sábado, julho 31, 2021

"Monika e o Desejo", de Ingmar Bergman.

 

“Monika e o Desejo” é um filme de 1953, dirigido por Ingmar Bergman. Entre os filmes bergmanianos já vistos por mim, este foi aquele que mais diverge das características peculiares encontradas nas películas do diretor sueco. Em uma leitura ligeira, parece-nos de que se trata de uma obra preocupada apenas com a hedonística irresponsável da vida de dois jovens. Todavia, há elementos na obra que apontam a genialidade destacada de Bergman. A personagem Monika esbanja liberdade, desenvoltura para lidar com os problemas que a cerca. É decidida. Corajosa. Não leva desaforo para casa. Seu romance com o jovem e confuso Harry é uma metáfora das relações jovens e descomprometidas. Após o casamento, a atmosfera de aventura e romance acaba. Instala-se a melancolia. Após o nascimento do filho, Monika mostra-se inadaptada e insatisfeita com a maternidade. O final do filme surpreende, pois coloca em evidência uma crítica aos padrões esperados pela sociedade. Trata-se de um filme em que Bergman abusou das simbologias. É ver com calma para entender qual é o desejo de Monika.

 

terça-feira, julho 27, 2021

"Cidades Mortas", de Monteiro Lobato. Algumas palavras após a leitura



 “A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ou em via disso, tolhidas de insanável caquexia, uma verdade, que é desconsolo, ressurte de tantas ruínas: nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas”.

                                    Monteiro Lobato, in “Cidades Mortas”.

 

            Ainda não havia entrado em contato com a prosa de Monteiro Lobato. Havia saboreado de forma superficial, no máximo, fragmentos do conto “Negrinha”. Lobato é e foi um grande polemista. Enquanto vivo, conservou uma posição de genuína independência intelectual. Foi um homem de ação; um sujeito ousado que não tinha medo de assumir posições.

            Ainda em nossos dias, existem polêmicas em torno de seus textos. Algumas de suas afirmações causam estranhamento para o momento em que vivemos – o tempo do politicamente correto. Cem anos após a escrita desses textos, a sociedade refletiu sobre determinados aspectos das relações sociais. É demasiado exagerado, cobrar de um intelectual como Lobato certas reflexões. Ele era um homem do seu tempo. É preciso ler essas passagens com certa criticidade, sem condenar a totalidade da obra do escritor paulista. Há muito o que se aprender com ele. Seus textos além de bem escritos, pois era dono de um estilo único, inconfundível, estão eivados de elementos antropológicos da sociedade brasileira da primeira metade do século XX.  

            Cidades Mortas é uma reunião de contos escritos nas duas primeiras décadas século XX. Eles compreendem um período de vinte anos. São narrativas curtas com certo gosto pitoresco. Lobato é um cronista mordaz da vida interiorana. Como nessa frase que se segue, em que se percebe os elementos sarcásticos de um narrador atento à vida social: “(...) o mexerico é a ambrosia dos lugarejos pobres”.

            Ao terminar o curso de Direito na Faculdade do Largo de São Francisco, na capital, volta para o Vale do Paraíba, de onde era originário. Nasceu em Taubaté. Vai exercer a profissão. Mas, a vida citadina agitada que experimentara enquanto cursava Direito na capital havia ficado para trás. O ramerrão da vida do interior é um elemento que se plasma à sua vida. Para furar o tecido grosso da monotonia, ler e escreve. Em alguns contos de Cidades Mortas é possível ouvir o carro de boi; o dialeto caipira dos homens afeitos ao trabalho com a terra; os estalinhos de arrogância das autoridades pequenas do interior; o silêncio brumoso de uma manhã; sentir o calçamento de pedra vazio ao meio dia, enquanto o cachorro errante descansa à sombra de uma palmeira.

Monteiro Lobato

            O escritor não se preocupa com análises psicológicas. Sua matéria de trabalho é o que acontece externamente com o mundo. Não é sua preocupação os dramas existenciais. Como diz Alfredo Bosi, “Lobato concentrava-se no retrato físico, na busca dos defeitos do corpo ou dos aspectos risíveis do temperamento ou do caráter”.  Há uma objetividade na forma como descreve.

            Lobato escancara o decadentismo dos proprietários. Os latifúndios exageradamente improdutivos. A técnica insuficiente para lidar com os problemas da terra. Dessa forma, o escritor critica a falta de racionalidade estratégica das elites agrárias. Nas “cidades mortas”, como diz Lobato, “não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito”. Vive-se dentro de um tempo que não evolui. “(...) casarões que lembram ossaturas de megatérios donde carnes, o sangue, a vida, para sempre refugiram”. Era objetivo do escritor denunciar o provincianismo da aristocracia rural, que não conseguia se apropriar de novas estratégias, de uma compreensão que a arrancasse da letargia de “Oblivion”. A condição de mandatário não seria eterna. Era preciso munir-se de novas técnicas; encher-se de dinamismo.

