terça-feira, março 16, 2021

A linguística do preconceito de classe - Por Luis Felipe Miguel

 

Eu, que sou ingênuo, fiquei surpreso com o fato do jornalismo conservador pautar o metaplasmo de Lula.


O anaptixe indigitado pela apresentadora da GloboNews é, todos sabemos, de uso corrente. Mas variações da prosódia são hierarquizadas de acordo com grupo social e região.


Uma outra samprasárana qualquer, mais comum na boca de professores universitários do que de operários, passaria despercebida. O que a tal jornalista estava fazendo era debochar da origem popular do ex (ou seria melhor dizer "futuro"?) presidente.


É o velho preconceito de classe. Contra Lula - que é um sujeito culto, de amplos horizontes, largo vocabulário, grande curiosidade intelectual e indiscutível inteligência - resta martelar a falta de diploma universitário e caçar suarabáctis como o encontrado no discurso de quarta-feira.


Esse tipo de preconceito foi muito martelado nas vezes em que Lula enfrentou Fernando Henrique Cardoso - que, afinal, é o eterno "príncipe da sociologia brasileira". Embora já fosse há tempos apenas um ex-intelectual, FHC fazia questão de usar até a última gota do prestígio que isso lhe dava.


O objetivo, claro, era estabelecer contraste com Lula. A imprensa deitava e bordava; os jornalistas não perdoavam, em Lula, os mesmos desvios da norma padrão que corriqueiramente cometiam.


Lembro de um episódio de 1994. Quando o senador José Paulo Bisol, ainda vice na chapa da Frente Brasil Popular pela Cidadania, declamou um poema de sua autoria, intitulado “Os álamos”, a imprensa correu para perguntar a Lula se ele sabia o significado da palavra (o candidato se recusou a responder e, segundo a reportagem, mostrou-se “irritado”). O leitor da Folha podia rir tranquilo da presumida ignorância do ex-metalúrgico, já que a repórter teve o cuidado de acrescentar, entre parênteses, que álamos são “árvores”.


Era um sindicalista contra um sorbônico aristocrata. Esse enquadramento, embora cretino, fazia sentido.
Mas hoje? Lula é um líder político testado, reconhecido internacionalmente. Não tem como ser considerado ignorante.


Já seu opositor atual se embanana para ler um texto curto, não tem ideia de quem foi João Gilberto, confessa para quem quiser ouvir que não conhece nenhuma das questões sobre as quais deveria governar, difunde espetáculos semanais dantescos de estupidez e desinformação em suas laives...


A apresentadora da GloboNews acha mesmo que esse estratagema ainda tem chance de dar certo? Que um pobre epêntese vai render tanto?


(E, aqui entre nós: a linguística usa umas palavras muito estranhas... Catei todas no Google. Espero que não me processem se estiver usando errado, porque não sei qual adevogado poderá me representar.)


Daqui.


1 - Metaplasmo - Metaplasmo, também designado por metaplasma por alguns autores, são as alterações fonéticas que ocorrem em determinadas palavras ao longo da evolução de uma língua, o que ajuda a compreender a etimologia de muitas dessas palavras. O metaplasmo pode ocorrer pela adição, supressão ou modificação dos sons.


2 - Anaptixe - Anaptixe é um tipo especial de epêntese, que é um dos metaplasmos por adição de fonemas a que as palavras podem estar sujeitas à medida que uma língua evolui. Neste caso, são acrescentados fonemas ao interior da palavra para desfazer um encontro de consoantes.

3 - Samprasárana - epêntese ou samprasárana é um dos metaplasmos por adição de fonemas a que as palavras podem estar sujeitas à medida que uma língua evolui. Neste caso, há acréscimo de um ou mais fonemas ao interior do vocábulo.

4 - Suarabáctis - espécie de epêntese que consiste em se desfazer um grupo consonantal por meio da intercalação de uma vogal, como ocorreu com a palavra barata, originária do antigo brata (latim blatta ), ou com braúna > baraúna ; anaptixe.


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