quinta-feira, março 25, 2021

100 anos de Clarice; algumas leituras

 


Em 2020 – mais precisamente, no dia 10 de dezembro -, o universo comemorou o nascimento de uma das mais geniais e enigmáticas romancistas. Daqueles seres que não somente a obra, mas a própria vida é um evento literário. Refiro-me à Clarice Lispector. Um astro enigmático que, com a sua face escura, esconde segredos e mistérios sempre por serem desvelados. Talvez, aí resida verdadeiramente os seus mistérios. Poderíamos inventar a expressão, quando percebêssemos um nível razoável de mistério ou de propensão a segredos escondidos: “Ele ou ela possui os mistérios de Clarice”. A escritora que nos remete ao "claro", mas que escondia em sua personalidade segredos eclipsados.

Meu contato com Clarice se deu ainda na minha adolescência. Quando em idade escolar, estabeleci contato com “A hora da estrela”, um livro relativamente curto, mas de leitura lancinante. Impressiona o que a narradora faz com a sua personagem. Esses dias, assistindo a um documentário sobre a escritora, escutei da diretora – Suzana Amaral (falecida o ano passado) - que adaptou a obra para o cinema, que a personagem do livro – Macábea – um símbolo do que é o Brasil. Achei a relação imensamente feliz. Nunca havia parado para pensar sobre a personagem a partir desta perspectiva. Macábea do alto de seu alheamento, de seu simplismo selvagem, de seu contentamento ingênuo, é o averso do Macunaíma de Mário de Andrade.

Mais tarde, li “A paixão segundo G.H.”, obra que ficou comigo por vários meses. Ler Clarice é mergulhar em um oceano largo e denso, de profundidade recôndita, que nos abraça, que nos embriaga, que nos toma e que acaba gerando transbordamentos reflexivos. Clarice é uma promotora de epifanias verbais. Não saímos ilesos de seu texto apaixonado. G.H. é a metáfora transfigurada de todo aquele que vive, mas não sabe que existe. Cada frase escrita por Clarice está repleta de larguezas, de abismos espelhados, onde nos vemos. E se demoramos demais a contemplar, somos tragados pela sua força irresistível.

Foi pensando nesse fato – os cem anos do seu nascimento – que decidi ler, ao longo do ano de 2021, pelo menos seis das suas obras – “Perto do coração selvagem” (já lido; farei alguns comentários sobre a obra em outro momento), “O lustre”, “Laços de Família”, “A maçã no escuro”, “Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres” e “A descoberta do mundo”. São livros para os quais sempre tive curiosidade.

Em paralelo à leitura das obras, estou lendo a excelente biografia escrita por Benjamin Moser. O biógrafo é estadunidense. Chegou ao texto clariceano por acaso. Mas, como não poderia deixar de ser, acabou sendo tragado pelo magnetismo do texto da dama da literatura brasileira. Em outro momento, procurarei “rascunhar” algumas palavras sobre o seu texto.

Sigamos.  

terça-feira, março 16, 2021

A linguística do preconceito de classe - Por Luis Felipe Miguel

 

Eu, que sou ingênuo, fiquei surpreso com o fato do jornalismo conservador pautar o metaplasmo de Lula.


O anaptixe indigitado pela apresentadora da GloboNews é, todos sabemos, de uso corrente. Mas variações da prosódia são hierarquizadas de acordo com grupo social e região.


Uma outra samprasárana qualquer, mais comum na boca de professores universitários do que de operários, passaria despercebida. O que a tal jornalista estava fazendo era debochar da origem popular do ex (ou seria melhor dizer "futuro"?) presidente.


É o velho preconceito de classe. Contra Lula - que é um sujeito culto, de amplos horizontes, largo vocabulário, grande curiosidade intelectual e indiscutível inteligência - resta martelar a falta de diploma universitário e caçar suarabáctis como o encontrado no discurso de quarta-feira.


Esse tipo de preconceito foi muito martelado nas vezes em que Lula enfrentou Fernando Henrique Cardoso - que, afinal, é o eterno "príncipe da sociologia brasileira". Embora já fosse há tempos apenas um ex-intelectual, FHC fazia questão de usar até a última gota do prestígio que isso lhe dava.


O objetivo, claro, era estabelecer contraste com Lula. A imprensa deitava e bordava; os jornalistas não perdoavam, em Lula, os mesmos desvios da norma padrão que corriqueiramente cometiam.


Lembro de um episódio de 1994. Quando o senador José Paulo Bisol, ainda vice na chapa da Frente Brasil Popular pela Cidadania, declamou um poema de sua autoria, intitulado “Os álamos”, a imprensa correu para perguntar a Lula se ele sabia o significado da palavra (o candidato se recusou a responder e, segundo a reportagem, mostrou-se “irritado”). O leitor da Folha podia rir tranquilo da presumida ignorância do ex-metalúrgico, já que a repórter teve o cuidado de acrescentar, entre parênteses, que álamos são “árvores”.


