sexta-feira, março 05, 2021

"O Cabeleira", de Franklin Távora - algumas impressões

 


Quando entramos em contato com a literatura de José Lins do Rego e lemos o seu “Cangaceiros”, passamos a crer que ali existe algo original. O tema do cangaço é algo – temos a impressão – que nunca foi tratado pela literatura. O estilo caudaloso, que flui de forma desimpedida, é algo que torna a narrativa do escritor paraibano em algo imperdível.

O cangaço é um fenômeno histórico ocorrido no Nordeste brasileiro e que possui uma forte ressonância social. Creem os estudiosos do fenômeno de que se trata de um fenômeno que surgiu em decorrência das graves disparidades sócio-econômicas da região. O delicioso livro Bandidos, de Eric Hobsbawm, expõe no capítulo "O que é banditismo social?", que o fenômeno do banditismo social faz parte de sociedades agrárias e pastoris. Existem determinados elementos que dão vazão para que este tipo de movimento - marginal - se forme. Por exemplo, Hobsbawm diz que em épocas de muita fome, de repressão política, de descalabros variados, existe uma tendência que dá surgimento a esse fenômeno. A violência no mando dos coronéis, aliada a séculos de escravidão, bem como a pobreza de muitos sertanejos, talvez, tenham feito fermentar esse tipo de banditismo tão característico. A violência “dos pequenos” pode ser tão atroz quanto a violência dos grandes.

Pode-se afirmar que o cangaço existiu entre os séculos XVIII até à metade do século XX, durante o Governo Vargas. Os cangaceiros ou bandoleiros como eram chamados andavam em grupos armados, cometendo assaltos, assassinatos, estupros e todo tipo de violência contra aqueles que criassem obstáculos às suas intenções. Eram nômades; conheciam com muita intimidade a geografia árida da caatinga. Esgueiravam-se de maneira habilidosa. Conseguiam, assim, fugir das autoridades. Na vasta região cálida e seca, com uma vegetação cheia de espinhos; solo pedregoso, onde se ocultavam animais peçonhentos, os cangaceiros marchavam com incomum destreza.

Corroborando com isso, Hobsbawn diz: [O banditismo] "floresce em áreas remotas e inacessíveis, tais como montanhas, planícies não cortadas por estradas, áreas pantanosas, florestas ou estuários, com seu labirinto de canais e cursos d'água, e é atraído por rotas comerciais ou estradas importantes, nas quais a locomoção dos viajantes, nesses países pré-industriais, é lenta e difícil". O historiador inglês vai dizer que baste a construção de estradas ou a conexão com as regiões desoladas, onde originou o banditismo, para que este arrefeça, perca a força. Ou seja, a rapidez na comunicação permite ao Estado ações contundentes a fim de exorcizar o fenômeno do banditismo social.


Ao longo do tempo, imprimiu-se no imaginário popular uma noção mais rarefeita do cangaço. Criou-se certo fascínio pelas suas personagens como é o caso típico de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, conhecido como o “o Rei do  Cangaço”. Esse epíteto potencializa uma imagem positiva dessa personagem. A história intrigante que o acompanha possui inúmeros fatos violentos de pilhagens e mortes cruéis a seus desafetos.

Em 1876, o escritor cearense Franklin Távora, radicado no Pernambuco, escreveu – ou romanceou – a história de José Gomes, conhecido como “o Cabeleira”. Cabeleira é conhecido como um dos primeiros sujeitos a encabeçarem o movimento do banditismo no Nordeste.

Franklin Távora, nascido em Baturité, em 1842, mudou para Pernambuco em 1844. E, a partir daí, a vinculação estabelecida com o estado dar-se-ia por longos anos de sua vida. Ainda muito jovem, ingressou na tradicional e famosa Faculdade de Direito do Recife. Em 1863, conseguiu o diploma de bacharel em direito, tendo feito carreira no direito e no jornalismo.

 O escritor era um intransigente defensor das tradições populares; um nacionalista convicto; alguém que buscava retratar em seu regionalismo eventos que tivessem uma fiel relação com a história. Foi por conta disso, que entrou em uma porfia intelectual com José de Alencar, uma entidade que, àquela época, gozava de enorme prestígio. Para Távora, o regionalismo de Alencar era idealista em excesso. Não era verdadeiro. Alencar falava, segundo ele, daquilo que não conhecia. Um exemplo é a escrita de “O gaúcho”. Segundo Távora, Alencar falava do homem gaúcho sem ter colocado os pés no Rio do Grande do Sul. Esse artificialismo na prosa regionalista de Alencar rendeu bons debates.

