma "mea culpa". O seu jornalismo parcial e mistificador, criador de discursos que criminalizam a política, ajudaram a eleger o beócio estúpido que ora ocupa o cargo de presidente da República. O texto escancara a visão estreita e mesquinha das elites que mandam no país. É o real sintoma da "práxis" que deforma a realidade, atuando maquiavelicamente contra a possibilidade de um governo que tenha uma preocupação social. Nos mais de 13 anos de governo do PT, o oligopólio midiático - do qual o Estadão faz parte - não foi tratado às turras como acontece agora, durante o governo do esquizoide miliciano que se intitula presidente. Foram responsáveis, com alguns sabujos de redação, pela construção de uma narrativa que envenenou parte da sociedade, fazendo com que os monstros que viviam suas taras no mundo privado, viessem à luz e se sentissem legitimadas pelo traste eleito em 2018 e que leva o país para o abismo.
Segue o texto:

Nascidos um para o outro

Tanto o presidente Jair Bolsonaro como o chefão petista Lula da Silva se associam na mais absoluta falta de escrúpulos, em níveis que fariam até Maquiavel corar

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo

26 de maio de 2020 | 03h00


Não há dúvidas. Jair Bolsonaro e Lula da Silva nasceram um para o outro.

Tanto o presidente da República como o chefão petista se associam na mais absoluta falta de escrúpulos, em níveis que fariam até Maquiavel corar. Pois o diplomata florentino que viveu entre os séculos 15 e 16, malgrado tenha descartado a retidão moral absoluta como fator essencial para o bom governo, formulou uma ideia de ética específica para a política, segundo a qual, entre outras regras, o governante jamais deve colocar seus interesses pessoais acima dos interesses do Estado nem agir como se seu poder fosse ilimitado: “O príncipe que pode fazer o que quiser é um louco”, escreveu em sua obra mais conhecida, O Príncipe (1532).

Jair Bolsonaro e Lula da Silva unem-se como siameses. Enxergam o mundo e seu papel nele da mesmíssima perspectiva. Tudo o que fazem diz respeito exclusivamente a seus projetos de poder, nos quais o Estado e o povo deixam de ser o fim último da atividade política e passam a ser meros veículos de suas aspirações totalitárias.

Ambos, Bolsonaro e Lula, só se importam com o sofrimento e a ansiedade da população na exata medida de seus objetivos eleitorais. O petista, por exemplo, declarou recentemente que “ainda bem que a natureza criou esse monstro chamado coronavírus para que as pessoas percebam que apenas o Estado é capaz de dar a solução, somente o Estado pode resolver isso”.

Tão certo de sua inimputabilidade, Lula da Silva nem se preocupou em ao menos aparentar retidão moral, como recomendava Maquiavel aos príncipes de seu tempo, entregando-se à mais vil exploração política do sofrimento causado pela pandemia de covid-19. Lula da Silva é, assim, o anti-Maquiavel: enquanto o florentino elogiou seus conterrâneos por preferirem salvar sua cidade em vez de salvar suas almas, Lula saúda a morte de seus compatriotas como uma espécie de sacrifício religioso em oferenda à estatolatria lulopetista.

Já Bolsonaro, bem a seu estilo, continua a menosprezar os milhares de brasileiros mortos na pandemia, agora com requintes de crueldade. Depois do infame “e daí?”, expressão que usou ao reagir à informação sobre a escalada do número de mortos no Brasil, o presidente da República não viu nenhum problema em fazer piada com a desgraça do país que ele foi eleito para governar. “Quem é de direita toma cloroquina, quem é de esquerda toma Tubaína”, brincou Bolsonaro.

Nem se deve perder tempo procurando graça onde, definitivamente, não há. Diante das dramáticas circunstâncias, só riu da blague bolsonarista quem não nutre nenhuma empatia ou respeito pelo sofrimento dos outros. Para o presidente da República, só os direitistas são dignos de salvação – por meio da cloroquina, que Bolsonaro, baseado em estudos fajutos, quer que os brasileiros tomem para que o País supere rapidamente a pandemia e “volte ao normal”. Já os “esquerdistas” – isto é, todos os que não são bolsonaristas –, que bebam refrigerante.