Era um sindicalista contra um sorbônico aristocrata. Esse enquadramento, embora cretino, fazia sentido.
Mas hoje? Lula é um líder político testado, reconhecido internacionalmente. Não tem como ser considerado ignorante.


Já seu opositor atual se embanana para ler um texto curto, não tem ideia de quem foi João Gilberto, confessa para quem quiser ouvir que não conhece nenhuma das questões sobre as quais deveria governar, difunde espetáculos semanais dantescos de estupidez e desinformação em suas laives...


A apresentadora da GloboNews acha mesmo que esse estratagema ainda tem chance de dar certo? Que um pobre epêntese vai render tanto?


(E, aqui entre nós: a linguística usa umas palavras muito estranhas... Catei todas no Google. Espero que não me processem se estiver usando errado, porque não sei qual adevogado poderá me representar.)


Daqui.


1 - Metaplasmo - Metaplasmo, também designado por metaplasma por alguns autores, são as alterações fonéticas que ocorrem em determinadas palavras ao longo da evolução de uma língua, o que ajuda a compreender a etimologia de muitas dessas palavras. O metaplasmo pode ocorrer pela adição, supressão ou modificação dos sons.


2 - Anaptixe - Anaptixe é um tipo especial de epêntese, que é um dos metaplasmos por adição de fonemas a que as palavras podem estar sujeitas à medida que uma língua evolui. Neste caso, são acrescentados fonemas ao interior da palavra para desfazer um encontro de consoantes.

3 - Samprasárana - epêntese ou samprasárana é um dos metaplasmos por adição de fonemas a que as palavras podem estar sujeitas à medida que uma língua evolui. Neste caso, há acréscimo de um ou mais fonemas ao interior do vocábulo.

4 - Suarabáctis - espécie de epêntese que consiste em se desfazer um grupo consonantal por meio da intercalação de uma vogal, como ocorreu com a palavra barata, originária do antigo brata (latim blatta ), ou com braúna > baraúna ; anaptixe.


domingo, março 14, 2021

As redes sociais - vídeo da BBC

Ilustração do polonês Pawel Kuczynski

A linguagem usada pelas redes sociais é bastante curiosa. A começar pelo termo “rede”. Rede é uma malha com aberturas regulares, usada para apanhar coisas ou seres. É assim que falamos em rede de pesca, que serve para capturar peixes ou outros animais provenientes de água doce ou salgada. A rede também serve como armadilha. Os aracnídeos, por exemplo, utilizam-nas como um artifício para armar emboscadas.

A teia construída pela aranha é uma rede resistente e serve como elemento indispensável para a própria sobrevivência. É nesse espaço delicado e resistente que capturam certos animais para se alimentarem deles. Os animais distraídos que caem ali são incapazes, uma vez presos ao material na teia, de sair e acabam servindo de alimento para a aranha.

Outro termo bastante curioso utilizado pelas redes sociais é a ideia de “usuário”. Como diz a reportagem da BBC (vídeo abaixo), apenas duas indústrias classificam seus consumidores com tal termo – a indústria do narcotráfico e a poderosa e narcotizante indústria das redes sociais. No caso dessa última, os seus consumidores são chamados de usuários, talvez, pelo potencial viciante que ela possui.

Já pensei diversas vezes em largar Facebook, Instagram, Whatsapp e toda essa parafernália que nos tornam seres passivos e dopados pelo seu poder espetacularizante. Por trás disso tudo, existem pessoas que pensam 24 horas como tornar os chamados “usuários” em seres cada vez mais dependentes. Com essa “dependência” por parte de adultos, adolescentes, crianças, são geradas cifras bilionárias. As poderosas corporações que lucram com esse sistema de vigilância sabem muito bem como proceder para tornar “os usuários” em reféns. A matéria consumida é o tempo. Horas e horas são tragadas pelos usuários diariamente.  Segundo pesquisa da Global Digital Overview, em 2021, os brasileiros ficaram, em média, 3 horas 31 minutos, por dia, expostos às redes sociais.  De acordo com essa mesma pesquisa, cada usuário fica 100 dias por ano conectado à internet. Um número que impressiona. Trata-se de um fenômeno novo, causador de dependência psicológica.