            Como grande positivista e evolucionista que era, defensor dos avanços das técnicas científicas, Lobato sabia que a mesmice anêmica das elites nacionais levaria o país à decadência. Era preciso dinamizar a vida social e produtiva do país. Não era apenas colocar um fraque, uma cartola, acender um charuto e sentar em um banco do alpendre da casa-grande como costumavam fazer os coronéis do interior a fim de olhar a plantação, os escravos, as crianças, mulheres, ou seja, tudo o que lhes pertenciam. Aquilo sepultaria o país. Conduziria a uma condição de subserviência diante das modernizações exigidas pela dinâmica do capitalismo que passava por uma grande transformação no início do século XX. Isso fica provado com a decadência da República Velha, que era essencialmente cafeicultora. Nesse sentido, Lobato foi um grande visionário. 

            Há contos no livro que estão entre os grandes textos já escritos em língua portuguesa: “Os perturbadores do silêncio”, “Por que Lopes se casou”, “Júri na roça”, “O luzeiro agrícola”. “Café! Café!”, “Um homem de consciência”, “Anta que berra”, “Um homem honesto” e “A nuvem de gafanhotos”.

            O livro é importantíssimo. A leitura é deliciosa. Alguns contos estão repletos de picardia. Lobato escrevia como profundo conhecedor dos intestinos do Brasil agrário, do Brasil que descansava, que não se importava com o tempo e, por isso, trazia características de algo que havia morrido, sem que percebesse.

            Vamos ao “O ateneu”, de Raul Pompeia”.

terça-feira, julho 20, 2021

"Deus é mulher e o seu nome é Petúnia"

"Deus é mulher e o seu nome é Petúnia" é um filme macedônio de 2019, dirigido por Teona Strugar Mitevska. Este é o quinto longa da diretora. A Macedônia é um país de história bastante complexa, que remonta à Antiguidade. É a terra de nascimento de Alexandre o Grande. A Macedônia de hoje é um país que conseguiu independência em 1991, junto com outras nações, após o fim da Iugoslávia. É um país que pratica o cristianismo ortodoxo e possui certas tradições como qualquer país. Pois é nesse país longínquo dos Balcãs, que vive Petúnia - formada em história, desempregada, 32 anos de idade, gorda, mulher; segundo a mãe, havia passado da idade de casar. 

Certo dia, após voltar de uma malsucedida entrevista de emprego - o entrevistador comete um aliciamento e, em seguida,  humilha-a - Petúnia faz algo que foge aos convencionalismos. Todos os anos, um clérigo da Igreja Ortodoxa joga uma cruz do alto de uma ponte. Somente os homens podem pular para pegar o objeto santo. Segundo o costume, quem pegar a cruz terá uma ano afortunado. Desenganada, humilhada pela experiência, Petúnia pula inopinadamente e pega o objeto. O ato de Petúnia se constitui em um sacrilégio. Os homens tentam arrancar a cruz, mas ela consegue escapar. Quando ela menos percebe, todos estão contra ela - a família, a igreja, a polícia (que representa o braço do Estado machista) e a sociedade, pois passa a ser hostilizada, principalmente pelos homens que pularam para pegar a cruz. Um baita filme sobre a condição da mulher numa sociedade patriarcal e como as estruturas e instituições contribuem para manter certas tradições que oprimem.

quinta-feira, julho 08, 2021

"Clarice", a famosa biografia escrita por Benjamin Moser - algumas palavras.

  

Terminei a leitura da aclamada biografia sobre Clarice Lispector, escrita pelo laureado estudioso estadunidense Benjamin Moser. O calhamaço com mais de setecentas páginas chegou por aqui nos idos de 2013. Foi um sucesso imediato. Moser fez um trabalho à altura da magnitude da escritora brasileira, nascida na Ucrânia no início da década de 1920. O trabalho apresentou Clarice para o mundo. Em locais onde ela ainda não era conhecida com os encômios devidos, ela gerou, no mínimo, uma curiosidade. Certamente, como aconteceu ao longo da vida da escritora, houve a indagação: quem é essa escritora de nome tão minimalista – Clarice – digna de ganhar uma biografia tão volumosa?

Moser explica que chegou aos textos de Clarice Lispector por um lance inopinado. Era estudante de línguas. Tinha a intenção de estudar uma língua pouco vulgar. Pensou no russo. Mas acabou optando pelo português do Brasil. Como um processo natural de aprofundamento da língua, teve como tarefa a leitura de escritores brasileiros contemporâneos que produziram textos curtos. Entrou em contato com “A hora da estrela”, o último texto escrito por Clarice. Foi uma paixão inconteste no primeiro encontro. Quem era aquela escritora densa, de texto com uma carga epifânica que beirava o atordoamento? É o que ele tenta descrever ao longo de sua deliciosa prosa.