Bolsonaro e Lula são o resultado mais vistoso da degradação violenta da atividade política, aquela que, na concepção de Maquiavel, deveria almejar a todo custo o bem coletivo. Cada um à sua maneira, um mais truculento, o outro mais dissimulado, o presidente e o petista se consideram fora do alcance das considerações éticas que deveriam moderar o poder e que estão no coração das sociedades democráticas.

Lula trabalha desde sempre para cindir o País – e sua recente celebração do coronavírus pode ser vista como uma espécie de corolário macabro da concepção doentia segundo a qual os brasileiros recalcitrantes, que ainda não aceitam o projeto de Estado autoritário idealizado pelo lulopetismo, devem ser castigados pela natureza para que aprendam de uma vez por todas que Lula sempre tem razão. Bolsonaro faz exatamente o mesmo, e ainda enxovalha publicamente quem se recusa a aceitá-lo como salvador.

O bolsonarismo é um monstrengo antidemocrático que só ganhou vida e ribalta por obra e graça do lulopetismo. A uni-los, a sede de poder absoluto. Mas, como já ensinou Maquiavel, não há poder que dure para sempre.

domingo, maio 24, 2020

"A Queda! As últimas horas de Hitler" e o que nos atinge

Terminei de assistir ao filme "A Queda! As últimas horas de Hitler" (2004). E, quando abro o Facebook, o jornal Metrópoles traz essas patéticas fotos. As cenas do filme ainda estão na minha cabeça. Tento criar um paralelo com aquilo que vivemos. "A Queda" é um filme angustiante; repleto de uma psicologia da morte, do genocídio, da loucura. É doloroso assistir a Magda, esposa de Goebbels, matar as seis filhas envenenadas. Diz ela em outra cena, quando a questionam sobre a possibilidade de deixar as filhas viverem, que 'se o ideal do nacional-socialismo morresse, não haveria futuro'. Ou seja, não haveria mundo possível para as filhas sem o nazismo.

O excelente filme traz o saudoso Bruno Ganz no papel de Hitler. O ditador diz em uma das torturantes cenas do filme algo que me faz pensar sobre a singular demência que habita a cabeça de um tirano. Nota-se o quanto sua ideologia é deletéria: "A vida não perdoa a fraqueza. Esta suposta humanidade não passa de sandices dos padres. A compaixão é um pecado original. A compaixão pelos fracos é traição à natureza".

Fisicamente amofinado, com tremores incessantes nas mãos, com ideias de grandeza que beiravam à ficção, o quadro mental do ditador era deprimente nos últimas semanas antes do suicídio. Mostra-se a lealdade dos seus asseclas. A veneração religiosa à sua pessoa. Ele era tido como um deus. No entendimento dos seus seguidores, nunca falhava. Era o líder que teria uma solução final que reverteria o destino da guerra a favor da Alemanha.

Instado a poupar o povo, ele diz de forma seca, dura, peremptória: "Se o meu próprio povo falhou neste teste, não derramarei uma lágrima por ele. Eles não merecem mais nada. É o destino deles. Eles são os únicos culpados".

Vendo essas pessoas, em pleno domingo, em tempos de pandemia, deixarem as suas casas para apoiarem alguém que já deixou transparecer quais são as suas intenções para o país, deixa-me inquieto com o tipo de psicologia que existe em torno desses movimentos extremos. Estou lendo "O carisma de Hitler", do Laurence Rees; e "Estudos sobre a personalidade autoritária", do Adorno, para tentar entender esse fenômeno psicológico que acomete parte do conjunto da sociedade na direção de certas tendências totalitárias.