Como a excelente reportagem da BBC explicitou, “somos seres carentes de atenção”. As redes sociais potencializam esse lado das carências psicológicas. Os usuários permanecem presos, pois se tornam adstritos às “curtidas” e respostas dos supostos amigos – “seguidores”. Cada curtida gera uma sensação de bem-estar, de reconhecimento. Na selva dos individualismos gestados pela modernidade, quanto mais uma postagem é curtida, mais a sensação de recompensa é satisfeita. No fundo, o vício é oriundo dessa relação entre aquilo que eu posto e aquilo que obtenho dos outros com quilo que posto.

Os inventores e administradores dessas redes entenderam isso. É a partir da relação de dependência que eles lucram cifras altíssimas. O vídeo explica muito bem isso:

 


sexta-feira, março 05, 2021

"O Cabeleira", de Franklin Távora - algumas impressões

 


Quando entramos em contato com a literatura de José Lins do Rego e lemos o seu “Cangaceiros”, passamos a crer que ali existe algo original. O tema do cangaço é algo – temos a impressão – que nunca foi tratado pela literatura. O estilo caudaloso, que flui de forma desimpedida, é algo que torna a narrativa do escritor paraibano em algo imperdível.

O cangaço é um fenômeno histórico ocorrido no Nordeste brasileiro e que possui uma forte ressonância social. Creem os estudiosos do fenômeno de que se trata de um fenômeno que surgiu em decorrência das graves disparidades sócio-econômicas da região. O delicioso livro Bandidos, de Eric Hobsbawm, expõe no capítulo "O que é banditismo social?", que o fenômeno do banditismo social faz parte de sociedades agrárias e pastoris. Existem determinados elementos que dão vazão para que este tipo de movimento - marginal - se forme. Por exemplo, Hobsbawm diz que em épocas de muita fome, de repressão política, de descalabros variados, existe uma tendência que dá surgimento a esse fenômeno. A violência no mando dos coronéis, aliada a séculos de escravidão, bem como a pobreza de muitos sertanejos, talvez, tenham feito fermentar esse tipo de banditismo tão característico. A violência “dos pequenos” pode ser tão atroz quanto a violência dos grandes.

Pode-se afirmar que o cangaço existiu entre os séculos XVIII até à metade do século XX, durante o Governo Vargas. Os cangaceiros ou bandoleiros como eram chamados andavam em grupos armados, cometendo assaltos, assassinatos, estupros e todo tipo de violência contra aqueles que criassem obstáculos às suas intenções. Eram nômades; conheciam com muita intimidade a geografia árida da caatinga. Esgueiravam-se de maneira habilidosa. Conseguiam, assim, fugir das autoridades. Na vasta região cálida e seca, com uma vegetação cheia de espinhos; solo pedregoso, onde se ocultavam animais peçonhentos, os cangaceiros marchavam com incomum destreza.

Corroborando com isso, Hobsbawn diz: [O banditismo] "floresce em áreas remotas e inacessíveis, tais como montanhas, planícies não cortadas por estradas, áreas pantanosas, florestas ou estuários, com seu labirinto de canais e cursos d'água, e é atraído por rotas comerciais ou estradas importantes, nas quais a locomoção dos viajantes, nesses países pré-industriais, é lenta e difícil". O historiador inglês vai dizer que baste a construção de estradas ou a conexão com as regiões desoladas, onde originou o banditismo, para que este arrefeça, perca a força. Ou seja, a rapidez na comunicação permite ao Estado ações contundentes a fim de exorcizar o fenômeno do banditismo social.


Ao longo do tempo, imprimiu-se no imaginário popular uma noção mais rarefeita do cangaço. Criou-se certo fascínio pelas suas personagens como é o caso típico de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, conhecido como o “o Rei do  Cangaço”. Esse epíteto potencializa uma imagem positiva dessa personagem. A história intrigante que o acompanha possui inúmeros fatos violentos de pilhagens e mortes cruéis a seus desafetos.

Em 1876, o escritor cearense Franklin Távora, radicado no Pernambuco, escreveu – ou romanceou – a história de José Gomes, conhecido como “o Cabeleira”. Cabeleira é conhecido como um dos primeiros sujeitos a encabeçarem o movimento do banditismo no Nordeste.

Franklin Távora, nascido em Baturité, em 1842, mudou para Pernambuco em 1844. E, a partir daí, a vinculação estabelecida com o estado dar-se-ia por longos anos de sua vida. Ainda muito jovem, ingressou na tradicional e famosa Faculdade de Direito do Recife. Em 1863, conseguiu o diploma de bacharel em direito, tendo feito carreira no direito e no jornalismo.