Clarice Lispector nasceu em Tchecenilk, uma pequena cidade da Ucrânia, no dia 10 de dezembro de 1920. Seu nome de nascimento era Chaya Pinkhasovna Lispector. Nascida em uma família judia, os Lispector tiveram que sair do país em decorrência de uma Guerra Civil. Estudaram vários destinos como possibilidade de uma nova morada. Os dois últimos destinos foram os Estados Unidos e o Brasil. Como possuíam parentes já estabelecidos no Brasil, optaram pelo distante e singular país da América do Sul. De forma ainda mais emblemática, foi o estabelecimento em Maceió, uma cidade pequena, de clima peculiar e que não abrigava uma comunidade judaica. Os parentes ali estabelecidos haviam chegado anos antes e haviam conseguido se estabelecer junto ao comércio. Na ocasião da chegada, Clarice tinha apenas dois anos de vida.

A família de Clarice acabou indo, após algumas dificuldades na capital alagoana, para uma das mais importantes econômica, política e culturalmente capitais nordestinas, o Recife. A família ficou ali por praticamente dez anos. Moraram no bairro da Boa Vista, que possuía uma sólida comunidade judaica. Ali as irmãs Clarice, Tânia e Elisa viveram anos tranquilos. Clarice era a mais nova das três irmãs. Moser registra que, mais tarde, Clarice foi interpelada sobre a sua nacionalidade. Ela afirmou sem embaraços que era brasileira e pernambucana. Nutria uma grande admiração pelo estado nordestino onde passara boa parte de sua adolescência. Gostava da culinária, do sotaque característico, do clima da cidade; do caldo cultural tão próprio da capital pernambucana. Alguns dos seus contos são ambientados em Recife; algumas de suas memórias afetivas estavam carregadas pelos acontecimentos nos dez anos em que viveu no bairro da Boa Vista. Na capital pernambucana foi alfabetizada. Iniciou as primeiras leituras. Encontrou-se com os russos; com Herman Hesse, cuja livro “O lobo da estepe” foi tão significativo.

Benjamin Moser

Mais tarde, muda-se para o Rio de Janeiro com o pai e as irmãs. No Rio, notam-se os eventos que foram fundamentais para a formação profissional e o pleno amadurecimento da carreira de escritora. Quando morou no Recife, Clarice já escrevera algumas singelas histórias. Envia-as para o jornal Diário de Pernambuco. Todavia, os seus textos nunca foram escolhidos. A preterição ocorria com frequência. Ela mesma explicou aquilo talvez tenha ocorrido por causa do intimismo dos textos que escrevia. As pessoas estavam acostumadas a lerem coisas do tipo: “Era uma vez...”. Seus textos não traziam nada dessa marca previsível.

Muda-se com a família de Recife para a Capital do país, o Rio de Janeiro. Iniciou o curso de Direito na Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro. E ao concluir o curso, escreve “Perto do Coração Selvagem”, que causou uma sensação enorme. Acabou por chamar atenção de críticos e intelectuais. À época, ela tinha pouco mais de vinte anos. Quem seria aquela mulher com sobrenome estranho? Seria um pseudônimo, alguém que buscava permanecer anônimo? Afinal, quem era a dona daquele texto tão impregnado de psicologismo; de uma estar consigo? Quem era aquela mulher que não ligava para as paisagens externas, que tinha como material para os seus romances as “estepes” interiores?

Procurou conciliar o Direito com a prática do jornalismo. Publica alguns contos. A produção desse material ajuda-lhe a consolidar o manejo do gênero o qual dominou com grande maestria. Ao lado de Lygia Fagundes Telles, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Osman Lins entre outros nomes, Clarice se estabeleceu como uma das mais importantes contistas da literatura brasileira.

Por essa época, entra em contato com Lúcio Cardoso, um dândi, um boêmio, um intelectual inquieto, por quem ela se apaixona. Ela veio, mais tarde, a descobrir que Lúcio era homossexual. Havia uma impossibilidade de levar à frente um relacionamento com Lúcio. Ao longo de sua vida, pelo que se sabe, Clarice envolveu-se emocionalmente somente com três homens – Lúcio Cardoso, Mauri (pai dos seus filhos) e Paulo Mendes Campos.

Mais tarde se casaria com Mauri. O relacionamento consolidou-se enquanto ela ainda cursava Direito. Mauri passou em um concurso para o Itamarati. Foi por conta disso, que Clarice morou por alguns anos fora do Brasil – Itália, Suíça, Estados Unidos.