Como disse alguém, "Bolsonaro é um Hitler com déficit cognitivo". Sim! Ele já deixou isso muito claro nos 30 anos de vida pública. Quem ainda tinha dúvidas sobre esse fato e tenha usado o bom senso e a razão, as portas da percepção foram abertas com a revelação daquele vídeo grotesco, um simulacro de todo mundo em pânico com uma deprimente pornochanchada lado B.

Dizer que 'seu objetivo era armar o povo', cria conexões com a fala de um tirano, de alguém que deseja fazer um "teste", um experimento social a favor da morte, da guerra civil; de insurgência contra a ordem social. Seu objetivo é criar milícias para se fortalecer. Em sua cabeça, devem existir as mais macabras intenções sobre os seus opositores. Seu mundinho de mediocridade, obscurantismo e necessidade de bajulação não tolera a existência de forças antagônicas. O extremismo é a sua linguagem; o desejo de morte, a sua psicologia.

No final dos anos 90, ele disse que o país só teria jeito quando uns 30 mil fossem mortos; e, caso fosse eleito, daria "um golpe" no outro dia. Mais de 20 mil já morreram em decorrência da COVID-19, mas ele já deixou claro que essa não é a sua guerra. Seu desejo é outro.  Ao afirmar que tem objetivo armar a população para criar hostes, milícias, à semelhança da SS do partido nazista, nota-se que seu plano ainda permanece vivo.

O governo Bolsonaro é um teste para o país: (1) ou sairemos fortalecidos e aprenderemos como sociedade com esses eventos; (2) ou chegaremos ao fundo do poço da indigência e do caos. Pelo que tem acontecido até agora, com as instituições cooperando para o acontecimento da segunda opção, a primeira opção é apenas um devaneio distante, que tremula como uma miragem no deserto do real. 
 
 

quarta-feira, maio 13, 2020

139 anos do nascimento de Lima Barreto



Há 139 anos, nascia mestre Lima Barreto, alguém que pagou um preço alto pela sua origem e pela sua cor. Lima foi um intelectual inquieto, revolucionário; alguém que denunciou a face mesquinha da sociedade brasileira: preconceituosa, verticalizada, machista, racista, moralista. Sua obra continua mais atual do que nunca. Lima é um clássico. Ler Lima continua um exercício necessário para se compreender o Brasil.

Livros como "Recordações do Escrivão Isaías Caminha", "Clara dos Anjos", "O triste fim de Policarpo Quaresma" ou "Os Bruzundangas", coloca-nos em contato com uma crítica refinada, repleta de ironias. Lima teve um fim triste. A história parece ter um humor. É, no mínimo histriônico, que ele tenha nascido num dia 13 de maio. Nesta data, mais tarde, seria declarada pelo violento e injusto Estado brasileiro, a abolição da escravidão.

Tendo vivido tão próximo da data, via e sentia na pele as consequências do evento. Se em pleno século XXI os negros continuam vítimas de uma sociedade violenta e desigual, imagine isso há cem anos atrás? Ler Lima é realizar essa imersão. Entender-nos.

Já fiz comentários em outros momentos sobre o escritor carioca:

https://carlososer.blogspot.com/2012/12/lima-barreto-e-sua-critica-ao-pais-dos.html

https://carlososer.blogspot.com/2015/06/a-obra-de-lima-barreto-ainda-fala-clara.html

https://carlososer.blogspot.com/2016/10/recordacoes-do-escrivao-isaias-caminha.html

https://carlososer.blogspot.com/2016/11/os-bruzundangas-de-lima-barreto.html


 

segunda-feira, maio 11, 2020

"Amor à tarde", de Eric Rohmer - algumas considerações

Vi há uma semana Amor à tarde (1972), de Eric Rohmer. É o último daquilo que ficou conhecido como os seis contos morais. São obras dirigidas por Rohmer, que traziam consigo densos e complexos problemas morais e éticos.
 
