domingo, maio 03, 2020

"Feliz ano novo" e algumas impressões sobre Rubem Fonseca

Nunca havia lido Rubem Fonseca. As informações que me chegavam  sobre o escritor eram remotas, repletas de hiatos; ralas em excesso. Sabia que era um grande contista. Escritor de romances consagrados como Agosto (que comprei por volta de 2005 e nunca li). Tinha o conhecimento ainda de que era um escritor com reconhecimento internacional. Conhecido em países da América Latina, Estados Unidos e muitos países europeus. Por ser um escritor da chamada moderna literatura brasileira, havia suspeições sobre o seu estilo.

Senti-me na obrigação de lê-lo, após a sua morte mês passado, já nonagenário. Li artigos sobre ele na Folha de São Paulo, no El Pais, em O Globo, em blogs amigos. Fui à cata de sua produção. Impressionei-me com a quantidade de material escrito. Nos jornais, havia sinalizações de mérito. Ovações àquilo que o escritor produziu. Reconhecimento das suas qualidades. Nos blogs, variações. Críticas. Falas desconfiadas e retraídas. Fonseca era grande, afirmavam alguns, mas nem tanto. Para estes, a biografia do escritor estava manchada pelo apoio ao regime ditatorial instalado aqui no Brasil em 1964. 

Escritores são seres humanos e, potencialmente, capazes de errar. A história nos prova isso. Há casos de nomes importantes que ficaram ao lado de regimes ditatoriais obscurantistas. É o caso de Céline, de Rachel de Queiroz ou de Nelson Rodrigues, que apoiou o Golpe até que este chegou à sua casa. São exemplos ligeiros que me vêm à memória. 

Não estou proibido de visitar a obra de determinado escritor pelo fato de ele ser simpático a determinado movimento. Proceder dessa forma indica liberdade intelectual e maturidade eletiva. 

Após essa pequena digressão, procurei imediatamente uma obra do escritor para ler. Comprei Feliz ano novo e comecei a leitura no Kindle. Li o primeiro conto - que leva o mesmo título do livro - e, de início, já fui golpeado pelo estilo fonsequeano. Trata-se de uma literatura bestial, não no sentido diabólico. Fonseca é um estudioso da alma humana. Sua obra é crua. Sem adereços. Não há penduricalhos. Diz somente aquilo que precisa ser dito para encontrar o efeito desejado. 

Em Feliz ano novo encontramos um cadinho da obra do escritor. Nota-se o quanto o escritor encontrou a fórmula exata. O controle do gênero conto. Sua linguagem despojada preocupa-se em contar o que existe na dimensão misteriosa e imensurável do ser humano. Fonseca narra o insólito. O extremo. O pai de família - insuspeito. Bom burguês. Pega o carro. Vai para a rua. Atropela um transeunte. Compraz-se com isso. Volta para casa. Diz que vai dormir. Despede-se da mulher num cálculo inocente. Ou os assaltantes que provocam uma carnificina em uma festa; que ficam indignados quando percebem o quanto o dono rico da casa demonstrava insensibilidade, desprezando bens materiais, deixando a entender que tinha tantos bens, que perder alguns não faria falta. 

A crítica descuidada que afirma existir uma certa previsibilidade na literatura do escritor, pois esta sempre acaba em violência é rasa. Afirmar isso é lê-lo de forma apressada. O grande crítico literário Alfredo Bosi, uma autoridade inquestionável em literatura, denominou o seu estilo de "brutalista". Trata-se de uma denominação que é exata. Tal denominação aponta para o fato de que a violência é um verniz para denunciar a vida, o estilo burguês, na urbe da sociedade capitalista. Fonseca é escritor que tem a sua literatura radicada na cidade. 

A cidade é o espaço da violência, do medo, do estupro, da desigualdade, da ansiedade, dos dramas psicológicos, do individualismo lancinante; dos gestos imprevisíveis. Há um catastrofismo inerente em seus textos e isso não deixa estar presente Feliz ano novo

P.S. A partir da leitura do livro de Fonseca me bateu uma paixão absurda pelo conto. E o Brasil é um país privilegiado nesse sentido. Há bons escritores do gênero por aqui - Otto Lara Resende, Lygia Fagundes Telles, Dalton Trevisan, Murilo Rubião, Clarice Lispector, Osman Lins, Domingos Pellegrini, Monteiro Lobato, Machado de Assis, Lima Barreto, Guimarães Rosa, apenas para citar alguns. Leiamos os bons!

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