Enquanto estava morando na Suíça, Clarice ganhou primeiro filho. Escreveu seu segundo romance – “O Lustre”. A escritora era uma jovem recém-entrada na casa dos vinte anos. Uma das marcas que mais incutiram força em Clarice, foi a solidão e a saudade do Brasil. Apesar dos amigos, apesar das oportunidades de conviver com eventos diferentes, Clarice era povoada por grande inquietação. Aliás, esta foi uma característica que a perseguiu por todos os anos de sua vida.

Essa inquietação foi responsável pelo questionamento sobre as condições do seu casamento. Estar casada – e longe do Brasil – gestava questionamentos. Nesse sentido, Clarice oscilava em reflexões à semelhança de Joana, personagem central do seu romance de estreia, “Perto do coração selvagem”. A escritora escavava suas emoções; fazia perquirições sobre suas intenções mais íntimas. Por fim, decidiu voltar para o Brasil com os filhos. Mauri ficou nos Estados Unidos. Ele, ainda apaixonado; buscando reatar o relacionamento. Ela, esquiva. Tentaram uma última vez a aproximação, mas não foi possível. Clarice era imensa, possuía sentimentos indefiníveis e incógnitos. Novamente, pode-se evocar a célebre frase da personagem de “Perto do coração selvagem”: “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome”. O inominável sempre foi o desejo das personagens criadas pela escritora. A vida de Clarice também foi repleta por uma tentativa de entender o indefinível.

Clarice Lispector.

De acordo com os depoimentos de Moser, Clarice era uma mulher que despertava paixão à primeira vista. Fisicamente ela era bastante atraente. Dos seus olhos emanava uma energia envolvente, misteriosa, capaz de criar uma funda impressão em quem, por muito tempo, ficasse próximo a ela. Sua voz possuía um sotaque carregado. Mas este não era resultado da dificuldade de pronunciar os verbetes da língua portuguesa. Ela viera, afinal, para cá, com dois anos. Fora alfabetizada em português. Tratava-se de uma anomalia que ela possuía na língua – e que poderia ser resolvida com uma cirurgia – mas que ela se negou a fazer.

Ao longo de sua vida, Clarice construiu amizades que duraram a vida toda. Mencionam-se, por exemplo, a íntima correspondência que estabeleceu com Fernando Sabino. A amizade construída com Érico Veríssimo, principalmente, com Mafalda, esposa de Érico. E, nos anos finais, com Olga Borelli, que organizou o seu espólio e foi fundamental como amiga e companheira.

A grande questão que se sobressai sobre Clarice é que ala foi uma mulher inquieta, dona de uma alma selvagem; de uma vontade indômita. Sua literatura é fruto de sua personalidade misteriosa e inquieta. À medida que a biografia avança, chegando aos anos finais da vida da escritora, nota-se o quanto ela se tornou uma mulher depressiva e excessivamente pessimista. Ou, talvez, aquilo representasse uma forma de estar consigo.

Na famosa entrevista que concedeu Júlio Lerner, no ano em que morreu, 1977, fica claro o quanto ela se tornara excessivamente dura – com a vida e com ela mesma. O entrevistador pergunta por quem ela sentia raiva. Ela responde indefectivelmente: “Comigo mesma!” Ele vai mais a fundo e questiona: “Por que Clarice?” Ela responde meio displicente: “Sei lá... eu tô meio cansada”. Júlio estica a pergunta um pouco mais: “De quê, Clarice!” Ela volta à carga: “De mim!” É um pebolim existencial. Num último questionamento, que buscava conciliar a inspiração da escritora com a própria vida, Júlio pergunta: “Mas você não nasce e se renova a cada trabalho novo?” Clarice responde de forma enigmática: “Bom... agora eu morri. Vamos ver se eu renasço de novo; por enquanto, eu estou morta. Estou falando do meu túmulo”. Uma pessoa que se revela de forma tão pungente, não poderia escrever outra coisa senão aquilo - e do modo - que ela escreveu.

A impressão que transmite é de uma pessoa que alcançara os cumes da amargura. Em outro momento da entrevista, ela diz que era uma pessoa “alegre”. Se deixava entrever, naquele momento, uma postura negativa era pelo fato de estar cansada. Talvez, como diz Olga Borelli em uma entrevista, fosse o resultado da doença que a mataria – o câncer nos ovários.

O livro de Moser é excelente. O texto possui clareza jornalística. Não enfada. Há uma excelente contextualização histórica. O escritor procura conciliar os dados biográficos da vida de Clarice, mas relaciona os fatos históricos com a habilidade incomum de um bom pesquisador. 

Abaixo, a última entrevista concedida pela escritora.