Trata-se de uma produção sofisticada, de diálogos e monólogos elegantes; da presença de cafés que servem para imprimir aquela atmosfera existencialista francesa tão típica. Na verdade, Amor à tarde é um filme simples do ponto de vista da fotografia. É a história de um burocrata chamado Fréderic, casado com Hélene. Ambos se encontram em momentos escassos. Estão casados há pouco mais de três anos. Possuem filhos. Hélene trabalha durante o dia como professora. À noite, gasta o tempo entre as atividades domésticas e a correção dos trabalhos escolares. 

Fréderic é um burguês típico. Possui uma vida sólida, pouca dada a eventos extraordinários. Sai de casa. Vai para o escritório. Recebe mensagens das secretárias. Conversa com os sócios. Sai para almoçar em certos horários. Mas, é justamente nesse ponto que começam a surgir os monólogos da personagem. O devotado Fréderic seria capaz de trair Hélene? Ele olha as mulheres com as quais cruza pela rua ou encontra no café. Observa-as. Imagina situações insólitas. Deseja todas elas. Mas, no seu entendimento, Hélene consegue reunir as qualidades de todas as mulheres.
 
Chloé e Fréderic 
 
Até que uma amiga antiga, certo dia, ressurge em sua vida. Seu nome é Chloé. Sua vida de liberdade é algo que intriga Fréderic. Ela mora em um apartamento com um parceiro eventual. É livre em demasia. Aos poucos, o personagem se encontra enredado pelo seu jeito leve, solto, desimpedido. E neste ponto encontramos um dos aspectos mais salutares desta obra de Rohmer: ao contrário de outros filmes que tratam de adultério, o diretor não entrega nada de graça. Os eventos não se materializam com tanta rapidez e empacotamento. O que chama a atenção é elemento existencial, das intenções, das insinuações. O adultério não é apenas uma satisfação física. Ele é a consumação de uma violação moral.
 
Pé ante pé, observando Chloé e Fréderic,  somos conduzidos à compreensão de que a consumação do ato sexual é algo iminente. Os dois parecem aceitar o relacionamento. Chloé parece flertar com o exotismo de Fréderic. Ele, na compreensão dela, está preso moralmente a convenções comezinhas. 

Ele, por sua vez, sente-se bem com isso. Parece aceitar o jogo do homem casado que comete uma traição contra a sua companheira. Não quero antecipar nada (caso alguém tenha interesse em ver o filme ou tenha chegado aqui procurando informações sobre ele), mas os momentos finais deixam o espectador embasbacado. A pergunta que fica é: o que você faria caso estivesse no lugar de Fréderic?


domingo, maio 03, 2020

"Feliz ano novo" e algumas impressões sobre Rubem Fonseca

Nunca havia lido Rubem Fonseca. As informações que me chegavam  sobre o escritor eram remotas, repletas de hiatos; ralas em excesso. Sabia que era um grande contista. Escritor de romances consagrados como Agosto (que comprei por volta de 2005 e nunca li). Tinha o conhecimento ainda de que era um escritor com reconhecimento internacional. Conhecido em países da América Latina, Estados Unidos e muitos países europeus. Por ser um escritor da chamada moderna literatura brasileira, havia suspeições sobre o seu estilo.

Senti-me na obrigação de lê-lo, após a sua morte mês passado, já nonagenário. Li artigos sobre ele na Folha de São Paulo, no El Pais, em O Globo, em blogs amigos. Fui à cata de sua produção. Impressionei-me com a quantidade de material escrito. Nos jornais, havia sinalizações de mérito. Ovações àquilo que o escritor produziu. Reconhecimento das suas qualidades. Nos blogs, variações. Críticas. Falas desconfiadas e retraídas. Fonseca era grande, afirmavam alguns, mas nem tanto. Para estes, a biografia do escritor estava manchada pelo apoio ao regime ditatorial instalado aqui no Brasil em 1964. 

