sábado, maio 02, 2020

"Cavalo de Turim", de Béla Tarr - algumas impressões

 
Assisti ao filme Cavalo de Turim, do húngaro Béla Tarr, patrício do grande compositor Béla Bartók,. Era um projeto antigo. Passei mais de uma semana vendo nacos do filme ( dez, quinze, vinte minutos). Foi nesse ritmo lento que consegui vencer as mais de duas horas e meia de uma experiência inigualável, que é realizar a imersão nessa obra magnífica. É o primeiro filme que vejo de Tarr. O diretor austríaco é considerado um dos maiores da atualidade. Já consegui Satantango, considerada a sua melhor obra, de 1994. Cavalo de Turim é do ano de 2011. 

A obra de Tarr inicia com um plano escuro e uma voz igualmente soturna, que narra:

"Em Turim, em 03 de Janeiro de 1889, Friedrich Nietzsche saiu pela porta do número 6 da Via Carlo Alberto, para caminhar, ou talvez para ir ao correio pegar sua correspondência. Não muito longe, aliás, bastante longe dele, um cocheiro estava tendo problemas com seu teimoso cavalo. Apesar de todos os seus esforços, ele se recusava a mover-se, e portanto o cocheiro  - Giuseppe? Carlo? Ettore?  - perdeu a paciência e chicoteou-o. Nietzsche surge do meio da multidão e coloca um fim na brutal atitude do cocheiro, que agora espumava de raiva. O grande e bigodudo Nietzsche, de repente saltou sobre a carroça e jogou seus braços em torno do pescoço do cavalo, soluçando. Seu vizinho o levou para casa, onde ele ficou calmo e silencioso por dois dias no sofá até que murmurou as obrigatórias últimas palavras: "Mãe, eu sou um tolo" e viveu mais dez anos, calmo e louco, aos cuidados de sua mãe e irmãs. Sobre o cavalo... não sabemos nada".


De repente, o espectador é lançado numa estrada poeirenta. A imagem lenta segue por quase dois minutos. O cavalo caminha lentamente, puxando a carroça onde se encontra aboletado o seu condutor. Somos conduzidos a uma habitação rústica em meio a uma planície desolada. O vento é uma personagem constante. Sopra de forma inclemente. As árvores são esparsas e nuas. Os galhos finos dançam com as lufadas de vento. Escuta-se o assobio fino do vento. As folhas secas que dançam freneticamente no ar. A música poderosa  Mihály Vig, também presente em outras obras do diretor, imprime uma solenidade grave. O órgão impõe um aspecto fúnebre, confundindo-se com as belas, atordoantes, imagens do filme. 

Nesse casebre conjugado com uma estrebaria, em que fica o cavalo, pai e filha residem. E, logo em seguida, um encadeamento circular de eventos acontecem - acordar, colocar a roupa, tirar água do poço, dar ração ao cavalo, ocupar-se com as tarefas miúdas da casa, comer batata cozida - o único alimento disponível nessa escassez cinzenta. 

Ou seja, o filme de Tarr é um retrato duro da existência. A bela fotografia em preto em branco possui uma força filosoficamente aterradora. A existência seria esse cansaço. A repetição. A sucessão monótona desse movimento que sempre leva ao mesmo lugar. Dentro de casa, há momentos em que as personagens olham por uma janela. Nesses instantes, o barulho rascante do vento cessa. Enxerga-se, no silêncio momentâneo, o voo incontrolável das folhas secas sendo conduzidas pelo vento que não cessa. O vento duro e inclemente representaria a contingência que é viver. Mas, também pode representar os instantes negativos, a desconcertante e inexorável cadeia de sucessões para a qual não se tem controle. Enquanto vivemos, somos arrastados em meio à tempestade. E poucos são os instantes de calmaria. 

Cavalo de Turim é uma obra cuja beleza transcendente não permite que o espectador fique tranquilo. Ele desestrutura. Faz-nos emudecer. Respirar fundo. E pensar sobre o que é viver; o que é existir. A existência humana estaria cercada desses e-ventos cansativos. Desse ramerrão diário. De um roteiro repetitivo, extenuante, para qual não se pode escapar. Em determinado momento, aturdidos, cansados, pois o poço de onde tiravam água havia secado, as personagens tentam ir embora. Todavia, são obrigados a regressarem, carregando os mesmos fardos; são forçados a experimentarem a mesma condição - acordar, alimentar o cavalo, cuidar das atividades pequenas, comer batatas. 

O filme exige paciência para ser visto, pois o que conta não são os diálogos. Estes ficam num segundo plano. O diretor deseja tornar a experiência do espectador embriagante. Estupefaciente. O mais importante é o movimento da vida e os seres humanos dentro dessa contingência. 

Obra poderosa e obrigatória. 

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