 O escritor era um intransigente defensor das tradições populares; um nacionalista convicto; alguém que buscava retratar em seu regionalismo eventos que tivessem uma fiel relação com a história. Foi por conta disso, que entrou em uma porfia intelectual com José de Alencar, uma entidade que, àquela época, gozava de enorme prestígio. Para Távora, o regionalismo de Alencar era idealista em excesso. Não era verdadeiro. Alencar falava, segundo ele, daquilo que não conhecia. Um exemplo é a escrita de “O gaúcho”. Segundo Távora, Alencar falava do homem gaúcho sem ter colocado os pés no Rio do Grande do Sul. Esse artificialismo na prosa regionalista de Alencar rendeu bons debates.

Para escrever “O Cabeleira”, Távora toma nota de informações históricas, como se pode perceber no prefácio e posfácio da obra. A atividade romanesca do escritor assenta-se no chão da história. Não surgiu do nada.

Na obra, notamos a preocupação com a geografia; o nome das cidades da Zona da Mata de Pernambuco – Goiana, Santo Antão (minha cidade, hoje, chamada de Vitória de Santo Antão, Glória Goitá, Ipojuca, Limoeiro entre outras. A vegetação também surge. O rio Tapacurá também é mencionado com certa recorrência na obra. Encontramos o trecho com forte aceno histórico:

“Uma tarde Luisinha foi buscar água no rio Tapacurá, que banha a cidade de Vitória, então povoação de Santo Antão, à qual pertencia Glória de Goitá donde era natural o Cabeleira. Santo Antão distingue-se na história pernambucana pela circunstância de lhe estar próximo o Monte das Tabocas no qual se verificou em 3 de agosto de 1645 a batalha que iniciou a insurreição portuguesa contra o domínio holandês, e exercitou direta e decisiva influência no futuro político, comercial, industrial e religioso do Brasil. Esta memorável batalha, depois de seis longas horas de fogo, declarou-se em favor dos nossos primeiros dominadores. Em comemoração deste acontecimento, uma lei provincial de 6 de maio de 1843 erigiu a antiga povoação em cidade a que chamou de Vitória como acima de se vê”. (p.49).

Segundo a história, Cabeleira nasceu em Glória do Goitá, munícipio da Zona da Mata. Era uma criança dócil. Sua mãe era uma mulher de alma sensível e piedosa. Joaquim Gomes, seu pai, era um sujeito cruel, que não possuía qualquer comiseração por quem quer que fosse. Seu desejo era incutir no filho a força dos instintos. Foi assim que procurou incutir no filho hábitos de sadismo e perversidade. A lição veio, incialmente, com o estripamento de animais. Segundo Joaquim Gomes, isso permitiria ao filho nunca se dobrar a ninguém. Afinal, ele estava criando o filho para ser um homem de verdade. Ou como diz o autor: “uma máquina de cometer crimes”. (p.38).

A mãe de José Gomes – Joana - sofria com essas lições atrozes e desumanas. Ela sabia qual era o objetivo do pai. E somente rezava, tentando desfazer aquilo que o pai buscava impingir na alma do filho. Até que Joaquim foge com José. Tira o filho da zona de influência da mãe. É a partir daí que a história de Cabeleira, como era chamada por causa de seus cabelos longos e negros, passou a ganhar contornos daquilo que mais tarde seria.

Nas páginas que seguem, notam-se os feitos do bandido. Os crimes cometidos. As crueldades que se alastravam com o assassinato de crianças, de pessoas idosas ou de quem lhe surgisse no caminho. Associado a mais alguns comparsas, José Gomes passa a ser temido. Sua fama chega até ao Recife.

Os impulsos de Cabeleira são refreados, quando ele se encontra com a Luisinha, uma paixão iniciada na infância. Ela busca arrancar do coração do bandido todas as raízes da maldade. Ele mostra-se obediente. Procura refrear os instintos. E aos poucos tem a sua personalidade transformada.

Franklin Távora (1842-1888)

O romance procura amainar a imagem daquele que é considerado como um criador de um proto-cangaço.  Ele dá mostras de que está arrependido. Sua imagem é realçada como a de um herói – pelo menos essa é a depreensão que fica subentendida da leitura. Diferentemente, de outras figuras do cangaço como Antonio Silvino, cangaceiro paraibano, que iniciou no movimento após presenciar a morte do pai e se envolver em brigas de terra; ou de Lampião, que também foi vítima de violência contra a sua família, Cabeleira é treinado pelo pai para ser o que foi. Há uma espécie de isenção pela culpa por parte do escritor.

Seu estilo é a mescla da objetividade jornalística, com o rigor de uma historiografia que se preocupa em ser fiel a certos eventos. Mas, no bojo dessa característica, nota-se o estofo da prosa romanesca. Seu texto é realista. Mas é diferente do rigor naturalista do texto de Aluísio Azevedo; e diferente também do regionalismo idealista de José de Alencar.  Satisfiz um desejo antigo ao lê-lo.