Escritores são seres humanos e, potencialmente, capazes de errar. A história nos prova isso. Há casos de nomes importantes que ficaram ao lado de regimes ditatoriais obscurantistas. É o caso de Céline, de Rachel de Queiroz ou de Nelson Rodrigues, que apoiou o Golpe até que este chegou à sua casa. São exemplos ligeiros que me vêm à memória. 

Não estou proibido de visitar a obra de determinado escritor pelo fato de ele ser simpático a determinado movimento. Proceder dessa forma indica liberdade intelectual e maturidade eletiva. 

Após essa pequena digressão, procurei imediatamente uma obra do escritor para ler. Comprei Feliz ano novo e comecei a leitura no Kindle. Li o primeiro conto - que leva o mesmo título do livro - e, de início, já fui golpeado pelo estilo fonsequeano. Trata-se de uma literatura bestial, não no sentido diabólico. Fonseca é um estudioso da alma humana. Sua obra é crua. Sem adereços. Não há penduricalhos. Diz somente aquilo que precisa ser dito para encontrar o efeito desejado. 

Em Feliz ano novo encontramos um cadinho da obra do escritor. Nota-se o quanto o escritor encontrou a fórmula exata. O controle do gênero conto. Sua linguagem despojada preocupa-se em contar o que existe na dimensão misteriosa e imensurável do ser humano. Fonseca narra o insólito. O extremo. O pai de família - insuspeito. Bom burguês. Pega o carro. Vai para a rua. Atropela um transeunte. Compraz-se com isso. Volta para casa. Diz que vai dormir. Despede-se da mulher num cálculo inocente. Ou os assaltantes que provocam uma carnificina em uma festa; que ficam indignados quando percebem o quanto o dono rico da casa demonstrava insensibilidade, desprezando bens materiais, deixando a entender que tinha tantos bens, que perder alguns não faria falta. 

A crítica descuidada que afirma existir uma certa previsibilidade na literatura do escritor, pois esta sempre acaba em violência é rasa. Afirmar isso é lê-lo de forma apressada. O grande crítico literário Alfredo Bosi, uma autoridade inquestionável em literatura, denominou o seu estilo de "brutalista". Trata-se de uma denominação que é exata. Tal denominação aponta para o fato de que a violência é um verniz para denunciar a vida, o estilo burguês, na urbe da sociedade capitalista. Fonseca é escritor que tem a sua literatura radicada na cidade. 

A cidade é o espaço da violência, do medo, do estupro, da desigualdade, da ansiedade, dos dramas psicológicos, do individualismo lancinante; dos gestos imprevisíveis. Há um catastrofismo inerente em seus textos e isso não deixa estar presente Feliz ano novo

P.S. A partir da leitura do livro de Fonseca me bateu uma paixão absurda pelo conto. E o Brasil é um país privilegiado nesse sentido. Há bons escritores do gênero por aqui - Otto Lara Resende, Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan, Murilo Rubião, Clarice Lispector, Osman Lins, Domingos Pellegrini, Monteiro Lobato, Machado de Assis, Lima Barreto, Guimarães Rosa, apenas para citar alguns. Leiamos os bons!

sábado, maio 02, 2020

"Cavalo de Turim", de Béla Tarr - algumas impressões

 
Assisti ao filme Cavalo de Turim, do húngaro Béla Tarr, patrício do grande compositor Béla Bartók,. Era um projeto antigo. Passei mais de uma semana vendo nacos do filme ( dez, quinze, vinte minutos). Foi nesse ritmo lento que consegui vencer as mais de duas horas e meia de uma experiência inigualável, que é realizar a imersão nessa obra magnífica. É o primeiro filme que vejo de Tarr. O diretor austríaco é considerado um dos maiores da atualidade. Já consegui Satantango, considerada a sua melhor obra, de 1994. Cavalo de Turim é do ano de 2011. 