Para escrever “O Cabeleira”, Távora toma nota de informações históricas, como se pode perceber no prefácio e posfácio da obra. A atividade romanesca do escritor assenta-se no chão da história. Não surgiu do nada.

Na obra, notamos a preocupação com a geografia; o nome das cidades da Zona da Mata de Pernambuco – Goiana, Santo Antão (minha cidade, hoje, chamada de Vitória de Santo Antão, Glória Goitá, Ipojuca, Limoeiro entre outras. A vegetação também surge. O rio Tapacurá também é mencionado com certa recorrência na obra. Encontramos o trecho com forte aceno histórico:

“Uma tarde Luisinha foi buscar água no rio Tapacurá, que banha a cidade de Vitória, então povoação de Santo Antão, à qual pertencia Glória de Goitá donde era natural o Cabeleira. Santo Antão distingue-se na história pernambucana pela circunstância de lhe estar próximo o Monte das Tabocas no qual se verificou em 3 de agosto de 1645 a batalha que iniciou a insurreição portuguesa contra o domínio holandês, e exercitou direta e decisiva influência no futuro político, comercial, industrial e religioso do Brasil. Esta memorável batalha, depois de seis longas horas de fogo, declarou-se em favor dos nossos primeiros dominadores. Em comemoração deste acontecimento, uma lei provincial de 6 de maio de 1843 erigiu a antiga povoação em cidade a que chamou de Vitória como acima de se vê”. (p.49).

Segundo a história, Cabeleira nasceu em Glória do Goitá, munícipio da Zona da Mata. Era uma criança dócil. Sua mãe era uma mulher de alma sensível e piedosa. Joaquim Gomes, seu pai, era um sujeito cruel, que não possuía qualquer comiseração por quem quer que fosse. Seu desejo era incutir no filho a força dos instintos. Foi assim que procurou incutir no filho hábitos de sadismo e perversidade. A lição veio, incialmente, com o estripamento de animais. Segundo Joaquim Gomes, isso permitiria ao filho nunca se dobrar a ninguém. Afinal, ele estava criando o filho para ser um homem de verdade. Ou como diz o autor: “uma máquina de cometer crimes”. (p.38).

A mãe de José Gomes – Joana - sofria com essas lições atrozes e desumanas. Ela sabia qual era o objetivo do pai. E somente rezava, tentando desfazer aquilo que o pai buscava impingir na alma do filho. Até que Joaquim foge com José. Tira o filho da zona de influência da mãe. É a partir daí que a história de Cabeleira, como era chamada por causa de seus cabelos longos e negros, passou a ganhar contornos daquilo que mais tarde seria.

Nas páginas que seguem, notam-se os feitos do bandido. Os crimes cometidos. As crueldades que se alastravam com o assassinato de crianças, de pessoas idosas ou de quem lhe surgisse no caminho. Associado a mais alguns comparsas, José Gomes passa a ser temido. Sua fama chega até ao Recife.

Os impulsos de Cabeleira são refreados, quando ele se encontra com a Luisinha, uma paixão iniciada na infância. Ela busca arrancar do coração do bandido todas as raízes da maldade. Ele mostra-se obediente. Procura refrear os instintos. E aos poucos tem a sua personalidade transformada.

Franklin Távora (1842-1888)

O romance procura amainar a imagem daquele que é considerado como um criador de um proto-cangaço.  Ele dá mostras de que está arrependido. Sua imagem é realçada como a de um herói – pelo menos essa é a depreensão que fica subentendida da leitura. Diferentemente, de outras figuras do cangaço como Antonio Silvino, cangaceiro paraibano, que iniciou no movimento após presenciar a morte do pai e se envolver em brigas de terra; ou de Lampião, que também foi vítima de violência contra a sua família, Cabeleira é treinado pelo pai para ser o que foi. Há uma espécie de isenção pela culpa por parte do escritor.

Seu estilo é a mescla da objetividade jornalística, com o rigor de uma historiografia que se preocupa em ser fiel a certos eventos. Mas, no bojo dessa característica, nota-se o estofo da prosa romanesca. Seu texto é realista. Mas é diferente do rigor naturalista do texto de Aluísio Azevedo; e diferente também do regionalismo idealista de José de Alencar.  Satisfiz um desejo antigo ao lê-lo.

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