A obra de Tarr inicia com um plano escuro e uma voz igualmente soturna, que narra:

"Em Turim, em 03 de Janeiro de 1889, Friedrich Nietzsche saiu pela porta do número 6 da Via Carlo Alberto, para caminhar, ou talvez para ir ao correio pegar sua correspondência. Não muito longe, aliás, bastante longe dele, um cocheiro estava tendo problemas com seu teimoso cavalo. Apesar de todos os seus esforços, ele se recusava a mover-se, e portanto o cocheiro  - Giuseppe? Carlo? Ettore?  - perdeu a paciência e chicoteou-o. Nietzsche surge do meio da multidão e coloca um fim na brutal atitude do cocheiro, que agora espumava de raiva. O grande e bigodudo Nietzsche, de repente saltou sobre a carroça e jogou seus braços em torno do pescoço do cavalo, soluçando. Seu vizinho o levou para casa, onde ele ficou calmo e silencioso por dois dias no sofá até que murmurou as obrigatórias últimas palavras: "Mãe, eu sou um tolo" e viveu mais dez anos, calmo e louco, aos cuidados de sua mãe e irmãs. Sobre o cavalo... não sabemos nada".


De repente, o espectador é lançado numa estrada poeirenta. A imagem lenta segue por quase dois minutos. O cavalo caminha lentamente, puxando a carroça onde se encontra aboletado o seu condutor. Somos conduzidos a uma habitação rústica em meio a uma planície desolada. O vento é uma personagem constante. Sopra de forma inclemente. As árvores são esparsas e nuas. Os galhos finos dançam com as lufadas de vento. Escuta-se o assobio fino do vento. As folhas secas que dançam freneticamente no ar. A música poderosa  Mihály Vig, também presente em outras obras do diretor, imprime uma solenidade grave. O órgão impõe um aspecto fúnebre, confundindo-se com as belas, atordoantes, imagens do filme. 

Nesse casebre conjugado com uma estrebaria, em que fica o cavalo, pai e filha residem. E, logo em seguida, um encadeamento circular de eventos acontecem - acordar, colocar a roupa, tirar água do poço, dar ração ao cavalo, ocupar-se com as tarefas miúdas da casa, comer batata cozida - o único alimento disponível nessa escassez cinzenta. 

Ou seja, o filme de Tarr é um retrato duro da existência. A bela fotografia em preto em branco possui uma força filosoficamente aterradora. A existência seria esse cansaço. A repetição. A sucessão monótona desse movimento que sempre leva ao mesmo lugar. Dentro de casa, há momentos em que as personagens olham por uma janela. Nesses instantes, o barulho rascante do vento cessa. Enxerga-se, no silêncio momentâneo, o voo incontrolável das folhas secas sendo conduzidas pelo vento que não cessa. O vento duro e inclemente representaria a contingência que é viver. Mas, também pode representar os instantes negativos, a desconcertante e inexorável cadeia de sucessões para a qual não se tem controle. Enquanto vivemos, somos arrastados em meio à tempestade. E poucos são os instantes de calmaria. 

Cavalo de Turim é uma obra cuja beleza transcendente não permite que o espectador fique tranquilo. Ele desestrutura. Faz-nos emudecer. Respirar fundo. E pensar sobre o que é viver; o que é existir. A existência humana estaria cercada desses e-ventos cansativos. Desse ramerrão diário. De um roteiro repetitivo, extenuante, para qual não se pode escapar. Em determinado momento, aturdidos, cansados, pois o poço de onde tiravam água havia secado, as personagens tentam ir embora. Todavia, são obrigados a regressarem, carregando os mesmos fardos; são forçados a experimentarem a mesma condição - acordar, alimentar o cavalo, cuidar das atividades pequenas, comer batatas. 

O filme exige paciência para ser visto, pois o que conta não são os diálogos. Estes ficam num segundo plano. O diretor deseja tornar a experiência do espectador embriagante. Estupefaciente. O mais importante é o movimento da vida e os seres humanos dentro dessa contingência. 

Obra poderosa e obrigatória. 

Está disponível aqui